De todas as promessas feitas em nome da Web3, duas destacam-se como particularmente radicais e benéficas para a democracia. Primeiro, alguns esperam que acelere o processo de descentralização, que já está em curso em muitas instituições, indústrias e Infraestruturas. Segundo, asseguram-nos, que ao libertar os artistas das garras extrativistas de dados do Spotify e dos seus males, os projetos criptográficos podem desencadear uma revolução cultural, dando origem a uma “economia do criador” autónoma e auto-suficiente.
Ambas as expectativas são controversas. Por um lado, a importância política dos esforços existentes de “descentralização” permanece amorfa e ambígua, com a financeirização – mais do que política – a servir de veículo de empoderamento. Do ponto de vista político, a agenda de “descentralização” atual surge desconectada dos debates sobre geopolítica, a natureza mutável da representação democrática, o futuro das instituições públicas, e muito mais.
Do mesmo modo, a visão por de trás da “economia do criador” trata os artistas como marcas a tempo inteiro, capazes de alavancar os benefícios das cripto para preparar as suas próprias mini-IPOs e emitir dividendos – por meio de tokens – para a sua base de fãs-acionistas.
Ambas as promessas parecem não ter em consideração os esforços levados acabado anteriormente, muito mais radicais, para promover tanto a descentralização como a democratização. Também ausente está qualquer compromisso sério com o poder do Estado e com o papel das instituições públicas em geral; na melhor das hipóteses, estas são vistas como obstáculos no caminho da Web3, e não como forças facilitadoras que poderiam ajudar a alcançar os objetivos comuns, da descentralização e do empoderamento cultural.
Perante isto, dificilmente há melhor pessoa para relembrar o que aconteceu a essas visões radicais do que Francesca Bria, uma das vozes mais originais de Itália – e da Europa – em matérias de soberania tecnológica, inovação digital e democratização dos dados. (Uma revelação necessária: a Francesca também é minha esposa.)
Francesca Bria é uma das vozes mais originais de Itália – e da Europa – em matérias de soberania tecnológica, inovação digital e democratização dos dados.
A maioria das pessoas conhecem a Francesca como a ex-responsável de tecnologia de Barcelona (no primeiro mandato de Ada Colau), como conselheira sobre cidades digitais e direitos digitais nas Nações Unidas, ou como a actual (e primeira) presidente do Fundo Nacional Italiano para a Inovação e membro do conselho de cinco de gestão de cinco pessoas da RAI, a empresa pública italiana de radiodifusão. É, para além disso, membro do grupo de especialistas da Comissão Europeia, New European Bauhaus, e professora na UCL Institute for Innovation and Public Purpose em Londres.
O seu caminho, até estas importantes posições de poder, tem sido fascinante. A partir de uma experiência formativa precoce como média-activista e promotora do conhecimento livre no final dos anos 90, Francesca conseguiu ver as últimas fases do panorama hacker europeu, bem como testemunhar o nascimento de movimentos importantes como o Indymedia.
Graças ao seu interesse por vídeo-ativismo, cultura digital, e software livre, cruzou cedo caminho com Gilberto Gil, o visionário ministro da cultura do Brasil. Durante o seu mandato de cinco anos, nos governos de Lula, Gil articulou uma visão vibrante para democratizar tanto o acesso como a produção da cultura através de software livre e conhecimento aberto. Inspirada, em parte, pelas realizações de Gil no Brasil, Francesca acabou por unir forças com alguns funcionários públicos da Directorado Geral para a Sociedade da Informação da Comissão Europeia para articular um programa semelhante para a Europa.
Isto acabou por conduzir a dois importantes projectos europeus financiados pela Comissão: D-CENT (abreviatura para Decentralised Citizens Engagement Technologies; decorreu entre 2013 e 2016) e Decode (abreviatura para Decentralised Citizen-Owned Data Ecossystem; decorreu entre 2016 e 2019). E é difícil subestimar o impacto destes projectos.
O D-cent foi concebido como uma plataforma para facilitar a deliberação política e democratizar as tomadas de decisão – a resposta europeia ao Facebook. Rapidamente ganhou proeminência em Espanha, onde foi usado por executivos municipais, tal como Barcelona, e partidos políticos. E o software que o suportava acabou por equipar também o processo de deliberação da própria Comissão, sendo usado como principal hub digital na Conferência do Futuro da Europa. Já em 2015, D-cent produziu um relatório visionário sobre a necessidade de capacitar as comunidades locais com as suas próprias moedas complementares democraticamente concebidas e governadas, que deveriam ser oferecidas através da blockchain associada ao Freecoin.
O Decode, por sua vez, foi um dos primeiros projectos financiados publicamente a colocar questões sobre propriedade coletiva de dados e soberania de dados na agenda política, com importantes projetos piloto, e uma série de tecnologias descentralizadas e em prol da privacidade a serem testadas em cidades como Amesterdão ou Barcelona. Esse trabalho continua agora, também sob a liderança de Francesca, no The New Institute, no programa New Hanse, em Hamburgo.
Durante os anos passados, tive a oportunidade de observar o D-cent e o Decode em acção, servindo como consultor formal e informal a ambos (junto com a Francesca também fizemos curadoria de vários eventos associados e listas de leitura). O que é notável em ambos os projectos são os caminhos tomados por alguns dos seus participantes. Enquanto Francesca permaneceu fiel à visão original de promover a democratização e descentralização a partir do Estado e do sector público, outros trilharam um caminho diferente.
Alguns encontram-se hoje no limite da fronteira da Web3. Harry Halpin, que esteve envolvido na D-cent, fundou a Nym, uma das start-ups de privacidade da Web3, que recebeu recentemente financiamento da a16z. A Chainspace, start-up fundada por George Danezis e a sua equipa na UCL, que estiveram envolvidos no Decode, foi comprada pelo Facebook. E mais recentemente, a mesma equipa fundou a Mysten Labs, outra start-up que recebeu financiamento da a16z.
Muitos outros intervenientes interessantes que acabaram a fazer coisas na Web3 – ou outras coisas cripto-relevantes; Jaya Klara Brekkle, que estava envolvida tanto no D-cent como no Decode, escreveu o seu PhD sobre a políticas dos protocolos de blockchain (antes de entrar para a Nym). Denis “Jaromil” Roio dirigiu a Dyne.org através de D-cent e Decode e alguns projectos europeus subsequentes, mantendo ao mesmo tempo um olhar atento sobre o mundo das cripto desde o início. Para além disso, muitas outras pessoas interessantes estiveram em volta do projecto por diversas vezes; no primeiro evento do D-cent, em Roma em 2013, podíamos ver pessoas tão diversas quanto Maurizio Lazzarato, Stefano Rodotà, e até Moxie Marlinspike, que viria a fundar o Signal anos mais tarde.
A conversa com a Francesca atravessa uma série de temas, desde a história das comunidades ativistas da internet na Europa, às lições a serem aprendidas da América Latina, até às limitações políticas dos projectos actuais da Web3.
Passaste duas décadas a tentar criar Infraestruturas digitais mais “descentralizadas”. Falaremos disso em breve mas para tirarmos o básico da frente: dada a tua experiência, és persuadida pela agenda de “descentralização” dos proponentes da Web3/cripto?
