Ítaca e a vida num poema

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Ítaca e a vida num poema

A propósito dos dias que passamos, em que a indefinição do amanhã nos empurra para uma sensação de uma vida em suspenso.

A cada formato de texto consagramos uma função. Para além do uso geral das palavras que servem para algo tão natural como nos relacionarmos em consciência com o mundo, habituámo-nos a encaixar os textos em caixinhas rotuladas com a sua hipotética função. O texto jornalístico serve para informar e relatar, o opinativo para discordar e debater, a prosa para contar e imaginar, mas no meio disto tudo continua a sobrar o poema que, imbuído numa imensa liberdade formal e estilística, se recusa a qualquer categorização funcionalista.

Raquel Marinho, jornalista no Expresso e divulgadora de poesia, popularizou nas suas páginas de divulgação a expressão “poema ensina a cair”, reutilizando o título do poema de Luiza Neto Jorge, aproveitando a sua enorme carga poética, para que, propondo para que serve um poema, continuemos bem sem saber. Essa subjectividade de sentido funcional é uma das grandes magias da poesia mas será, por ventura, um dos grandes motivos da marginalização do consumo deste tipo de texto. Ler um poema é, em primeira instância, aprender a lê-lo, num processo que começa pelo difícil exercício de discernir o seu ritmo, como quem procura escutar e compreender com precisão um outro. Depressa demais passamos pelo poema sem o compreender, demasiado devagar tiramos-lhe toda a intenção.

“O poema ensina a cair
sobre os vários solos
desde perder o chão repentino sob os pés
como se perde os sentidos numa
queda de amor, ao encontro
do cabo onde a terra abate e
a fecunda ausência excede.”

A curiosa metáfora do poema de Luiza Neto Jorge não deixa, pelo seu lado objectivo, de me lembrar o exercício comum no Judo de ensaiar as quedas a solo para que durante um combate o atleta esteja mais preparado para o fazer. Ler poesia emula esse acto, permite-nos cair sem sofrer as mazelas da queda. Permite-nos, de certo modo, cair as quedas dos outros. Ou, em sentido inverso, erguermo-nos por eles. Agrada-me a metáfora da queda pela difusão de sensações de que me recorda esse momento, pela diversidade de motivos por que podemos cair, ou pela imensidão de consequências que de uma queda podem advir. Num poema podemos viver momentos tão diferentes quanto na vida. Cair com estrondo, com a visceralidade de um poeta, perdermo-nos nos labirintos da complexidade de sentimentos de um bom rol de metáforas, ou dar-mo-nos à contemplação do mundo como na arte do Haiku. Cair em desgraça, cair na marginalidade, cair no tédio, cair nas graças, cair no real. Uma multiplicidade de quedas que nos lembra que a vida não é mais do que isso mesmo, uma queda constante, a um ritmo que se quer equilibrado e com uma postura que se quer elegante, até ao momento final.

Há poemas que são pequenos tropeções, quedas de um pequeno degrau, de um muro menor, há poemas que são quedas do topo de um arranha céus. Na poesia, o tempo e espaço não obedecem a formalidades, e uma viagem pode ser uma queda, como uma queda pode ser uma vida inteira. Exemplo desta analogia é o poema grego, com mais de 100 anos, de Constantino Kavafis (1863-1933), Ítaca ou Ítacas, dependendo da tradução. Ítaca, assumindo a tradução de Jorge de Sena, é um poema que se passa no imaginário grego das epopeias mas que com uma subliminaridade ímpar fala sobre a vida de cada um — como essa queda constante que aqui é a viagem até Ítaca.

Lembrei-me deste poema a propósito dos dias que passamos, em que a indefinição do amanhã nos empurra para uma sensação de uma vida em suspenso. Em que nos pedem sacrifícios atrás de sacrifícios para que consigamos, em sociedade, cruzar este mar revolto que descobrimos ser uma pandemia. Onde cada dia, por ora, traz promessas de um final que se vai adiando, e adiando, fazendo aumentar os níveis de saturação e cansaço. É sobre essas promessas que versa Ítaca, poema que narra a viagem de cada um rumo à ilha prometida, e que nos procura ensinar como desfrutar da deslocação.

Quando partires de regresso a Ítaca,

deves orar por uma viagem longa,

plena de aventuras e de experiências.

