A ânsia de ver o mundo lá fora

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Ilustração de Los Pepes Studio (@lospepesstudio)/DR

A ânsia de ver o mundo lá fora

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Este artigo foi publicado na 1ª edição da Revista do Shifter, dedicada às mudanças no mundo trazidas pela pandemia de Covid-19.

Se quiseres ouvir este artigo agora podes fazê-lo! Este é o primeiro de vários artigos lidos do Shifter que vamos lançar daqui para a frente. Podes consultá-los nas plataformas do costume.

Sara Dâmaso vive em Madrid, onde estuda Realização de Cinema. Era lá que estava quando o mundo começou a fechar-se, pandémico. Fala num início desafiante, em que as coisas fecharam de um dia para o outro, “num estado de emergência super vigilante e proibitivo” que a deixou tensa ao ponto de começar a odiar sair de casa. “Começava a hiperventilar com a ideia de ir meter o lixo à rua. Quando finalmente consegui viajar para Lisboa, quase que perdi o autocarro porque a ideia de entrar num Uber era surreal e impensável.”

Tem 24 anos e vive há quatro com um diagnóstico de ansiedade que “toma a forma de agorafobia e pensamentos OCD” que não consegue controlar ou diminuir. Confessa que a pandemia veio numa altura em que passava por uma das suas “fases mais complicadas” e que, talvez por isso, o início tenha sido “uma tentativa de auto-sabotagem completa.” “Não arranjei a maneira mais saudável de lidar com tudo porque não me permiti a qualquer tipo de resposta emocional ao que estava a sentir. Pensava sempre ‘aguenta até estares em Lisboa’. (…) Depois quando regressei, fiz a quarentena em Sesimbra e continuava a não conseguir chorar, já estava a achar estranho. Até que entrei na minha rua e comecei a soluçar instintivamente.” 

Já em Maio, o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde afirmava ter dados que demonstravam que o impacto da pandemia de Covid-19 na saúde mental da população mundial era “extremamente preocupante”. Essa consciência foi sendo ganha globalmente e de forma crescente à medida que relatos como o da Sara se foram divulgando e que vários especialistas e profissionais de saúde foram agindo e sendo vocais sobre a importância do tema, eternamente estigmatizado.

Pedro Morgado é médico psiquiatra e professor da Escola de Medicina da Universidade do Minho. Liderou um estudo com o objectivo de “caracterizar a saúde mental dos portugueses durante a pandemia mas sobretudo compreender de que forma é que os sintomas evoluíram ao longo do tempo.” Na conclusão, refere que “um número significativo de pessoas experienciou sintomas de ansiedade e stress no início da pandemia”, tendo-se adaptado progressivamente à nova realidade e, em consequência, diminuído esses mesmos sintomas.

O estudo teve como base vários inquéritos aos quais os mais de 1280 participantes responderam semanalmente a partir das suas casas, até ao final do período de Estado de Emergência. Segundo os dados recolhidos, foi possível identificar vários fatores associados a maiores níveis de sofrimento mental. Entre eles estão “o género feminino, a existência de doença psiquiátrica prévia ou o desemprego”, e ainda fatores de proteção “como a prática regular de exercício físico, a existência de um jardim em casa ou o consumo de menos de uma hora por dia de informação sobre a Covid-19.” Pedro salienta que existe uma “associação entre os sintomas de doença psiquiátrica e os consumos de informação sobre Covid-19 superiores a 1 hora por dia. Esta relação é indiciadora de que pode haver um impacto.”

“O sensacionalismo e o alarmismo são o pior dos contributos que os media podem dar à saúde pública e à informação sobre saúde, e não só no aumento do medo, também e sobretudo no aumento da desinformação.” Ana Matos Pires, Directora do Serviço de Psiquiatria da ULSBA

Também Ana Matos Pires, Directora do Serviço de Psiquiatria da Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, refere que o tratamento mediático das questões de saúde mental pode ser “muito útil e ajudar a disseminação de boas práticas ou, pelo contrário, ser mais uma fonte de risco.“ Para a médica psiquiatra, o papel da comunicação social pode ser muito importante para o aumento da literacia em saúde mental mas“o sensacionalismo e o alarmismo são o pior dos contributos que os media podem dar à saúde pública e à informação sobre saúde, e não só no aumento do medo, também e sobretudo no aumento da desinformação. Julgo que campanhas mediáticas muito bem feitas, com a ajuda dos profissionais de saúde mental, e reportagens e artigos sérios, ética e deontologicamente corretos são o caminho e uma ajuda de primeira importância.”

