A industrialização do podcast

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A industrialização do podcast

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O podcast foi, desde o início, uma forma de distribuir conteúdo audiovisual aberta e livre, sem exclusividade de plataforma. Isso pode começar a mudar agora, com o Spotify a querer exclusivos para se tornar o “Netflix dos podcasts”.

Nos primórdios da web, os feeds RSS eram uma forma fácil de acompanhar o conteúdo de diferentes páginas num só lugar e o e-mail permitia comunicar outra pessoa, mesmo que esta estivesse a usar um serviço de e-mail diferente. Se pensarmos na web como um continente, vemos um território aberto, sem fronteiras ou estados bem definidos.

Os anos passaram e grandes empresas foram privatizando partes desse continente onde continuamos a navegar diariamente. Aos poucos e poucos, foram nascendo fronteiras aqui e restrições à circulação ali. No feed do Facebook não é possível receber conteúdos do Twitter ou do LinkedIn, porque nenhuma destas plataformas suporta RSS. Quem usa as mensagens do Instagram não consegue falar com quem só tem Twitter. Fazer uma transmissão em directo no Facebook e YouTube não é imediato como clicar num botão. Determinados conteúdos publicados no Instagram só estão acessíveis a quem tenha uma conta naquela rede social. Se assinas o Netflix, ganhas acesso aos conteúdos disponíveis no catálogo deste serviço mas se quiseres uma série que só há na HBO vais ter de assinar a HBO.

Os podcasts, por seu lado, são das poucas vias em que os conteúdos têm escapado à centralização promovida grandes tecnológicas. Com recurso à tecnologia de RSS, uma pessoa que crie um podcast pode distribui-lo simultaneamente para uma série de plataformas. A Apple, que através do iTunes e agora do Apple Podcasts se tornou um dos players mais importantes neste mercado, não tem mão nos podcasts disponíveis na sua plataforma como tem nas apps que estão na App Store ou nos conteúdos do seu serviço de streaming Apple TV+.

O Apple Podcasts é apenas um cliente que recebe por RSS as séries e episódios de podcasts e os distribui junto dos seus utilizadores. Há tops que vão organizado quais os podcasts mais populares através de algoritmos e algumas listas curadas, mas mais nada além disso. Um mesmo podcast pode estar no Apple Podcasts, Google Podcasts, Spotify, Pocket Casts, Overcast…; os criadores só têm de alojar o conteúdo num sítio web próprio e automatizar a distribuição para os diferentes canais. Os diversos clientes (Apple Podcasts, Google Podcasts, Spotify, Pocket Casts, Overcast) distinguem-se assim pela curadoria que fazem de conteúdos acessíveis um pouco por toda a internet.

Ao contrário do streaming das séries – em que existe uma competição forte entre as diferentes plataformas com o Netflix, a HBO ou a Apple TV+ a assegurarem conteúdos exclusivos –, nos podcasts o mesmo não acontece. Ou, melhor, não acontecia… O Spotify, o gigante do streaming de música, pode tornar-se o gigante dos podcasts, mais ou menos como o Netflix se tornou o gigante das séries; os podcasts podem passar a ser privatizados.

Em 2019, atento a um autêntico boom de podcasts nos últimos dois/três anos, o Spotify começou a investir milhões de dólares entre aquisição de tecnologia e de conteúdo. No ano passado, a empresa sueca adquiriu duas redes de podcasts, a Gimlet Media e a Parcast, e uma ferramenta que facilita a criação de podcasts por qualquer pessoa, chamada Anchor, que se tem vindo a tornar muito popular. Já este ano, o Spotify comprou o The Ringer, uma empresa de media do analista desportivo Bill Simmons, e o podcast de Joe Rogan, um dos maiores do mundo. Ao todo, desembolsou cerca de 700 milhões de dólares.

Com Bill Simmons e Joe Rogan a bordo, o Spotify passa a ser a única plataforma onde vai ser possível escutar dois dos mais populares podcasts do mundo – o The Bill Simmons Podcast e o The Joe Rogan Experience. A aquisição da Gimlet Media e da Parcast já tinha dado à plataforma sueca um conjunto de outros podcasts, que passarão a ser também exclusivos. Mas é com os grandes nomes que o Spotify esperará captar a atenção das pessoas para a plataforma. Na verdade, quem acompanha Joe Rogan no YouTube ou no Apple Podcasts, vai ter agora de instalar o Spotify e de criar uma conta gratuita.

O Spotify está à procura de capitalizar a distribuição do podcast — um pouco como os canais de televisão por subscrição capitalizam na distribuição de conteúdos exclusivos. Já tinha tentado a estratégia da exclusividade com a música mas há uma diferença com este meio: é que pode lidar directamente com os criadores. O Spotify não precisa que os utilizadores subscrevam para ouvirem podcasts porque ganha com os seus dados e com o dinheiro dos anúncios, através de inserções publicitárias no meio dos podcasts personalizadas para cada ouvinte.

Com esta aposta, o Spotify pode tornar-se um gigante no mundo dos podcasts que distribui conteúdo de parceiros exclusivos, vende anúncios (ganhando dinheiro para si e para esses parceiros), oferece uma solução para as pessoas ouvirem o conteúdo (e os anúncios) e disponibiliza ferramentas para que qualquer pessoa possa criar o seu conteúdo. Isso não acontece no mercado da música e os podcasts podem inclusive servir de rampa para o Spotify crescer nessa área – se a aplicação se tornar um destino obrigatório para podcasts, se calhar as pessoas vão também usar o Spotify para ouvir música e organizar playlists em vez de ter outra app para isso.

Depois de empresas já terem alterado a forma como navegamos ou falamos uns com os outros online, e de terem criado pequenos submundos de conteúdos no mundo da web, o mesmo poderá agora acontecer com um dos últimos pedaços de conteúdo livre, aberto e multi-plataforma. O podcast nasceu como uma forma de os criadores partilharem conteúdo (que pode ser em vários formatos) directamente com os seus seguidores, recorrendo à tecnologia RSS; a sua relevância crescente no panorama mediático pode fazer com que se tornem em mais uma indústria centralizada, seguindo o mesmo caminho de outras formas de comunicação online.

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