Infelizmente, a agenda da Web3 parece muito semelhante à da Web2. As promessas, os paradigmas, as narrativas e os modelos de negócio não são tão diferentes quanto parecem. No princípio, a Web2 prometeu abrir a economia digital com o potencial de democratizar a internet e a produção cultural no digital, tornando-se mais social e desafiando os incumbentes nas posições dominantes. O que aconteceu foi o oposto, levando a uma concentração de poder de mercado e infraestrutural, sem precedentes, por parte das Big Tech.
Hoje, a Web3 e a finança descentralizada, ou “DeFi”, promete alimentar um movimento orgânico de cyber-hackers que vão descentralizar a propriedade da economia real. Mesmo que, muitas vezes acabam a reforçar a concentração do mercado e a alimentar a especulação desenfreada. Esse mundo é, muitas vezes, ideologicamente resistente à regulação e representa riscos para o sistema financeiro mais vasto, com os 2,5 biliões de dólares [$2.5tn] de ativos criptográficos em circulação nas mãos de menos (e mais centralizados) pessoas do que pensamos.
A Web3 e a finança descentralizada, ou “DeFi”, promete alimentar um movimento orgânico de cyber-hackers que vão descentralizar a propriedade da economia real.
A tentativa de criar Infraestruturas descentralizadas e com privacidade, ao nível da rede e das aplicações, tais como livros de registos distribuídos (distributed ledgers) e protocolos cripto que correm em Ethereum e em outras blockchains, parece interessante e genuína, contudo, não leva em consideração outros problemas mais vastos na recuperação do controlo e da soberania, sobre todo o aparato tecnológico, incluindo a conectividade da próxima geração (5G e conectividade espacial), computação quântica, e outras componentes críticas da cadeia de valor, tais como os chips de AI ou microprocessadores.
Esta tentativa puramente técnica de descentralização também fica curta no pensamento sobre as instituições políticas e sociais que são necessárias para tirar todo o proveito desta descentralização. As grandes questões que eu – e tu – temos colocado na última década, no que toca a economia política dos dados e das infraestruturas, a soberania digital, a geopolítica das pilhas [stacks], parecem ter caído da agenda por completo.
O que está a ser “descentralizado” é a habilidade para extrair valor e fazer dinheiro, incentivando a uma financeirização superior dos comportamentos sociais. Pior, parece que alguns dos que promovem a agenda da Web3 aprenderam pouco das experiência de todos os movimentos anteriores, do Free Software ao Indymedia e ao surgimento das cidades democráticas digitais, que tentaram criar uma esfera digital mais descentralizada e democrática.
Vamos traçar alguma dessa história ao focarmos na tua própria trajetória de carreira. A maioria das pessoas pensam em ti como sendo parte do establishment político. Contudo, tu começaste com trabalho de base no mundo do ativismo media, do conhecimento livre e do software livre. Podes falar-nos dessas primeiras experiências e de como elas – e as suas limitações – moldaram a tua forma de pensar sobre políticas tecnológicas?
No final dos anos 90, o movimento defensor do conhecimento livre e software livre fundiu-se do movimento social anti-globalização, e deram origem a iniciativas como a Indymedia, o primeiro website do mundo, verdadeiramente global, de jornalismo cidadão. Foi também nesse período inicial de experimentação aberta na Internet que nasceram algumas das inovações técnicas que mais tarde chamaríamos “redes sociais” e “Web 2.0”, embora com um espírito completamente diferente.
Tal como sabemos agora, esses movimentos iniciais não foram capazes de se sustentar e crescer, e é importante perceber porquê. Eu tive a sensação de algo estava errado na forma como nós — e eu falo como alguém que fez parte dessas iniciativas pioneiras – pensámos sobre política, informação e poder. Nessa altura, convenci-me que para serem sustentáveis e escaláveis, estas iniciativas de baixo para cima tinham de ser reconhecidas como tentativas criticamente importantes de experimentalismo democrático. Eram importantes e tinham de ser sustentadas com intervenções de políticas públicas, tanto em termos de regulamentação como de financiamento público de I&D.
Foram esses esforços para fazer sentido das nossas falhas e levar a sério do papel das políticas públicas e do estado que me levou, por volta de 2005-2006, a começar a trabalhar com a Comissão Europeia, com o Governo Regional de Lázio (a minha terra natal), em conjunto com os governos do Brasil e, mais tarde, noutros lugares da América Latina que serviram de inspiração para o meu trabalho.
Muitos desses esforços foram conduzidos pelo desejo de aprender mais de experiências como o Projecto Cybersin no Chile e imaginar o que seria um equivalente europeu moderno. quando começámos a formular planos para alternativas genuinamente Europeias para a Web 2.0 – era sobre isso que o D-cent e o Decode, os projectos europeus que liderei nos anos 2010, eram – aproveitávamos conscientemente as experiências latino-americanas.
Antes de passarmos aos capítulos da América Latina, podias dizer algo mais sobre as tuas experiências mais formativas no princípio da tua carreira como activista de “conhecimento livre e aberto”?
Eu fui altamente influenciada pelos hackerlabs (e o que mais tarde se chamaria de “makerspaces”) e pelo seu entendimento de que o software e o conhecimento digital são um bem público. Estes eram espaços comunitários que durante o final dos anos 1990 existiam em centros sociais ou ocupações, mesmo que por vezes funcionassem independentemente, tal como cibercafés. Ofereciam acesso livre à Internet e algumas Infraestruturas básicas, assistência tecnológica e aulas de competências básicas para os que precisavam, desde cidadãos comuns a artista, de ativistas a imigrantes.
Havia sempre uma forma de fazer as novas tecnologias servir as necessidades sociais das comunidades. Este laboratórios abertos eram compostos por hackers e engenheiros informáticos que tinham conhecimento sobre as tecnologias emergentes; falavam a língua da autonomia tecnológica, da privacidade popularizada e das ferramentas de encriptação, e providenciavam a muito necessária assistência técnica durante importantes encontros (como os do chamado movimento anti-globalização).
Os hackerlabs tinham como objetivo apropriar e, em certo sentido, socializar o conhecimento crítico por de trás da tecnologia.
Assim, no final dos anos 1990/início dos anos 2000, senti que me tinha juntado a um movimento capaz de politizar a tecnologia. Eu via a tecnologia como uma infraestrutura, como uma ferramenta de conhecimento que pode empoderar comunidades, com uma visão ainda mais inclusiva e inovadora de futuro. Nós queríamos que as pessoas produzissem o seu próprio conteúdo e informação — o mote da Indymedia era “não odeies os media, torna-te os media” — e os hackerlabs providenciaram a assistência e as Infraestruturas que tornaram essa autonomia no terreno da produção de conteúdos possível.
Nós estávamos a explorar e a conquistar novos territórios do digital e da cultura em rede. Os hackerlabs tinham como objetivo apropriar e, em certo sentido, socializar o conhecimento crítico por de trás da tecnologia. Inevitavelmente, esses esforços geraram muita controvérsia sobre questões como a propriedade intelectual: quem detinha determinada tecnologia, quem a podia partilhar, em que condições, como podíamos sustentar os criadores, e por aí. O problema do licenciamento veio ao de cima para verdadeiramente servir a agenda da autonomia, o software tinha de ser estudado, reproduzido, copiado e partilhado. É nesta altura que o modelo licenciamento Creative Commons nasce e é popularizado por Lawrence Lessig.
