Nos últimos tempos, as gigantes tecnológicas como o Facebook têm perdido a sua aura de inovação milagrosa e têm passado a estar debaixo de olhar atento de reguladores e jornalistas. Depois de sucessivos processos e multas, muito se debate sobre as consequências provocadas no mundo por os impérios tecnológico. No último mês foi de Mark Zuckerberg a concentrar todas as atenções da imprensa e do público em geral. The Facebook Files é uma série do Wall Street Journal (WSJ), que podes encontrar por aqui e cujos “capítulos” têm vindo a ser progressivamente lançados por este jornal norte-americano desde o início de Outubro, revelando segredos escondidos da maior rede social do mundo, que podem comprometer o seu futuro.
Este trabalho do WSJ resulta de um conjunto de documentos obtidos internamente pela denunciante Frances Haugen, mas não é tudo o que se escreveu sobre a empresa de Sillicon Valley. Os Files são uma pequena parte dos Facebook Papers, um esforço que junta dezenas de jornalistas num consórcio e que integra outros meios além do do WSJ. Ao de cima, chegam-nos novas revelações sobre as práticas do Facebook, mas também denúncias de situações que já todos conhecíamos, incluindo a própria empresa, mas que nunca resolveu.
Assim, a empresa de Mark Zuckerberg volta a estar debaixo de fogo. Para o reputado jornalista Casey Newton, que integra com a sua newsletter Platformer o consórcio de jornalistas, o Facebook vive a maior crise desde a Cambridge Analytica. Já a CNN vai mais longe e escreve que se trata da “mais intensa e abrangente crise na história de 17 anos da empresa”, uma vez que o Facebook enfrenta pela primeira vez e ao mesmo tempo denunciantes, comunicação social e perguntas do Congresso.
Através dos Facebook Papers, percebemos como o Facebook coloca os seus interesses particulares, como o lucro, à frente do interesse público, não resolvendo questões importantes como a proliferação de desinformação ou o discurso de ódio nas suas plataformas, e como o que o Facebook diz publicamente nem sempre corresponde ao que a empresa faz internamente – e muitas vezes é o seu contrário.
Vamos por partes.
Frances Haugen: a denunciante do Facebook
The Facebook Files, composto por vários artigos e podcasts, resulta de um trabalho de análise de centenas de páginas de documentos fornecidos aos jornalistas por Frances Haugen. Ex-funcionária do Facebook, 37 anos, Frances Haugen identifica-se como denunciante e disse, numa entrevista ao programa 60 Minutes, que decidiu falar por entender que o Facebook não estava a levar a sério o seu impacto na sociedade, colocando o seu lucro à frente do bem comum e não fazendo o suficiente para combater o ódio, a violência e a desinformação.
“O que vi no Facebook vezes sem conta foram conflitos de interesse entre o que era bom para o interesse público e o que era bom para o Facebook. E o Facebook, repetidamente, escolheu optimizar os seus próprios interesses, como fazer mais dinheiro”, disse na mesma entrevista, citada pelo The Guardian. “A versão do Facebook que existe hoje está a dividir as nossas sociedades e a causar violência étnica em todo o mundo.”
Com um currículo de mais de uma década no sector da tecnologia, passando por empresas como o Pinterest e a Google, Frances Haugen juntou-se ao Facebook em 2019 como gestora de produto numa equipa de integridade cívica, que trabalhava questões eleitorais a nível global. Frances diz que aceitou o emprego com a motivação de contribuir para a democracia e, em particular, para o combate à desinformação – um problema que lhe era pessoal, uma vez que havia perdido uma amizade importante para teorias conspirativas e nacionalistas. “Uma coisa é estudar desinformação, outra é perder alguém para isso”, comentou numa entrevista ao WSJ.