“O que me irritava pessoalmente era ler as dicas para passar a quarentena tipo ‘mantém uma rotina’ ou ‘faz exercício’. Eu muitas vezes acordava às 8h, outras às 17h e sentia-me de igual modo na merda e se calhar gostava que mais gente me tivesse dito isso.” confessa Sara, que a isso junta o “bombardeamento de informação” no WhatsApp: “audios, notícias… Foi sem dúvida a aplicação que mais influenciou o meu estado de espírito e que evitei constantemente durante a quarentena.”

A informação como uma bomba, também para Paula Santos. “Estar constantemente a ser bombardeada com o tema Covid-19 pode ser esgotante. Uma forma de lidar com o isolamento, o confinamento, o medo, a ansiedade, é, pelo menos para mim, tentar manter-me ocupada e tentar pensar noutras coisas.” Para si, a pandemia tornou mais presente um medo que conhece há 15 anos: “Quando falo em medo é o medo de ficar infectada e adoecer, medo de ficar infectada e infectar os outros, o medo de morrer.” A editora de vídeo de 33 anos explica-nos que o estar em casa e não ter contacto pessoal com ninguém a não ser a mãe não a afetou: “Até gosto de estar em teletrabalho. Sinto-me segura assim e, por consequência, não estou ansiosa por ter de ir trabalhar e poder ser infectada ou infectar os outros. No entanto, como não sei até quando irá durar o teletrabalho, sinto ansiedade sobre isso.” 

“Desconhecimento” e “incerteza” são as palavras que considera melhor descreverem a forma como lidou com a pandemia e o que a assusta na fase de desconfinamento progressivo que agora vivemos. “Continuamos no desconhecido, com incertezas. Isso desperta ansiedade e medo, mais do que o isolamento e mais do que o regresso à normalidade, porque é [o facto de] esse regresso ser feito ainda em desconhecimento que me assusta e me dá medo.”

“Acho que, mais do que tudo, há uma grande lição a retirar daqui: a saúde mental é realmente importante e é muito urgente que comecemos a levá-la mais a sério.” Tiago Galvão, autor do podcast Naturalmente Ansioso

Essa mesma instabilidade, incógnita e falta de controlo é referida também por Sara, e por Tiago Galvão, autor do podcast Naturalmente Ansioso, que partilha connosco que o começo da pandemia não foi especialmente difícil, mas que, com o passar do tempo, a indefinição do futuro se tornou uma luta diária: “Estava numa situação mental estável, mas as preocupações – sobretudo profissionais – começaram a ser uma constante e o facto de não poder sair de casa e não ter noção de como seria o dia seguinte deixaram-me mais ansioso.” E se cada pessoa acaba por lidar com a ansiedade com as estratégias que já tinha ou foi desenvolvendo ao longo da sua caminhada pessoal, o exercício físico como dado adquirido para Paula – porque a “ajuda a estar saudável física e mentalmente” – foi a descoberta da quarentena de Tiago, com as “aulas de yoga e os vídeos de crossfit”. “Acho que, mais do que tudo, há uma grande lição a retirar daqui: a saúde mental é realmente importante e é muito urgente que comecemos a levá-la mais a sério. Rapidamente se começou a falar de ansiedade e depressão, abriram-se linhas de apoio, falou-se disso nos media e penso que isso é algo muito importante a continuar daqui para a frente.”

Paula faz o mesmo apontamento, acrescentando a importância de “desmistificar ideias e ajudar as pessoas a não terem vergonha/medo de falar sobre saúde mental”. Sara usa a sua experiência como exemplo do combate ao preconceito: “Porque existe o estigma de que os problemas mentais são ultrapassáveis mediante a tua força e resiliência, passamos a vida a ouvir ‘tens de ter força’ e por isso desgastamo-nos emocionalmente a combater em silêncio e a contrariar um problema que depois se transforma em tudo o que és. Mas em retrospectiva só penso ‘Como é que esperei tanto tempo? Se eu partisse uma perna não ia logo ao hospital?’ Porque num mês de medicação voltei a ser eu e depois comecei a ter consultas de psicologia que são o melhor que qualquer pessoa pode fazer se não custassem quase um ordenado mínimo.”