Nessa altura estiveste envolvida e mais do debates técnicos sobre licenciamento, certo? Também produzias o teu próprio conteúdo.
Sim, nessa altura, eu também estava envolvida na produção de conteúdo criativo, tal como vídeos digitais e documentários independentes. Nós estávamos a codar os vídeos manualmente, a trabalhar no primeiro arquivo de vídeos open-source. Acabou por ser lançado, com um código de fonte aberta, chamado new global vision, e alojado no ECN (European Counter Network), um importante provedor de serviços independente em Itália. Nós fizemo-lo mesmo antes da BBC surgir com o seu próprio iPlayer; antes do YouTube e de outras ferramentas de publicação da Web 2.0.
Esta rede hacktivista e de tecnologia radical estava activa em Itália com projetos como a ECN, Autistici/Inventati, e a Indymedia; em Espanha em projectos como o sinDominio; e na Alemanha com projectos como o Chaos Computer Club — que eram muito ligados a movimentos sociais. Portanto todos nós que estávamos envolvidos em produção de conteúdo, estávamos também envolvidos com ativismo social e político, em temas como a migração ou a justiça social, feminismo ou o ambiente. Mais tarde, tudo isto se transformou no movimento anti-globalização.
Durante este período viajei pela Europa e também na América Latina. Por exemplo, eu estava na Argentina em 2002 quando o país estava numa crise política e financeira. Foi lá que conheci a Naomi Klein, que na altura estava a trabalhar no seu filme. Eu também estava a trabalhar num filme chamado Argentina Arde, sobre os trabalhadores desempregados da Argentina, ou piqueteros, naquele contexto da crise financeira argentina e do movimento anti-globalização. O filme acabou por ser distribuído pelo já defunto jornal italiano, Carta.
Entre 1998 e 2002, viveste em Amesterdão e parece que isso teve uma grande influência na tua trajetória subsequente. Porque foi tão importante?
Amesterdão foi um ponto de referência para o movimento do conhecimento livre por duas razões. Primeiro, porque no final dos anos 1990 Amesterdão era um local muito vibrante, cultural e politicamente. Uma cidade liberal e aberta, foi também o lar de muitas ONGs e fundações, incluindo as mais progressistas, que lutavam pela justiça social e contra as alterações climáticas. Havia muitas organizações ativistas críticas do FMI e do Banco Mundial – penso por exemplo no Transnational Institute e ASEED Europe. Muitas dessas instituições tinham dinheiro público para gastar. Isso atraiu um conjunto de jovens e brilhantes ativistas, pessoas que acabavam de sair da universidade e queriam fazer a diferença mas não no típico trabalho de secretária.
A outra razão é que em Amesterdão nos anos 1990 havia uma série de políticas públicas que eram favoráveis a uma transição para a sociedade digital. Tinham boas faculdades de multimédia, rádios piratas que foram legalizadas, e canais de TV por cabo bem financiados. Tinham espaços públicos como o De Balie, que promovia a cultura digital emergente com festivais e conferências como a The Next Five Minutes , que popularizou conceitos como “média táctica”.
Os hackerlabs estavam por todo o lado — por vezes, ao lado de coffe shops — e eram composto por gente tecnicamente boa. Podias ir lá e aprender tudo sobre computadores, como usar e como navegar na internet.
E, claro, a internet em si estava em todo o lado. Como resultado de políticas públicas inteligentes, era geralmente barata ou completamente gratuita. Também tinham provedores de internet independentes como a XS4ALL que tinha uma visão progressista de comunicação. Havia muito pouco deste género na Itália – pelo menos num mundo para além dos hackerlabs que ainda eram vistos como uma cultura “underground“.
Em Amesterdão nos anos 1990 havia uma série de políticas públicas que eram favoráveis a uma transição para a sociedade digital. Tinham boas faculdades de multimédia, rádios piratas que foram legalizadas, e canais de TV por cabo bem financiados.
Quando cheguei a Amesterdão em 1998, havia muito burburinho sobre projectos pioneiros como o da Digital City; era uma primeira tentativa importante de ter um debate público sobre como providenciar novos direitos e serviços para os cidadãos nas cidades digitais. Estes debates acabaram por continuar em novas instituições como a Waag Society, que foi algo como um equivalente europeu público ao mundo privado e comercial do MIT Media Lab, mas também a mailing lists como o Nettime.
Juntaste-te cedo à Indymedia. O que te levou a fazê-lo e quais foram as tuas primeiras impressões?
Em 1999, durante os protestos de Seattle contra a Organização Mundial do Comércio, a comunidade tecnológica começou a criar plataformas e ferramentas através das quais os movimentos sociais se podiam exprimir e criar os seus próprios meios. Mais tarde, isto foi chamado de “jornalismo cidadão” e “conteúdo gerado pelo utilizador” — e e isso foi quase subsumido na retórica da Web 2.0.
Desde o princípio, a Indymedia era uma plataforma que tinha equipas editoriais distribuídas por todo o mundo, cada uma com a sua estrutura organizacional enraizada num país diferente e com autonomia individual. Partilhavam alguns princípios e regras, incluindo como controlar e moderar conteúdo publicado por utilizadores que fosse misógino, racista ou discriminatório. Começou por ter só texto; mas pouco depois conseguíamos publicar fotos, vídeos e áudio. Imagina o que significar produzir e distribuir vídeo numa plataforma aberta em 1999!
A Indymedia tornou-se uma espécie de meta plataforma que conectava todos os media independentes e os jornalistas independentes e as comunidades de produção de conteúdo com a comunidade tecnológica, os hackers e os movimentos sociais. Isto foi realmente grande no início dos anos 2000, porque depois de Seattle, os protestos anti-globalização começaram a espalhar-se por todo o mundo.
Há uma interessante e praticamente desconhecia ligação entre a Indymedia e a Web 2.0…
Sim! Vários membros da comunidade tecnológica da Indymedia que criaram o protocolo de publicação aberta eram da América do Norte. Eles voltaram para os Estados Unidos da América e acabaram a trabalhar para as empresas que se viriam a tornar os grandes nomes da web 2.0. A história da empresa de podcast Odeo – onde o Twitter nasceu – é emblemática por, para além do Jack Dorsey, também empregava Blaine Cook e Evan Henshaw-Path, que não só participaram na Indymedia como foram fundamentais no desenvolvimento e adaptação do TextMob, um programa de mensagens usado em muitas manifestações, que viria a inspirar o Twitter.
Cedo, por volta de 2005 ou assim, alguns de nós começámos a perceber que de forma a produzir comunidades de conteúdo de alta qualidade como a Indymedia, precisaríamos de estruturas muito mais fortes e sustentáveis. A Indymedia, por exemplo, era à base de voluntariado; a maioria das pessoas não tinham um salário. As doações, embora ajudassem, não nos permitiam desenvolver planos maiores. E começámos a debater estes assuntos internamente.
Houve, previsivelmente, posições distintas sobre este tema. Alguns ligaram-no à questão do financiamento de bens públicos, percebendo que as infraestruturas pioneiras que deram origem à Indymedia poderiam também ser financiadas por governos, como inovação de interesse público; todo este debate se podia relacionar com uma luta maior, pelo acesso à informação e direitos digitais; Outros, obviamente, opuseram-se a qualquer envolvimento do estado e mais tarde viraram-se para o financiamento do sector privado.