Foi quando a equipa de integridade cívica do Facebook deixou de existir após as eleições norte-americanas de 2020, que Frances percebeu que a empresa de Zuckerberg não estava disposta a tomar as medidas necessárias para resolver problemas como a desinformação, embora tivesse as ferramentas para tal. Decidiu deixar a empresa em Maio deste ano, tendo antes preparado o leak que viria a entregar ao WSJ. Frances Haugen, que estará presente na edição 2021 do Web Summit, em Lisboa, chega a denunciante (ou whistleblower) com uma postura construtiva: ao WSJ disse que quer solucionar a maior das redes sociais através de uma mudança interna, não fazer-lhe mal. Numa mensagem que deixou na plataforma interna do Facebook, no momento de despedida, terá escrito: “Não odeio o Facebook. Adoro o Facebook. Quero salvá-lo.”
Tal como Snowden e outros whistleblowers, Frances não se encarregou ela mesma de divulgar os documentos internos que tinha retirado dos sistemas internos da empresa; entregou essa tarefa aos jornalistas do WSJ – o primeiro encontro terá sido com a repórter Jeff Horwitz pela primeira vez em Dezembro do ano passado, segundo conta o New York Times. Desde então, Frances tem trabalhado com os jornalistas no lançamento progressivo das informações que leakou do Facebook, segundo um calendário rigoroso. Esse trabalho é visível na página da série The Facebook Files, onde tem havido artigos e podcasts a sair sucessivamente, mas também nos outros meios de comunicação social que integram os Facebook Papers.
Dos Facebook Files aos Facebook Papers
“O Facebook sabe, em acutilante detalhe, que as suas plataformas estão repletas de falhas que causa danos, muitas vezes de maneiras que apenas a empresa entende perfeitamente. Esta é a conclusão central de uma série do Wall Street Journal, com base numa revisão de documentos internos do Facebook, incluindo relatórios de pesquisa, discussões online entre funcionários e rascunhos de apresentações para as chefias https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistrativas.
Repetidamente, mostram os documentos, investigadores do Facebook identificaram os efeitos nocivos das plataformas. Repetidamente, e apesar das audiências no Congresso, das próprias promessas e das denúncias na comunicação social, a empresa não os corrigia. Os documentos oferecem, talvez, a imagem mais clara até ao momento do quão amplamente conhecidos dentro da empresa são os problemas do Facebook, até pelo próprio director executivo.”
– Facebook Files
A introdução de The Facebook Files do WSJ não deixa margem para dúvidas: este trabalho jornalístico é sobre os mesmos problemas de sempre, aqueles temas que já estamos cansados de saber e que o Facebook aparentemente também conhece, mas não resolve. Mas também é sobre novas informações. Até ao momento, estão publicados 11 artigos, que podes ler aqui, e sete podcasts, que podes encontrar aqui.
Como referido, o trabalho The Facebook Files do WSJ é apenas uma ponta dos chamados Facebook Papers – o nome do conjunto de documentos internos do Facebook obtidos por Frances Haugen e entregues não só aos jornalistas de um consórcio (que integra o WSJ), como ao Congresso norte-americano, com quem Frances decidiu desde logo colaborar.
Numa declaração perante o Comité do Senado para o Comércio, Ciência e Transporte, a 5 de Outubro, Frances Haugen disse que o Facebook precisa de assumir “falência moral”, admitindo que tem um problema e que precisa de ajuda para resolvê-lo. “O Facebook está preso em um ciclo de feedback do qual não consegue sair. Precisam de admitir que fizeram algo errado e que precisam de ajuda para resolver os problemas. E isso é a falência moral.”
Se foi ao programa 60 Minutes da CBS News que deu a primeira entrevista e ao WSJ que primeiro começou a lançar os Facebook Papers, este gigante leak de documentos internos de uma das mais poderosas empresas do nosso tempo tem sido tratado por um consórcio de jornalistas, envolvendo 16 órgãos de comunicação social: Associated Press, Reuters, The New York Times, The Washington Post, CNN, NBC News, CBS News, USA Today, Financial Times, The Atlantic, FOX Business, NPR, Bloomberg, Politico, Wired e ainda o Platformer, newsletter do jornalista Casey Newton (The Verge).
O que dizem os documentos?
