O ano passado, uma amiga disse num tom de total indiferença que tinha sido aumentada 0.6%, em linha com a inflação. No mesmo encontro, provavelmente falamos da crise habitacional em Lisboa: dos quartos a 400-500 euros; dos estudantes a viver em hostels; dos amigos e conhecidos que pagam rendas semelhantes em cidades como Madrid, Barcelona e Berlin. Estes exemplos dão a sensação da existência de dois países em simultâneo. O Portugal das altas subidas dos custos de habitação ano após ano, e o Portugal em que o aumento de preços não parece ser uma realidade.
Os preços do imobiliário, em especial nos grandes centros urbanos, disparou nos últimos anos via redução das taxas de juro, combinada com uma política de apartheid legal e fiscal que tem como objetivo atrair turistas e elites estrangeiras. A estratégia económica passou por cobrar impostos mais baixos ao alojamento local em relação ao arrendamento de longa duração; conceder isenções fiscais a pensionistas estrangeiros e outros grupos que não dependem de trabalho em Portugal; e também por facilitar vistos de residência a quem compra imóveis (acima de meio milhão de euros) enquanto se nega nacionalidade a filhos de imigrantes que vivem em Portugal há menos de 5 anos.
De acordo com o Eurobarómetro, a segunda maior preocupação dos portugueses em 2019 era a inflação/aumento do custo de vida, apesar dos salários (em média) terem crescido significativamente acima da inflação registada. No mesmo período, o preço médio de um imóvel teve uma valorização superior a 50%. A inflação imobiliária, consequência direta de políticas de estado, é perceptível no dia-a-dia da população, mas não é visível no índice de preços do INE. Indicador que funciona como bússola para aumentos salariais de uma parte significativa dos trabalhadores e pensionistas em Portugal.
Do ponto vista técnico, esta discrepância é explicada pelo facto que a inflação em Portugal não tem diretamente em conta a evolução dos preços de compras de imóveis. Contudo, tal metodologia nao é consensual na Europa. A Islândia, país que também vivenciou um boom imobiliário associado ao turismo, inclui directamente os preços de compra de habitação no seu cabaz de preços para o consumidor. Ao contrário de Portugal, as estatísticas de inflação desse país reflectem um aumento significativo (Figura 2) nos preços associados à habitação.
Aplicando o “método islandês”, Portugal apresentaria um aumento de preços acumulado de 10.3% durante o boom do turismo (2014-19) vs. 3.6% registado pelo INE. Um trabalhador com um salário de 800 Euros em 014, ajustado à inflação anualmente, iria auferir 882 Euros por mês em 2020, um aumento de 54 Euros face à situação actual. Para além disso, o salário médio em Portugal cresceu 6.1% entre 2014 e 2018 (últimos dados disponíveis), valor abaixo da taxa de inflação calculada acima (8.4%), o que se traduz num empobrecimento real dos rendimentos vindos do trabalho durante um período de crescimento económico.
A actual pandemia agravou o problema da subestimação dos custos de vida da população. No últimos meses, as famílias foram forçadas a alterar drasticamente os seus padrões de consumo, fazendo com que o cabaz de bens considerado no calculo da inflação se tenha tornado praticamente inútil. De acordo com o INE, os bens alimentares e serviços médicos apresentaram aumentos significativos de preços em Agosto (Figura 4). Contudo, o taxa de inflação foi próxima de zero: fenómeno essencialmente explicado pela queda de preços de bens e serviços que os consumidores foram forçados a reduzir/interromper o consumo (gasolina, hotéis, etc). No contexto que vivemos hoje, acompanhar exclusivamente a inflação de bens e serviços essenciais é fundamental para entender as necessidades materiais da sociedade.
Por mais tecnocrático que pareça, a subestimação da inflação causa danos estruturais para o funcionamento de uma democracia. É impossível responsáveis políticos resolverem um problema sem o reconhecerem na sua totalidade. Para além disso, ao fomentar o empobrecimento camuflado da população, é criado um ambiente hostil face às ciências sociais, seus especialistas e legisladores. Uma ciência social como a economia não pode identificar padrões que não correspondem às percepções da comunidade sem questionar seu métodos científicos. Caso contrário, estará apenas a alimentar um sentimento anti-ciência, bem popular nos dia de hoje.
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Texto de Guilherme Rodrigues
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