Quem eram esses oponentes?
Na maioria, os norte-americanos preferiram soluções privadas, e depois mudariam-se para Silicon Valley e trabalhariam com as empresas da Web 2.0, pensando que, através das social media, estavam a democratizar a possibilidade das pessoas e comunidades terem algo a dizer e publicarem o seu próprio conteúdo – longe da maioria das regulações que existiam na altura. Alguns eram libertários; alguns anarquistas. Nunca olharam para o sector público como uma solução, vendo-o, sobretudo como um censor e um inimigo com que lutar.
Eu acho que eles encontraram mais liberdade, mais recursos, e definitivamente mais dinheiro na cena do capital de risco de Silicon Valley. Então fundaram empresas que, ao longo do tempo, se vieram a tornar muito diferentes do que eram a princípio; os fundadores abandonaram depois de alguns anos e as empresas foram comparadas por concorrentes maiores.
Na maioria, os norte-americanos preferiram soluções privadas.
Então, tu estavas claramente no outro campo — o que via governos como potenciais facilitadores mais do que inimigos com que lutar. Curiosamente é ao estudar a experiência brasileira que descobres políticas interessantes para a Europa, podes explicar exatamente como esse encontro com o Brasil aconteceu?
Eu sempre pensei que precisávamos de influenciar as políticas públicas e criar instrumentos pioneiros na política que pudesse suportar as Infraestruturas digitais emergentes tal como criar ferramentas para produção de conteúdo mais baratas e mais acessíveis. O Brasil foi a inspiração para isso, já que a ascensão do Lula ao poder foi bem recebida por muitos de nós na Europa. Eu fui a um dos primeiros Fórum Social Mundial em Porto Alegre; lembro-me de ver muitos intelectuais que eram influentes para o movimento, tal como Noam Chomsky mas também o Richard Stallman, Larry Lessing e Vandava Shiva.
Os temas do acesso livre ao conhecimento e à conectividade, e a reforma do regime global de propriedade intelectual, tinham finalmente a atenção que mereciam. Também muita discussão sobre questões como democracia participativa e orçamentos abertos – e isso pareceu muito entusiasmante para nós aqui na Europa.
No governo do Lula, o Brasil era um actor progressista — em todo o tipo de debates globais e internacionais e em todas as instituições. Durante esses anos, o World Summit on Information Society estava a arrancar e eu lembro-me de ir ao primeiro grande encontro em Geneva, em 2003. Eu estava lá como parte da campanha activista “We Seize!” (“We Seize” é uma brincadeira com WSIS) para exigir mais responsabilidade, transparência e democracia durante as negociações na cimeira. Dois anos mais tarde, houve uma cimeira seguinte em Tunis que foi bastante importante para o meu trabalho subsequente, quer no Brasil quer na Europa.
Como?
Eu estava em Tunis como jornalista independente, a fazer a cobertura da cimeira (eu estava a fazer freelance para o jornal italiano Liberazione). Uma das pessoas presentes mais entusiasmante era o ministro da cultura brasileiro, Gilberto Gil. Gil, claro, é um dos músicos mais famosos do país, muito envolvido no movimento Tropicália, colaborador de Caeatano Veloso e muito mais. Gil, que foi ministro da Cultura durante 5 anos, deu muitos passos radicais para promover a agenda do conhecimento e do software livre.
Primeiro que tudo, ele, tal como o resto da https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração de Lula, não tinha receio de seguir políticas contrárias às grandes empresas tecnológicas, em vez disso insistiu em remodelar a política governamental, incluindo em matéria de aquisições e em torno de software livre e de código aberto. Defensores do software livre e professores proeminentes como Sérgio Amadeu , trabalhavam nessa altura para o governo.
Depois – e isto para mim é muito importante – Gil lançou um programa chamado Pontos de Cultura , um programa do governo para promover o acesso à informação e conhecimento e à sua produção de baixo para cima, incluindo favelas e partes do Brasil que estavam previamente excluídas da esfera da cultura. Isto teve algumas semelhanças com o que tentámos fazer com os hackerlabs na Europa, mas no Brasil, não estava limitado a hackers e activistas.
Em vez disso, era parte de um grande incentivo do Governo, com Gil e o ministério a conduzir este esforço para democratizar o acesso à cultura produzida por meio de tecnologias digitais. Houve também esforços paralelos para impulsionar a inclusão digital e a literacia digital, com programas bastante radicais e ambiciosos, incluindo grandes investimentos públicos em infraestruturas digitais e conectividade de banda larga pública e aberta, e a digitalização dos serviços da https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração pública utilizando software livre e de código aberto para promover a autonomia tecnológica alinhada com os objectivos de desenvolvimento nacional.
Assim que percebi o que estava a acontecer no Brasil, comecei imediatamente a pensar como aplicar estas experiências na Europa. Primeiro, o foco era regional; nessa altura eu estava a trabalhar na https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração da região de Lázio e fui instrumental no estabelecimento do programa de colaboração entre Lázio e o Brasil dentro do enquadramento da Sociedade Digital Europeia, houve esforços para traduzir as experiências dos Pontos de Cultura localmente em Itália. Na altura, escrevi um paper sobre isto, a analisar o esforço que fizemos.
Como foram esses esforços para além de Itália?
Isto tem a ver com outra pessoa importante que conheci em Tunis – um oficial italiano da Comissão Europeia chamada Francesco Nachira (que acabaria por se retirar da comissão no princípio dos 2010s). Em 2002, Francesco publicou um paper importante sobre “ecossistemas de negócios digitais”, em que argumentava que a Europa, em vez de criar campeões nacionais ou pan-europeus, devia estar a investir na criação de conhecimento e Infraestruturas tecnológicas que permitissem a empresas mais pequenas não só criar produtos disruptivos como também construir sobre as descobertas e inovações de outros.
Nachira viria a construir todo um programa de investigação em torno desta ideia, que culminaria num importante livro publicado em 2007. Por essa altura, ele tinha uma visão prática e teórica muito interessante, baseada na metáfora biológica de ecossistema, que via negócios e tecnologias como esferas – o que hoje chamamos Infraestruturas – a interagir de uma forma que produziria resultados mutuamente benéficos. A ideia era que ao promover o software livre, as tecnologias de fonte aberta mas também todos os tipos de Infraestruturas de conhecimento livre – falaríamos delas mais tarde como a “web semântica” – a Europa conseguiria preservar a sua autonomia tecnológica e industrial mesmo sem ter gigantes tecnológicos.
Talvez até tivesse sido um caminho melhor, pois, com concorrentes mais pequenos, poder-se-ia alcançar uma gestão melhor e mais democrática, bem como ter uma economia que não fosse só pela concorrência e lucro, mas também pela colaboração e cooperação. Houve também muita investigação que mostrava que as empresas pequenas e médias não atuam sempre no sentido de maximizar o lucro e perseguem outros objetivos. Nachira acreditava em cooperavas e pequenas empresas; poder-se-ia dizer que havia muito apreço pela descentralização da atividade económica, seguindo a tradição italiana de distritos industriais territoriais, com economias de aprendizagem e a sua especialização adaptada às necessidades locais.
