O Estado de direito foi destaque na Europa em 2020. O primeiro relatório da Comissão Europeia (CE) “suscitou sérias preocupações” na Hungria e na Polónia, por exemplo. Mas como impedir a deterioração desta que é, segundo a CE, a “base das nossas sociedades”? A solução parece estar escondida entre notas e moedas.
Estado de Direito: Compromisso com Hungria e Polónia para Desbloquear a Bazuca
Em 2020, a CE publicou o seu primeiro Relatório Anual sobre o Estado de Direito na UE, em que aborda quatro pilares: “os sistemas de justiça nacionais, os quadros de luta contra a corrupção, o pluralismo e a liberdade dos meios de comunicação social”. O objetivo deste relatório é “alargar o atual conjunto de ferramentas de que a União Europeia (UE) dispõe (…) e promover uma cultura de debate inclusivo e do Estado de direito em toda a UE”.
O Estado de Direito, que a presidente von der Leyen classifica como “a base das nossas sociedades”, foi um tema em destaque no ano que agora termina, e promete continuar a sê-lo no que se segue. No entanto, segundo Laurent Pech, professor na Middlesex University of London, “em momento algum na lei primária da UE – isto é, nos tratados – há referência ao Estado de direito ou ao que ele significa, com exceção de uma passagem na jurisdição do Tribunal de Justiça da UE (TJUE)”.
A CE refugia-se no Artigo 2.º do Tratado da UE, que sustenta a União “nos valores (…) do Estado de direito”, mas peca por não esclarecer o que significa. A própria adesão à UE obriga ao “cumprimento de determinados critérios”, um dos quais “o Estado de direito” – sem definir o conceito.
Porém, no primeiro relatório sobre o Estado de direito, a CE elabora pela primeira vez os seus princípios. São eles o princípio da legalidade, da segurança jurídica, a proibição do exercício arbitrário do poder executivo, a proteção judicial efetiva por tribunais independentes, e ainda o princípio do controlo jurisdicional efetivo.
Em dois Estados-membros da UE, na Hungria e na Polónia, a independência do sistema judicial tem sido posta em causa, assim como o respeito pelos direitos humanos e a luta contra a corrupção. Segundo R. Daniel Kelemen, professor na Universidade Rutgers, “fundos da UE têm ajudado a sustentar autocracias nacionais”. Também a pertença à União, que depreende a aderência aos valores comuns, “é um veículo de legitimação destes países e dá luz verde à entrada de investimento direto estrangeiro”.
Mas deve a UE garantir fundos apenas a Estados-membros que respeitem os princípios do Estado de direito? 77% dos europeus acreditam que sim, e as instituições europeias também. No passado mês de novembro, o Parlamento Europeu (PE) e o Conselho da UE chegaram a um acordo provisório para legislar um mecanismo que permitiria suspender pagamentos orçamentais – Fundos Europeus Estruturais e de Investimento (FEEI) – a um Estado-membro que viole o princípio do Estado de direito. Este mecanismo, já aprovado por maioria qualificada no Conselho, surgiu numa altura em que os Estados-membros estavam em negociações para aprovar o próximo orçamento comunitário (Quadro Financeiro Plurianual [QFF], €1074,3 mil milhões) e o fundo de recuperação (NextGenerationEU, €750 mil milhões). Porém, tanto a Hungria como a Polónia ameaçaram bloquear o pacote final, em retaliação contra a condicionalidade do Estado de direito.
Perante este deadlock, a presidente da CE admitiu que proporia um NextGenerationEU a 25 países – todos menos Hungria e Polónia – caso as negociações não avançassem. Novamente, esta decisão teria consequências na aprovação do QFF e poderia forçar um orçamento de emergência. Neste cenário, o executivo aponta para cortes entre os 50% e 75% em política de coesão.
No entanto, não foi necessário chegar à solução a 25. No início de dezembro, a presidência alemã do Conselho da UE, após negociações com Hungria e Polónia, apresentou um plano para desbloquear o impasse negocial do QFF. Segundo este novo esquema, os critérios para associar o Estado de direito aos FEEI não são aplicados até o TJUE decidir sobre a sua legalidade. Para os professores Kim Lane Scheppele, Laurent Pech e Sébastien Platon, “o suposto Guardião independente dos Tratados é assim instruído a adiar a adoção desta Regulação sobre a condicionalidade”.