Deixamos-te uma síntese do que, à data deste artigo, os Facebook Files e os Facebook Papers trouxeram de novo, bem como sugestões directas de leituras para que possas aprofundar cada um dos pontos:
- o Facebook excluiu uma certa elite das regras que deveriam ser válidas e iguais para todos os utilizadores das suas plataformas. Assim, conteúdo partilhado por quem estivesse nessa “whitelist” poderia não ser removido pela moderação do Facebook como normalmente seria. O programa chamava-se XCheck e, apesar de a empresa dizer que era bem intencionado, já anunciou que o vai rever;
- o Instagram afecta negativamente a saúde mental de uma percentagem considerável de utilizadores adolescentes, sobretudo raparigas, conforme um trabalho interno de investigação do Facebook evidenciou. A empresa terá tomado conhecimento mas ignorado estes efeitos negativos da aplicação, e nunca tornou estas investigações públicas ou disponíveis para académicos e legisladores que as solicitaram. A documentação está aqui;
- as alterações feitas ao algoritmo do Facebook em 2018 para aumentar as interacções na rede social (que estavam a baixar) e ao mesmo tempo melhorar o bem estar dos utilizadores, estavam a deixar esses utilizadores mais furiosos. Zuckerberg terá resistido a implementar soluções propostas pela equipa, com receio de que as interacções baixassem;
- a resposta do Facebook a situações em que as suas plataformas são usadas para tráfico de droga, abusos contra mulheres, violência contra minorias étnicas, pornografia, venda de órgãos ou acções de governos contra dissidentes, especialmente em países menos desenvolvidos, mostrou ser fraca e inadequadas em muitos casos. O Politico acrescenta: o Facebook fez pouco para moderar publicações nos países mais violentos do mundo. A CNN concentra-se no caso do tráfico humano;
- Mark Zuckerberg, mesmo definindo metas e prioridades claras como a promoção da vacinação contra o Covid-19, terá dificuldade em comandar a empresa até esse objectivo. Apesar de ter feito da promoção vacinal uma prioridade, o director executivo do Facebook viu as suas plataformas invadidas com mensagens de dúvida sobre a gravidade da pandemia e as respostas das autoridades à mesma, sem grande acção em sentido contrário;
- o Facebook tem planos para atrair pré-adolescentes (ou seja, menores de 13 anos que actualmente não se podem registar no Facebook ou Instagram), porque “são um público valioso, mas inexplorado”. Um dos esforços da empresa estava a ser através da aplicação Instagram Kids, cujo desenvolvimento o Instagram decidiu agora interromper. O Facebook já tinha criado a aplicação Messenger Kids. (Note-se que não é a única tecnológica com a estratégia de atrair pré-adolescente – também a Google o faz com o YouTube Kids, por exemplo;)
- os engenheiros do Facebook contrariam os seus executivos na promessa de utilizar Inteligência Artificial (IA) para resolver os problemas de moderação de conteúdo partilhado pelos utilizadores, mostrando que a IA não está ainda capaz de o fazer de forma eficaz e visível;
- o Facebook não está a conseguir detectar os utilizadores que criam múltiplas contas na sua rede social principal, o que levanta dúvidas sobre como a empresa mede a sua audiência. O Politico fala na utilização de múltiplas contas por parte de um mesmo indivíduo com o intuito de espalhar informação tóxica sobre política;
- os serviços do Facebook são usados para espalhar o ódio religioso na Índia. O New York Times e o Washington Post também publicaram histórias sobre este caso. A CNN fala de uma situação semelhante na Etiópia;
- as questões políticas costumam ser centrais nas discussões internas que ocorrem no Facebook. A empresa começou a suprimir cada vez mais movimentos políticos que considera perigosos, como o Patriot Party, que deu origem ao ataque de 6 de Janeiro ao Capitólio norte-americano – tal acção pode abrir uma nova caixa de pandora ao colocar o Facebook a tomar partidos. Já o Politico conta como o Facebook teve problemas em conter mensagens de desinformação e de ódio relacionadas com o ataque, depois de ter dissolvido a equipa que tratava directamente das questões eleitorais. A CNN também tem esta história, tal como o Washington Post. O Facebook terá sido atraiçoado pelo seu próprio design.