A Europa conseguiria preservar a sua autonomia tecnológica e industrial mesmo sem ter gigantes tecnológicos.
É difícil acreditar hoje em dia mas muitos dos artigos científicos e apresentações do Nachira dessa altura – publicados sobre os auspícios da Comissão Europeia – citavam o projecto Cybersyn do Chile de Allende como uma inspiração e algo que, recorrendo a tecnologias de informação e comunicação avançadas mas descentralizadas, devia ser recriado na Europa. (O projecto cybersyn foi de alguma forma mais conhecido em Itália graças ao aparecimento de um livro sobre isso em 1980).
Houve muita investigação teórica interessante que informou a abordagem de Nachira: ele baseava-se em teoria geral dos sistemas, cibernética, construtivismo, e várias teorias da cognição para fazer os seus argumentos, citando Stafford Beer, Fernando Flores e Terry Winogrand, Varela e Maturana, Bateson e Piaget. Ele rejeitava explicitamente as abordagens da teoria dos jogos que eram populares na altura (ironicamente, é precisamente a teoria dos jogos que está muito em voga entre a multidão da web3 por estes dias).
Como é que o Brasil se encaixa em tudo isto?
Nachira conhecia o que o Gilberto Gil andava a fazer no Brasil e queria conhecê-lo e ver se algum tipo de ponte poderia ser construído entre a Euopa e o Brasil. O Pontos de Cultura parecia exatamente o tipo de ação governamental capaz de criar um ecossistema digital de conhecimento com tecnologia livre que podia ter mais consequências sociais e económicas… uma espécie de política pública para a soberania digital, diríamos hoje em dia.
Isso encaixava-se muito bem com o programa de Nachira e o que nós queríamos testar era se algo como os Pontos de Cultura podia ser lançado na Europa como parte de uma agenda de Ecossistema Digital. Desde cedo comecei a trabalhar em proximidade com o Nachira, tornando-me numa das suas ligações às regiões europeias e à América Latina. Na altura também tive uma breve experiência como especialista na Comissão Europeia – trabalhando em cidades inteligentes, ecossistemas e laboratórios vivos enquanto trabalhava no meu doutoramento no Imperial College em Londres.
Os esforços de Nachira, inicialmente elogiados pela Comissão, rapidamente encontraram alguma oposição e ele acabou por optar pela reforma antecipada (também por questões de saúde). Mas o espírito desses programas, contudo, viveu, e brevemente – em 2012, acho – a Comissão Europeia lançou o CAPS (abreviatura de Collective Awareness Platforms for Sustainability and Social Innovation). Nessa altura, estava a terminar os estudos do meu doutoramento e estava também a colaborar com a agência de inovação do Reino Unido, a Nesta, e o seu diretor vindouro, Geoff Mulgan, ficou muito entusiasmado com a possibilidade de eu me candidatar a financiamento do CAPS pela Nesta. Foi assim que o meu primeiro grande projecto europeu, D-CENT, nasceu.
Só mais um ponto sobre o Nachira: por volta de 2014, depois de ele se reformar, nós fomos ao Equador, trabalhar com pessoas como o Andres Arauz, na esperança de conseguir que a América Latina perseguisse as políticas que percebemos serem tão difíceis de implementar na Europa. Houve uma receção muito positiva do que tínhamos para dizer mas pouco depois a América Latina também entrou numa crise e muitas dessas ideias continuaram por ser realizadas.
Podes-nos explicar a lógica por de trás do CAPS e como o D-Cent, o teu primeiro projecto europeu, se enquadrava?
A ideia por de trás do CAPS era promover todo o tipo de novas tecnologias emergentes que empoderassem as pessoas e as comunidades – por exemplo, protocolos descentralizados, redes distribuídas, tecnologias para a a participação democrática. Nessa altura, a Comissão Europeia estava a financiar tecnologia pela tecnologia. Fabrizio Sestini, o arquitecto intelectual do CAPS, percebeu que o propósito social tinha de estar primeiro. Por isso quis criar um projecto conduzido pelo que as comunidades podiam fazer com a tecnologia para servir as suas necessidades, com um grande foco ambiental também (mais uma vez, estamos de volta ao tipo de incentivo que impulsionou o nosso trabalho nos hackerlabs no final dos anos 90 e mais tarde no modelo dos Pontos de Cultura).
Então decidi candidatar-me ao CAPS, com um projeto focado em reduzir a dependência de movimentos sociais, ONGs, municípios e da maioria das outras instituições das plataformas da Web2.0. Naquele tempo, era impossível para qualquer uma dessas entidades envolver-se em ativismo ou permitir uma deliberação entre os seus membros fora de plataformas como o Facebook ou YouTube. Basicamente não tínhamos plataformas autónomas, onde isto pudesse ser feito, por isso toda a gente ia para essas grandes plataformas. Então, a D-cent, foi de certa forma, concebida para endereçar este problema.
Que outras grandes filosofias estão por de trás disso?
Num nível muito geral, o que tentámos fazer com o D-cent foi desenvolver plataformas para participação democrática de larga escala, com foco na democratização do formato dos partidos – na verdade para fortalecer o formato dos partidos – e em garantir que a democracia podia enquadrar-se no século XXI, dando mais poder aos cidadãos sem contudo acreditar que os partidos tal como são acabaram. Queríamos que os partidos políticos encontrassem novas formas de interagir com os seus membros, enquanto permitíamos que movimentos e organizações sociais usassem tecnologias digitais para empoderarem a sua ação coletiva.
O que resultou daí, como já dissemos, foi um conjunto de experiências que resultaram numa plataforma de democracia que agora é usada numa escala pan-europeia em vez de, digamos, a alternativa privada Facebook. A nossa plataforma foi paga por contribuintes europeus e mais tarde escolhida pela cidade de Barcelona, entre outras cidades, e nós tivemos orgulho disso. É de fonte aberta, é protetora da privacidade, e é responsabilizável. Não podemos manipular os dados, não podemos vender os dados, não podemos manipular a opinião dos cidadãos. Isso mostra que a tecnologia que é concebida e construída de baixo para cima, por comunidades de cidadãos, se pode tornar uma plataforma pan-europeia. Pequenos projectos regionais podem escalar e ser robustos. Isto é outra prova de que a visão original de Nachira de um ecossistema digital estava correta, e de que se pode desenvolver tecnologias que são democraticamente detidas e controladas.
Como todos os projectos europeus, o D-CENT foi um esforço conjunto de várias organizações, certo?
Tivemos alguns parceiros muito interessantes desde o príncipio. O Harry Halpin já estava a trabalhar com o Nachira que, por essa altura, descobriu o seu trabalho académico sobre cognição distribuída. O Harry estava a trabalhar com o Tim Berners-Lee, na normalização [criação dos normas globais da internet]. Havia outras pessoas – como a Blaine Cook (do Odeo-Twitter) que estava a trabalhar com gestão de identidade descentralizada, tal como Evan Henshaw-Path (também do contingente Odeo-Twitter), que, por essa altura era CEO de uma startup de lean UX [lean UX é uma abordagem ao design de interação].
