Clareza vs Certeza: o porquê de, mais do que nunca, não querer ter certeza de nada

Clareza vs Certeza: o porquê de, mais do que nunca, não querer ter certeza de nada

26 Junho, 2020 /
Foto de Diego PH/via Unsplash

Índice do Artigo:

Mudar de opinião é uma das melhores coisas que pode acontecer ao ser humano: só mudamos de opinião quando passamos a saber mais e melhor, e saber mais é sinónimo de conhecimento.

O livro Full-Spectrum Thinking: How to Escape Boxes in a Post-Categorical Future do Bob Johansen, investigador no Institute For The Future, tem sido uma das melhores leituras que já fiz – digo “tem sido” porque estou a ler o livro pela segunda vez. É daqueles livros que, como o Naval Ravikant tão bem diz, podia ser um dos cem que precisaria de guardar para o resto da vida (e relê-lo vezes sem conta).

I would rather read the best 100 books over and over again until I absorbed them, rather than read all the books. – Naval Ravikant

Intercalei a leitura deste livro com a leitura do How To Be An Antiracist de Ibram X. Kendi. Esta partilha não é para falar da obra de Kendi. No entanto, o facto de ter lido os dois livros em simultâneo permitiu-me refletir sobre o racismo de forma mais profunda, usando as técnicas e observações sociais e futurísticas do livro de Johansen.

Antes de mais, deixa-me partilhar contigo algo sobre o qual tenho vindo a refletir muito nos últimos meses. É ótimo existirem cada vez mais blogs sobre livros, cada vez mais instragrammers a mostrar o que lêem e pessoas no LinkedIn a partilharem as pilhas de livros que têm para ler ou que encomendaram na Amazon.

Mas o que acaba por acontecer, e eu própria estive (e estou) várias vezes nessa corrente, é que demasiadas pessoas estão a ler os mesmos livros ao mesmo tempo. Isso leva a que fiquemos formatados às mesmas ideias. Mesmo que ninguém leia o mesmo livro da mesma forma, com as mesmas referências, as reflexões acabam por não ser assim tão diferentes.

O meu conselho (e eu mesma estou a tentar fazer isto) é ler aquilo que precisamos para nós, no nosso momento, no nosso caminho, e não lermos coisas apenas porque nos dizem que é bom ou que é interessante. Se isso envolver livros dos tops de vendas, tudo bem. Mas que haja clareza nessa escolha – e é precisamente sobre clareza que quero refletir contigo nesta partilha.

Não tens conseguido arranjar concentração para ler? Não estás sozinhx

O Full-Spectrum Thinking é um livro que fiquei a conhecer por ter feito um programa no Institute For The Future (IFTF) em Palo Alto, na Califórnia. Como muita coisa que li, refleti e descobri no IFTF, esta leitura foi (e está a ser) um marco no meu crescimento pessoal e profissional. Este livro deu consistência a várias reflexões que já andava a fazer há alguns meses e que ainda não tinha conseguido materializar em palavras.

”Não quero ter certezas de nada”

Já há vários meses que andava com dificuldade em expressar o meu problema com as minhas aparentes certezas. O início do meu estudo e interesse pela temática do Futures Thinking em 2019 foi até uma tentativa minha para lidar com essa questão.

Eu, que trabalho remotamente por conta própria desde 2015 e que tenho um projeto onde falo ativamente sobre trabalho remoto, andava a sentir que não queria continuar a dizer “tenho a certeza que o trabalho remoto é o futuro do trabalho”. Andava a sentir que não tinha essa certeza, mas que de alguma forma tinha certeza de alguma coisa… sem perceber que o que eu tenho sobre trabalho remoto e o seu papel no modelo de trabalho do futuro é clareza.

Este livro mostrou-me que o que eu quero ter, mais do que nunca, e no máximo de áreas possíveis da minha vida, é clareza. Clareza para onde quero ir. Clareza nas áreas em que estou a investir o meu tempo e energia. Clareza nas minhas opiniões e nos argumentos que as sustentam, mas procurar ter sempre interesse para conseguir destruir a certeza que tenho das mesmas. Sim, quero deixar de ter certezas.

Posição estranha? Eu percebo. É um exercício curioso este em que sempre que me vejo com certeza de alguma coisa, autopolicio-me e tento procurar mais informação para aumentar a minha clareza sobre o tema – e deixar de ter certeza.