Outras sugestões de leitura:
- O New York Times conta-nos a história por dentro deste gigante leak de documentos do Facebook;
- relata-nos também, por dentro, como é o combate à desinformação no contexto eleitoral no Facebook;
- o The Washington Post coloca Mark Zuckerberg debaixo de fogo por ter escolhido o crescimento da empresa à segurança pública e questiona se o actual director executivo do Facebook não deveria ser destituído do cargo pela Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC).
- o The Verge aprofunda o problema do Facebook com a atracção de públicos mais novos. O The Atlantic também pegou neste assunto: o que aconteceu quando o Facebook se tornou o Boomerbook;
- a Wired recolheu soluções para o Facebook a partir dos seus próprios funcionários e fala-nos dos funcionários que desistiram do Facebook;
- Kevin Roose, no New York Times, escreve que o Facebook é mais fraco do que pensávamos;
- o The Atlantic fala dos Facebook Papers com a qualidade e profundidade a que já nos habituou, aqui e aqui, dizendo que o Facebook falhou a 90% dos seus utilizadores.
Os Facebook Papers começaram a ser publicados pelo consórcio nesta segunda-feira. O volume de artigos tem sido tal que o Protocol decidiu fazer aqui uma compilação do que saiu. Se falhámos algum artigo nesta lista ou tens alguma nova sugestão de leitura, escreve-nos para marioandre@shifter.pt ou fala no Telegram.
Dos EUA até Londres (e até Lisboa), e a resposta do Facebook
Frances Haugen, com a sua equipa de advogados, não se limitou a facultar os documentos que obteve do Facebook aos jornalistas do WSJ e do restante consórcio. Entregou-os à Comissão de Valores Mobiliários dos Estados Unidos (SEC, na sigla norte-americana), a agência federal de regulação e supervisão dos mercados financeiros, semelhante à portuguesa Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM). A queixa que Frances apresentou à SEC – que trata de empresas cotadas em bolsa como é o caso da de Mark Zuckerberg – era uma das poucas opções que tinha, dado o limbo regulatório em que o Facebook actua.
No dia 5 de Outubro, Frances Haugen testemunhou no Congresso norte-americano, perante o Comité do Senado para Ciência e Transporte Comissão de Comércio, Ciência e Transporte. Esta segunda-feira, 25 de Outubro, falou no Parlamento britânico. Dia 1 de Novembro, estará num evento mais popular: na abertura do Web Summit, em Lisboa, que terá transmissão gratuita através do canal de YouTube do evento.
O Facebook não ficou calado perante as denúncias de Frances Haugen, os Facebook Files ou os Facebook Papers. Numa thread no Twitter através da sua conta de relações públicas, a empresa escreveu que os artigos que têm sido publicados pela comunicação social resultam de um “cronograma estabelecido por uma equipa de relações públicas que trabalhou nos documentos previamente” e que essa “selecção curada de milhões de documentos sobre o Facebook não pode de forma alguma ser usada para tirar conclusões justas”. Na mesma mensagem, publicada a 18 de Outubro e assinada por John Pinette, vice-presidente de comunicações da empresa, acrescentou: “Às organizações que notícias que gostariam de ir além de uma campanha ‘gotcha’ orquestrada, estamos disponíveis para falar com substância.”
Já internamente, também houve reacções do Facebook. Numa mensagem obtida pelo Axios, Nick Clegg, vice-presidente dos assuntos globais, avisou os funcionários: “Precisamos nos preparar para mais manchetes más nos próximos dias, estou com medo.” Nick advertia, na mesma mensagem interna, que a cobertura presente ou futura da comunicação social poderia “conter caracterizações erróneas das nossas investigações, dos nossos motivos e das nossas prioridades” e que devemos “ouvir e aprender com as críticas quando estas forem justas e reagir com veemência quando forem”. “Mas, acima de tudo”, disse ainda às equipas do Facebook, “devemos manter nossas cabeças erguidas e fazer o trabalho que temos feito até aqui”.
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