Apesar de haver uma componente técnica muito forte no nosso consórcio, nós também sabíamos que não estávamos a resolver só problemas tecnológicos. Assim, queríamos ter movimentos e instituições reais como parte do projeto. Tivemos o Partido Pirata da Islândia, que se tornou numa força importante no país e conduziu as primeiras experiências de democracia directa em escala; o presidente da câmara de Reiquiavique da altura, Jón Gnarr , estava muito envolvido no que estávamos a fazer. A mesma coisa aconteceu na Finlândia, onde trabalhámos com o Forum Virium, a organização das TIC da cidade de Helsínquia.
Na altura, o debate era sobre os Indignados em Espanha. Eu conhecia algumas pessoas ligadas ao grupo de investigação do Manuel Castells na UOC Internet Interdisciplinary Institute (IN3) em Barcelona, especialmente o Javier Toret Medina, que também era cativo na Indymedia nos anos 2000. Eles estavam a fazer algum trabalho de ponta ao teorizar estes novos movimentos sociais tecnologicamente habilitados. Havia alguma relutância em aceitar a narrativa norte-americana normalizada de que o Facebook e o Twitter eram ferramentas que os revolucionários usaram e que devíamos simplesmente aceitar que, após a Primavera Árabe, toda a mobilização ia acontecer lá.
Portanto, com o nosso antecedente na Indymedia e outros movimentos sociais, nós queríamos reclamar esse espaço. Nós queríamos dar a esses movimentos sociais uma infraestrutura digital estável, fiável e escalável e que também protegesse a sua privacidade. Mas também queríamos perceber de que eles precisam no processo político e dar-lhes os meios para debater, organizar, tomar decisões, e eventualmente governar. A parte de “governar” provou ser muito importante mais tarde, com muitos dos que participaram no projeto – incluindo eu – a serem chamados para várias posições de governo, a maioria em cidades.
Também encontrámos outro parceiro em Espanha, o Medialab-Prado, que na altura estava a criar uma ferramenta para ser usada pelo Podemos, e acabou por se tornar na principal plataforma participativa da cidade de Madrid. Isso acabaria por formar a espinha dorsal do Decidim, uma ferramenta de deliberação e governação que acabaria por ser usada não só em cidades como Barcelona e Helsinquia, mas também a nível pan-europeu, com o endosso da Comissão Europeia, do Parlamento, e do concelho da Conferência do Futuro da Europa.
Nós queríamos dar a esses movimentos sociais uma infraestrutura digital estável, fiável e escalável e que também protegesse a sua privacidade.
A D-CENT teve essa importância na criação de plataformas alternativas para a mobilização, deliberação e governança. Mas também teve uma importante dimensão ao olhar para moedas digitais sociais. Como é que isso surgiu?
Essa parte – do empoderamento económico, dinheiro, moedas complementares e o potencial das criptomoedas – foi inspirada e influenciada por Denis “Jaromil” Roio, que eu conheci na cena hacker em Itália no final dos anos 1990, quando éramos ambos bem jovens. O Jaromil vinha com um historial interessante, uma parte de si estava ligado às artes e à cultura, outra ao mundo do software livre. Ele também era activo na cena de Amsterdão, a trabalhar MonteVideo, uma instituição cultural importante na cidade. E estava a desenvolver o dyne:bolic e outros projetos criativos baseados em Ubuntu e Debian. Inevitavelmente, tornou-se um dos primeiros especialistas em Bitcoin, então nós acabámos por observar esse espaço de muito perto desde princípio. [Nota de Evgeny: lembro-me de encontrar o Max Kaiser, um dos maximalistas de Bitcoin mais sonantes hoje em dia, num evento da D-Cent, em Londres, em Dezembro de 2013!]
OK, então o Jaromil estava a seguir desde cedo. Mas qual era o racional para olharem para essas moedas e o dinheiro digital?
Por um lado, a D-cent queria promover a descentralização na esfera da participação política, por exemplo, queríamos que os cidadãos fossem consultados na hora de tomar decisões — tal como são consultados no orçamento participativo em Porto Alegre. Por outro lado, queríamos resolver a questão da concentração de poder económico e de alguma forma ligá-la às ideias do Nachira sobre ecossistemas digitais. Queríamos promover o empoderamento económico e a descentralização em simultâneo.
Então, imagina que fazes um grande projecto coletivo para um orçamento participativo. Como o financias? Como se podem financiar muitas dessas iniciativas, dado que isto era altura da austeridade e a experiência Grega fazia parte das nossas conversas do dia-a-dia? Então começámos a olhar para movimentos de moedas complementares – o Brixton Pound no Reino Unido, o WIR Bank na Suiça, e muitos outros exemplos na Europa e noutros locais. Cedo começámos a trabalhar com o Bernard Lietaer, que conhecia muito bem este espaço e tinha uma série de teorias interessantes sobre a ecologia do dinheiro. Ele foi o autor do relatório pioneiro da D-CENT sobre moedas digitais em 2015.
Já em 2013, começámos a questionar-nos sobre o que ia acontecer a todos estes movimentos de moedas alternativas e complementares dado o surgimento da Bitcoin e de outras criptomoedas. Marco Sachy, que estava envolvido com o projecto, estava a fazer algum trabalho interessante na Freecoin nessa altura (que acabou por se tornar na sua dissertação). Então, lançámos a Freecoin Toolchain e tivemos projectos piloto básicos em vários países parceiros.
Falemos brevemente da sequela do D-cent, que era chamada Decode.
Havia muito grandes assunções a conduzir esse projecto. Primeiro que tudo, tornou-se claro que a cidade se tornou o espaço para o experimentalismo democrático. Em 2015, quando os presidentes de câmara progressistas foram eleitos em várias cidades Europeias, nós vimos esta nova onda de interesse em “municipalismo democrático” . De repente, as pessoas queiram contestar esta noção de uma cidade bem financiada com fins lucrativos – incluindo, quando se tratava de tecnologias, a imagem desta cidade muito “inteligente”, onde tudo era oferecido “como um serviço” por algum fornecedor de tecnologia.
Escrevi um pequeno artigo em como podíamos passar de uma smart city para uma cidade democrática e acabei a receber uma chamada da Ada Colau da Câmara de Barcelona a convidar-me para implementar esta visão em Barcelona, como Chefe do Departamento de Tecnologia. A Decode foi uma tentativa de pensar o que estaria envolvido nessa transição, com cidadãos a gozar de mais direitos e controlo sobre Infraestruturas digitais públicas, sensores, dados, por aí.
Nós claramente queríamos mostrar que havia outros paradigmas com que pensar sobre dados; para nós, era óbvio que isso era algo colectivo e público e que aos cidadãos devia ser dada opção para decidir o que fazer com os seus dados – incluindo, claro, dando-lhes a possibilidade de partilhar os seus dados com o sector público para que mais e melhores serviços públicos pudessem ser construídos a partir daí. Assim começámos a falar de “altruísmo de dados” e “soberania de dados”, que eram conceitos centrais ao novo “Data Governance Act” da Comissão Europeia.
Queríamos mostrar que havia outros paradigmas com que pensar sobre dados.
Era importante mostrar que havia muitas opções para o que se podia fazer com os dados de cada um; que parte desses dados partilhar, que parte manter privada e em que termos. Nós fizemos vários pilotos interessantes mas tenho de admitir que a Apple nos ultrapassou quando lançaram esta atualização que requer aos utilizadores que decidam explicitamente se querem ser monitorizados e como. Nós pensámos em algo assim mas, claro, no contexto de perceber como os dados dos cidadãos, uma vez partilhados, podiam gerar valor noutro sector da https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração pública.