“Clarity filters will help us distinguish between clarity and certainty. Here are some key differences: Clarity is expressed in stories (Martin Luther King was a wonderful storyteller). Certainty is expressed in rules. Clarity includes curiosity about other points of view (Dr. King was curious about all aspects of social justice). Certainty has little curiosity. Clarity includes knowing what you don’t know (Dr. King was both strong and humble). Certainty does not know what it doesn’t know—and doesn’t care to learn.” – Bob Johansen em Full-Spectrum Thinking

Em vez de achar que “tenho a certeza que o trabalho remoto é o futuro do trabalho”, hoje obrigo-me a pensar mais numa perspectiva de “tenho clareza para dizer que o trabalho remoto vai ser uma peça crucial do futuro do trabalho”. E tenho que me empoderar de dados e de informações que me permitam construir argumentos sólidos para sustentar a minha clareza – mesmo que essa aprendizagem me leve para posições contrárias às que tenho hoje. Todas as posições de clareza devem ser alinhadas com o melhor que sabemos e temos hoje.

Isto não demonstra falta de confiança nas minhas opiniões – muito pelo contrário. Defendo de forma muito acérrima as minhas opiniões em temas nos quais tenho informações e dados sólidos. Mas sou (preciso e devo ser) curiosa e interessada o suficiente para aceitar que com as informações e dados certos, a minha opinião pode mudar. Afinal, novos dados e perspectivas levam a que a minha clareza possa aumentar e assim levar-me para outro tipo de posição.

Mudar de opinião é uma das melhores coisas que pode acontecer ao ser humano: só mudamos de opinião quando passamos a saber mais e melhor, e saber mais é sinónimo de conhecimento.

As certezas impossibilitam a evolução

Ter certezas é estar fechado numa caixa. Ter certezas é, como Bob Johansen diz, não saber o que não se sabe e não querer saber. Isto pode parecer evidente, mas quanto mais interiorizamos esta mensagem, maior é a sensação de explosão de experiência – mas também de desconforto.

Com esta prática tenho sido exposta a vários sentimentos que me deixaram e deixam desconfortáveis. Sentimentos racistas, sentimentos machistas e sentimentos egoístas. Muitos deles são associados a certezas que eu tinha sobre vários temas. Quando comecei a desconstruir as minhas certezas e a pensar “se tenho certeza disto, chegou o momento de procurar argumentos, dados e informação que me convençam que estou errada”, iniciei um processo de exploração pessoal que espero que nunca acabe.

Deixar de ter certeza é, mais uma vez, um processo de conhecimento brutal. A única forma de deixarmos de ter certezas é ganhando clareza, e clareza só se alcança primeiro querendo, e depois com muita leitura, muita reflexão e muita análise. É um processo no qual temos de deixar de categorizar o que achamos como certo e errado, e começar a processar a informação como clara ou pouco clara.

Começar a refletir desta forma é adotar um pensamento de espectro total (full spectrum thinking). Afinal, tens clareza que existe muito mais para saberes sobre um determinado tema; não existe apenas uma verdade ou certeza.

Pensar de forma categórica é algo quase inato ao ser humano. Tentar deixar de o fazer não é deixar de procurar padrões em situações – muito pelo contrário. Identificar padrões é importante para levar a clareza: contudo, o exercício difícil que é importante levar a cabo para alcançar clareza é, depois de identificar padrões, não fechá-los imediatamente em caixas de certeza. Encontrámos padrões? Vamos procurar mais.

Quanto mais claros fomos em relação a um tema, menos certezas precisamos de ter. Clareza permite tomar decisões e abre um leque maior de oportunidades. Certezas levam a limitação de ações, porque sabemos o que é e o que acontece. Saber exatamente as coisas condiciona, enquanto que se soubermos o que está a acontecer e se soubermos que existe um espetro de possibilidades, podemos decidir para onde ir.

O livro de Bob Johansen leva-nos a entender essa prática e refletir sobre a melhor forma de a implementarmos no nosso trabalho e vida pessoal. Não é um livro que te quero aconselhar a ler se não sentires que precisas de mudar radicalmente a tua vida e forma de pensar.

Podes estar num momento em que precisas de sedimentar outras vertentes da tua vida, como negócios, produtividade, marketing digital ou meditação. E está tudo certo. Com esta partilha quero sobretudo fazer-te refletir sobre o que tu fazes com certeza e com clareza. A escolha será entre conforto e desconforto. Ter certeza é confortável porque é algo que conhecemos, categorizámos e fechámos e demos por encerrado. Procurar clareza é permitir que as posições mudem, que estejamos num espectro de possibilidades que nos podem provocar desconforto. Afinal, querer clareza não é estar certo ou errado, e isso está longe de ser a posição mais confortável do mundo.

O que vais escolher?

Texto de Krystel Leal

A Krystel Leal é freelancer desde 2015, especializada nas áreas da estratégia digital e marketing de conteúdo. Com background académico na área da Comunicação e do Digital, trabalha sobretudo com empreendedores digitais que procuram posicionar-se de forma otimizada no online. Hoje reside em Palo Alto (Silicon Valley) na Califórnia de onde trabalha remotamente para clientes no mundo inteiro. É, também, a fundadora do projeto Nomadismo Digital Portugal.

Autor:
26 Junho, 2020

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