No Conselho Europeu (EUCO) dos dias 10 e 11 de dezembro, os chefes de Estado e de Governo da UE aprovaram a proposta da presidência alemã. Já no dia 16 do mesmo mês o PE votou favoravelmente a aprovação do documento, garantindo assim que no dia 1 de janeiro de 2021 os países da UE – incluindo Hungria e Polónia – poderão dar início ao processo de recuperação económica.
Críticas às conclusões do EUCO não demoraram a chegar. Laurent Pech refere que se trata “de mais uma forma de Merkel satisfazer autocratas, com a cumplicidade da sua antiga ministra da defesa [Ursula von der Leyen]”. Já Alberto Alemanno e Merijn Chamon, professores de direito europeu, defendem que “o EUCO não só agiu para lá das responsabilidades que lhe são conferidas (ultra vires), como também infringiu as prerrogativas do PE e do Conselho da UE, e o princípio do equilíbrio institucional previsto no Artigo 13.º do Tratado da UE”. Na base do seu argumento está o facto de o EUCO avançar uma data para o regulamento ser aplicável (1 de janeiro de 2021). De acordo com os professores, “como a data (dies a quo) de aplicação do mecanismo obriga a uma escolha política, nem a CE sozinha (Artigo 290.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE) nem a fortiori o EUCO (Artigo 15.º(1) do Tratado da UE) se podem apropriar deste poder”. Em suma, concluem, “o EUCO tentou dar instruções à Comissão”, violando a lei primária da UE.
Tudo considerado, Pech prevê que “os governos da Hungria e da Polónia façam por anular a nova ferramenta [condicionalidade do Estado de direito] e que a CE use processos judiciais como uma desculpa para não utilizar o mecanismo até haver um parecer do TJUE”. No mesmo sentido, espera que “a CE recorra ao Artigo 260.º do Tratado sobre o Funcionamento da UE para sancionar financeiramente, por exemplo, a inconformidade de Orbán [primeiro-ministro húngaro] com as decisões do TJUE”. Finalmente, antecipa “a utilização dos procedimentos do Artigo 258.º do mesmo tratado”, que prevê a elaboração de um parecer fundamentado sobre o incumprimento de uma qualquer obrigação por parte de um Estado-membro, havendo a possibilidade de o caso ser transferido para o TJUE – daí com eventuais sanções.
Contudo, há quem defenda que este novo mecanismo é desnecessário. R. Daniel Kelemen e Kim Lane Scheppele notam que, “apesar de estas novas propostas serem desejáveis”, “a base legal para cortar FEEI a Estados-membros incumpridores já existe nas disposições comuns relativas aos fundos”. De facto, o regulamento indica que “[s]e a CE (…) ou o Tribunal de Contas Europeu detetarem irregularidades que revelem uma deficiência grave no funcionamento dos sistemas de gestão e de controlo, a correção financeira resultante deve reduzir o apoio dos Fundos destinados ao programa operacional”. Para os professores, “um país sem Estado de direito não consegue gerar sistemas de gestão e controlo efetivos”. Logo, é-lhe cortado o apoio dos fundos.
Proteção dos Direitos Humanos na União
A respeito dos direitos humanos, a CE apresentou no início de dezembro a nova Estratégia para Reforçar a Aplicação da Carta dos Direitos Fundamentais na UE. Esta estratégia visa complementar o Plano de Ação Europeu para a Democracia e o Relatório sobre o Estado de Direito, e assim “promover e proteger os direitos e os valores fundamentais da UE”. A partir do próximo ano, o executivo apresentará anualmente um relatório em que analisará a sua aplicação nos Estados-membros em domínios específicos. Em 2021, o foco serão os direitos fundamentais na era digital.
Outras iniciativas da CE para 2021 a respeito da democracia europeia incluem: digitalização de cooperação judicial transfronteiriça, uma estratégia para os direitos das crianças, uma proposta para a prevenção e combate de formas específicas de violência de género, uma iniciativa para alargar a lista de crimes na UE a todas as formas de crime de ódio e discurso de ódio.
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Artigo de Nuno Martins. Licenciado em Ciências da Comunicação pela NOVA/FCSH, Mestre em Ciência Política pelo ISCTE. Interessado no que se passa na Europa e no Extremo Oriente.