Para nós, a tarefa não era perceber como dar uma opção para preservar os dados de qualquer forma segura, para que os pudessem monetizar – o incentivo subjacente a muitos dos que estão no espaço da auto-soberania da identidade – mas como podíamos criar melhores serviços públicos e infraestruturas que fizessem com que a partilha dos dados levasse a uma maior criação de valor no sector público através da socialização dos próprios dados: nós chamámos-lhe um pacto social sobre os dados. É uma tarefa muito difícil de resolver, uma vez que requer a transformação do sector público, não só construindo as normas e os protocolos certos mas também regulando quem tem acesso aos dados e como.
Qual era a mensagem política mais alargada que querias passar com o Decode? Teve sucesso?
O Decode colocava a questão do poder infraestrutural das Big Tech, da sua dominância sobre toda a pilha [stack]. Por isso tentámos criar um argumento sobre política industrial; que nós, europeus, precisávamos de recuperar o controlo sobre Infraestruturas e tecnologias digitais críticas, na base de serviços básicos e de instituições do século XXI, desde a saúde à educação, do transporte à logística e distribuição. Mas, mais importante, queríamos problematizar a camada dos dados, porque nós percebíamos as várias questões fundamentais entre dados, dinheiro, reputação e identidade.
Focámo-nos na camada dos dados porque nos parecia um caminho óbvio para atacar o modelo de negócio dominante do capitalismo de vigilância. Nós não o fizemos por acharmos que controlando a camada dos dados esgotaríamos as questões sobre o poder infraestrutural das Big Tech.
Houve falhas, claro. Enquanto tentávamos escalar projectos como o Decidim, não conseguimos criar uma iniciativa pan-europeia comum no que toca à soberania tecnológica, que ligasse a dimensão política, económica e geopolítica de uma forma coerente. Não havia uma visão coerente de política industrial digital que pudesse liberar toda a pilha de que a Europa precisa, já para não falar na sua totalidade. Em nossa defensa, tínhamos muito pouco dinheiro; 5 milhões de euros – esse era o orçamento da Decode, espalhado pelos diversos parceiros do projeto – o que não é muito, dadas as ambições.
Enquanto tentávamos escalar projectos como o Decidim, não conseguimos criar uma iniciativa pan-europeia comum no que toca à soberania tecnológica, que ligasse a dimensão política, económica e geopolítica de uma forma coerente.
Nós também estávamos demasiado adiantados em muitos aspetos. O que estávamos a teorizar com a Freecoin e moedas digitais sociais chegou alguns anos cedo demais; hoje está completamente dentro da bolha das cripto, tirando a parte política e as preocupações sociais que tínhamos. Como resultado, o elaborado enquadramento institucional que desenhámos está ausente da maioria dos projectos cripto.
Se olharmos para o panorama global e estudarmos as escolhas que a Europa enfrenta hoje em dia, quais são?
Bem, há sempre a opção de alavancar a política industrial e investir em soberania tecnologia para reconstruir a pilha — tal como os chineses têm feito, mas de acordo com os nossos princípios e valores democráticos. Precisaríamos de novas empresas para o fazer porque as incumbentes, incluindo as empresas de telecomunicações, provavelmente não estão à altura do desafio. Como criamos as empresas de que precisamos? Talvez o mercado de capitais de risco, que na Europa atrai muito dinheiro do estado, pudesse ser usado para isso.
Isso também explica porque me encontro, eu própria, a liderar o fundo de inovação italiano, um fundo de capital de risco apoiado pela instituição de promoção nacional italiana Cassa Depositi e Prestiti (CDP), análogo ao francês Banco Publico de Investimento (BPI) e o alemão KfW. Como asseguramos que o investimento de capital de risco na Europa não segue o caminho americano, que em vez de se focar em taxas de gestão e outras coisas do género, se foca na criação de valor para o público enquanto almeja a muito necessária soberania tecnológica para a Europa? E como o fazemos para que start-ups europeias não sejam compradas pelo Facebook ou pelo fundo soberano da Arábia Saudita?
Como podemos cumprir as promessas da descentralização, descarbonização, da economia solidária, do novo estado social, através de empresas a ser criadas e financiadas? Do mesmo modo, quando pensamos em habilitar a participação política – para ajudar as pessoas a lutar contra o aquecimento global ou a resolver os seus próprios problemas locais – como é que o fazemos de uma forma que vá para lá da lógica de mercado e que não implique transformar cada pessoa num agente económico respondendo a incentivos financeiros de qualquer tipo? Como é que o fazemos sem financiar a política?
Isso soa a que não és muito fã de aproveitar a financeirização para servir necessidades sociais e políticas, como muitos proponentes da crypto e da Web3 têm argumentado…
Não sou. O que eu acho suspeito acerca das DAOs e da tokenização e da Web3 é a ideia de que querem ligar todas as instituições a uma lógica de mercado de acções: se as coisas correm bem, o valor sobe – e isto criar uma espécie de mecanismo disciplinador. Queremos mesmo “optimizar” os nossos sistemas de saúde ou de educação deste modo? Mesmo no que toca a empresas, nós ainda temos empresas públicas com uma missão pública, e mesmo que tenham sido privatizadas isso não elimina a sua missão.
A tokenização, para mim, é a última manifestação do que podemos chamar a super-financeirização de tudo, possibilitada pela digitalização dos processos e objetos físicos. Agora qualquer pessoa pode associar direitos de propriedade intelectual a tudo; fazer smart-contracts de tudo; permitir transações em tudo. Nós lutamos contra essa lógica desde cedo, com o Decode, quando as pessoas começaram a argumentar de que os dados podiam ser uma classe de activos, algo que se acumula, para ser comprado ou vendido. Nós sempre defendemos que se podia ter uma perspectiva mais social e pública sobre os dados, especificamente com direitos de propriedade e acesso coletivo; os dados não têm de ser tratados como algo proprietário, mas como algo que pode criar valor público, redistribuir riqueza e recompensas.
Pode a blockchain e as cripto oferecer alguma ajuda aqui? Talvez, mas teríamos de mudar todo o sistema tecnológico, por completo. Precisaríamos de dizer que, em vez de blockchains para criar smart contrats que fazem cumprir direitos de propriedade, queríamos blockchains que forçassem “o direito à auto-determinação informativa” ou “o direito ao conhecimento”? Ou até o direito a inspecionar os algoritmos de forma a perceber o seu impacto… por exemplo, isto é muito relevante hoje em dia no que toca à negociação coletiva e aos direitos dos trabalhadores das plataformas da economia gig. Isto requeria uma transformação significativa na jurisprudência e uma afinação na nossa noção de bem público e depois, de alguma forma, encaixá-lo na blockchain.
Estou a pensar nos debates sobre ID digital no Sul Global – ex: Índia – onde as tecnologias biométricas têm sido vistas tanto como mecanismos de controlo como como forma de reclamar direitos de bem-estar que de outra forma não poderiam fazer. Os efeitos são claramente ambíguos e dependente da política da situação.