Ciclopes, Lestregónios, e mais monstros,

um Poseidon irado – não os temas,

jamais encontrarás tais coisas no caminho,

se o teu pensar for puro, e se um sentir sublime

teu corpo toca e o espírito te habita.

Ciclopes, Lestregónios, e outros monstros,

Poseidon em fúria – nunca encontrarás,

se não é na tua alma que os transportes,

ou ela os não erguer perante ti.

É certo que viver uma pandemia é materialmente devastador, as consequências para a economia são nefastas, o confinamento difícil de suportar, e a subjectividade de um poema pode valer de pouco perante a inevitabilidade destas forças maiores. Contudo, e voltando à metáfora central do texto, o poema serve para, como poucos outros artefactos, nos ensinar a navegar por entre essa confusão de sentimentos. Ítaca, ao pontuar uma viagem que é de cada um com figuras épicas do imaginário grego, lembra-nos da nossa situação na História e, mais do que isso, de como a forma como encaramos a realidade acaba por definir a realidade em que vivemos. Aprender a cair não significa que não sintamos a dor de cada queda, mas que lhe consigamos dar valor como uma experiência de aprendizagem irrepetível. Afinal de contas, esta relação custo-benefício é comum em toda a experiência humana. E quantas vezes uma certa dose de dor, ou de desconforto, não serve como marcador de uma situação de prazer? Das dores de parto às dores de estômago antes de um encontro romântico, das dores de esforço por algo que queremos de facto às mazelas que ficam de um dia bem passado. A dor lembra-nos, invariavelmente, a sua ausência.

Deves orar por uma viagem longa.

Que sejam muitas as manhãs de Verão,

quando, com que prazer, com que deleite,

entrares em portos jamais antes vistos!

Em colónias fenícias deverás deter-te

para comprar mercadorias raras:

coral e madrepérola, âmbar e marfim,

e perfumes subtis de toda a espécie:

compra desses perfumes quanto possas.

E vai ver as cidades do Egipto,

para aprenderes com os que sabem muito

Rogar por uma experiência rica de um acontecimento trágico pode soar a princípio como um laivo de insensibilidade mas só a nossa obsessão pelo tempo presente nos conduz a tal errática interpretação. De um ponto vista mais distante da nossa própria condição, que no poema nos é proporcionado pelas referências mitológicas, teológicas e históricas, mais facilmente enxergamos a nossa vida como uma viagem no tempo entre dois pontos distintos. Fazê-la atravessando uma pandemia é como percorrer um caminho sinuoso ao largo de uma paisagem de cortar a respiração — a iminência do perigo faz disparar a adrenalina, aumentar a ansiedade, pode gerar medo ou pânico, mas é nessa imensidão de sentimentos que, por exemplo, um vale se agiganta à nossa contemplação. Seria tão belo um penhasco ou uma estrada sinuosa se a sua contemplação não fosse simultaneamente bela e vertiginosa?

Atravessar plena pandemia não é fácil — nem individual, nem socialmente. Fazê-lo na companhia de um poema que nos obriga a moderar ritmo e a cair com elegância em qualquer que seja o abismo será sempre mais tranquilizador. As palavras poéticas carregam consigo sentimentos, sintetizam estados de alma, que pelo seu teor subjectivo se moldam a qualquer corp, e cabem em qualquer coração que as saiba digerir. É dessa subjectividade que nos lembra Manuel Resende (1948-2020) quando, na sua tradução aqui publicada, no último verso do poema escolhe variar em número Ítaca, ao contrário da tradução de Jorge de Sena que opta por manter o singular. De resto, a heterogeneidade das traduções é outra forma de acentuação deste carácter altamente subjectivo que até as próprias palavras poéticas adquirem — como nos lembra Herberto Hélder na descrição do seu Bebedor Nocturno, os poemas não se traduzem propriamente, mudam-se de língua, tentando recriar através das palavras emoções como em todo o jogo poético. Uma visão que eterniza, como diz Maria Etelvina Santos, tradutora e editora, na sinopse do mesmo livro, a postura do poeta como mago, capaz de cravar feitiços em palavras, de gerar emoções quase por magia.

Excertos de Ítaca, de Kavafis, traduzido por Jorge de Sena

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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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