“As consequências sobre a saúde mental vão fazer-se sentir para além da fase aguda, as consequências das dificuldades sociais e económicas que aí vêm sobre a saúde mental de todos nós vão ser muito importantes.” Ana Matos Pires

Ambos os psiquiatras pedem mais investimento e recursos humanos. Para Pedro Morgado, há ainda um longo caminho a percorrer nesse domínio: “Precisamos de políticas efetivas de promoção da saúde mental que passam por: uma adequação da disponibilização de informação aos diferentes públicos; uma maior coerência nas abordagens públicas (será possível compatibilizar políticas públicas de redução do consumo de bebidas alcoólicas com a promoção de bebidas em eventos desportivos oficiais? Será possível compatibilizar o combate à dependência de jogo com a promoção permanente das entidades que lucram com o jogo?); uma acção mais pedagógica e mais responsável por parte dos órgãos de comunicação social na abordagem dos temas de saúde mental; e uma redução intensiva do uso de expressões e palavras estigmatizantes.” Para Ana Matos Pires “esta pandemia veio mostrar e, espero eu, alterar a maneira como a saúde mental é vista e tratada e reforçar a necessidade de uma articulação estreita entre ela e os Cuidados de Saúde Primários, por um lado, e a Saúde Pública, por outro.” 

“Temos ainda muito espaço para o desenvolvimento de ferramentas de auto-gestão emocional que ajudem as pessoas a auto-avaliarem a sua saúde mental e a obterem conhecimento acerca de formas de promoção da sua saúde.” Pedro Morgado, professor da Escola de Medicina da UMinho

A Directora do serviço de psiquiatria da ULSBA, que dirigiu uma linha de apoio telefónico aos profissionais de saúde da sua região, cujos “principais problemas reportados foram crises agudas de ansiedade e alterações do sono”, refere que os serviços de saúde mental do SNS têm de desenvolver estratégias de intervenção a mais longo prazo: “As consequências sobre a saúde mental vão fazer-se sentir para além da fase aguda, as consequências das dificuldades sociais e económicas que aí vêm sobre a saúde mental de todos nós vão ser muito importantes.” Fala da importância de se realizarem mais estudos longitudinais – como o liderado por Pedro – e da importância do acesso a “informação simples que permita um diagnóstico mais atempado e a informação dos locais onde se pode procurar ajuda no contexto do SNS parecem-me fundamentais.” Já o professor da UMinho defende que “temos ainda muito espaço para o desenvolvimento de ferramentas de auto-gestão emocional que ajudem as pessoas a auto-avaliarem a sua saúde mental e a obterem conhecimento acerca de formas de promoção da sua saúde.” 

Para quem já tem “uns anos disto”, como Paula, essas ferramentas de auto-gestão são fáceis de reconhecer e pôr em prática. Sabe que para lidar com as ansiedades do futuro terá de tentar manter a sua “tão importante” rotina: “É meter em prática o que sei. Fazer exercício físico, ver filmes e séries, ler, trabalhar… E, acima de tudo, pedir ajuda quando chegamos a um ponto em que isto já não chega”. Os recursos não são os mesmos para todos e, por isso mesmo, é importante perder tempo a olhar para dentro. Nesse aspecto, para Sara, os tempos de pandemia também tiveram benefícios: “É uma altura única que estou a viver e que dificilmente voltarei a viver numa fase que me obrigará a estar 100% dedicada ao presente.” A crise económica que se avizinha continua a tirar-lhe o sono, mas parte da experiência é tentar encontrar um equilíbrio na balança da vida. Sobre o futuro? “Gostava que não abdicássemos do gel desinfectante em todos os estabelecimentos, confesso que sou fã.”

Índice

  • Rita Pinto

    A Rita Pinto é Editora-Chefe do Shifter. Estudou Jornalismo, Comunicação, Televisão e Cinema e está no Shifter desde o primeiro dia - passou pela SIC, pela Austrália, mas nunca se foi embora de verdade. Ajuda a pôr os pontos nos is e escreve sobre o mundo, sobretudo cultura e política.

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