Esse é exactamente o problema. Há uma grande luta pela democratização do estado, por uma nova noção de público democrático. Nós ou ganhamos ou perdemos essa luta. Esta tem sido a minha resposta frequente para defensores de coisas como o “cooperativismo de plataformas”. No fim de contas, estas cooperativas não podem e não existem no vácuo. É preciso que o Estado decrete novos enquadramentos regulatórios, novos padrões de propriedade e novas estruturas dentro de uma economia; o Estado é a única ferramenta que temos, é a principal e a única instituição que temos para regular e criar leis que previnam as grandes empresas de usurparem a sua posição dominante e abusarem do seu poder de mercado. Por isso, em última instância, se queremos democratizar a economia, precisamos do estado. Precisamos de reclamar esse poder, não fugir da responsabilidade ao invocar o poder das cripto, do mercado ou da financeirização.
O Estado é a única ferramenta que temos, é a principal e a única instituição que temos para regular e criar leis que previnam as grandes empresas de usurparem a sua posição dominante e abusarem do seu poder de mercado.
Como alguém que trabalha nesta área há mais de 20 anos, o que achas da visão de emancipação que é agora oferecida pelos defensores da Web3?
Bem, antes de mais, eu não vejo como é que a Web3 – focada como está na economia do criador e na tokenização – nos permitiria lidar com questões relacionadas com poder infreaestrutural no futuro.. coisas como banda larga, 5G, centros de dados, computação em nuvem, IA, computação quântica, microprocessadores, a nova geração de baterias. Não é só o modelo de negócio baseado em publicidade da Web2.0 que nos deve preocupar. O que é a Web3 tem para oferecer aqui? Não muito. O discurso da Web3 aceita o status quo actual como um dado adquirido e move a discussão para todos os outros aspetos.
A maioria das coisas acerca da DeFi [Finança Descentralizada] parece-me apenas um fenómeno temporário – que resulta da inação dos bancos centrais e da demora em lidar com as ameaças que emergem de deixar esta indústria desregulada. Nesse sentido, a China parece ter visto através de toda a retórica da Web3, e feito as perguntas estrategicamente corretas, quer em termos de controlo da pilha, das baterias à IA, de modo a estabelecer controlo sobre o sector das FinTech de uma forma que reduziria o risco para o sistema financeiro do país. A Europa, claro, não funciona no mesmo clima político, pelo que agir tão resolutamente sobre a Web3 pode não ser uma opção (também por razões geopolíticas). É difícil imaginar os decisores políticos chineses a passar algum tempo a discutir Dogecoin.
Qual é a questão que os defensores da descentralização – da forma como esta ideia surge no espaço cripto/Web3 – entendem mal, a teu ver?
O que eu aprendi com o Francesco Nachira e o seu interesse em construtivismo e teorias da linguagem e da cognição é que a descentralização não pode passar só pela descentralização das Infraestruturas. Também tem de haver uma estratégia para a descentralização das instituições.
É por isso que sempre apontámos para a descentralização do poder económico e político como uma condição necessária para concretizar o verdadeiro potencial emancipatório da descentralização de infraestruturas digitais. Quando olho para as promessas feitas pelos proponentes das DAOs e dos NFTs, eles parecem acreditar que a tecnologia por si só fará o trabalho: se programarmos a DAO corretamente, ela vai assegurar uma nova forma institucional e essa forma terá resultados revolucionários, etc. Isso parece-me uma perspectiva muito limitada e muito virada para dentro.
Claro que não é só descentralizar o poder. Também é criar novas instituições para manter o poder – que actualmente, tomou diversas formas – em cheque. Onde estão essas novas instituições no que toca às crypto e à Web3? Toda a gente parece acreditar que as grandes plataformas tecnológicas, Wall Street e Hollywood vão ficar quietos enquanto são disrompidos pelas cripto. Isto soa plausível para alguém?
Isto faz-me lembrar das experiências que tivemos em Itália no início dos anos 2000, quando alguns de nós – incluindo alguns dos hackerlabs – juntámos forças aos chamados trabalhadores em cadeia – aqueles que trabalham para empresas com o WalMart — que gozavam de muito poucos dos tradicionais direitos laborais. Nós insistimos em dar-lhes um rendimento mínimo, em criar novas formas de sindicatos para os defender, e muito mais – mas estas iniciativas foram recebidas com silêncio e muitas vezes com alguma hostilidade vinda dos sindicatos tradicionais, que não estavam a perceber que a precaridade e a exploração estavam a tomar novas formas, anteriormente desconhecidas para eles. Mas, imagina quanto tempo teríamos ganho se essas instituições se tivessem formado, de facto, nessa altura? Isto teria virado completamente a luta contra a Uber e a Deliveroo numa direção completamente diferente, pelo menos na Europa….
Tenho uma última questão. Para ti, tem sido uma trajetória profissional muito interessante, saltando da Indymedia – o primeiro site de media independente online – para o conselho de gestão da RAI, uma das televisões públicas europeias mais respeitas. Que transformações podemos esperar da tua estadia lá?
Num certo sentido, eu penso na minha missão lá pelo prisma das minhas experiências anteriores com os Pontos de Cultura e os Ecossistemas Digitais, e mais genericamente no contexto da missão de reclamar a soberania digital a Europa. Como podemos reter e reformar um media público que oferece conteúdo de alta qualidade mas também que informa o público em geral e serve uma missão pública? Redes de transmissão não-comercial correm o risco do declínio e do desaparecimento, porque enfrentam desafios em várias frentes, da publicidade à produção de conteúdos. Agora, de repente, têm de competir com o Facebook e a Google e o YouTube, a Netflix e a Amazon…
A minha própria visão sobre isto é que os media públicos podem aprender uma coisa ou duas da Indymedia. Temos de pensar em usar os média públicos para agregar conteúdo de alta qualidade e fazer curadoria; precisaríamos de alavancar API’s abertas e encontrar uma nova de atrair conteúdo produzido por todo o tipo de agentes que estão, actualmente, fora do ecossistema, seja em newsletters ou festivais, ou jornais, podcasts ou outros formatos completamente novos. Os meios de comunicação social públicos podem trazer uma enorme visibilidade a essas fontes e podem também contextualizá-las muito melhor, dados os enormes arquivos que possuem. Talvez, vejamos que há uma forma de fazer curadoria e recomendação de forma sensata – utilizando dados e algoritmos éticos no interesse público. É aqui que os média públicos podem fazer melhor trabalho, mais responsável do que o que se pode esperar dos algoritmos do Netflix.
Precisaríamos de alavancar API’s abertas e encontrar uma nova de atrair conteúdo produzido por todo o tipo de agentes que estão, actualmente, fora do ecossistema, seja em newsletters ou festivais, ou jornais, podcasts ou outros formatos completamente novos.
Mas será que precisamos mesmo de algo disto, dado que a Web3 e o crypto em breve abririam a “economia criadora” de produtores e curadores de conteúdos independentes?
Estou convencida de que sim. Fazer a curadoria e a contextualização das coisas bem é uma proposta cara e ambiciosa; é por isso que nenhuma inovação no mundo das cripto é provável que substitua museus ou livrarias – nem mesmo os NFTs. A cultura e os média, bem feitos, são empreendimentos dispendiosos, e se esperamos que continuem a desempenhar um papel importante no nosso sistema democrático, temos de estar preparados para pagar por eles como bens públicos – e não como algo financiado exclusivamente através de publicidade, retenção de dados, ou qualquer que seja o último modelo.
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