Nos anos 1920, os Estados Unidos da América lembrava-se de uma ideia genial: porque não criar restaurantes em que as pessoas podem estacionar e comer sem sair do carro? Nascia, assim, o conceito do drive-in aplicado à restauração, um modelo de consumo que surgiu mais ou menos ao mesmo tempo que os drive-ins de cinema e teatro – as pessoas paravam os seus carros à frente de uma tela e assistiam, no conforto do seu carro, a um filme ou a uma peça.
Os drive-ins de cinema tiveram o seu declínio a partir dos anos 1970s e, na restauração, apesar de hoje continuarem presentes em cadeias de fast-food como o Burger King ou o McDonald’s, não se equiparam à “ideia original” – em que restaurantes eram parques de estacionamento onde a pessoa parava o carro, fazia o pedido, recebia a refeição, comia e depois ia-se embora; tudo sem precisar de sair de dentro da viatura.
O modelo já defunto está a ressuscitar no contexto da pandemia actual, nos Estados Unidos e também por cá, em Portugal, num movimento de deriva nostálgica. Os drive-ins estão a ser apresentados como uma solução as pessoas continuarem a aceder à cultura de modo colectivo mas mantendo as distâncias sociais recomendadas. À boleia da necessidade de distanciamento social, cria-se a necessidade de ter carro para assistir a eventos culturais. Pedro Abrunhosa deu um concerto em Ansião (Leiria) com lotação esgotada, para 70 viaturas num parque de estacionamento; numa reportagem sobre a iniciativa, dizia-se que existem muitos parques pelo Portugal fora e que eventos destes podem ser facilmente repetidos e copiados. O ponto é: porquê ou para quê?
Para o mesmo estacionamento onde Pedro Abrunhosa actuou, já estão agendados espectáculos do mágico Luís de Matos e do humorista Nilton. Já a Fábrica Braço de Prata está a realizar durante o mês de Maio concertos em drive-in, com jantar encomendado por telefone e servido à janela de cada carro. E a Comic-Con Portugal está a organizar sessões de cinema, gratuitas com inscrição obrigatória, a decorrerem no Jardim Municipal de Oeiras. De acordo com os detalhes deste evento do Comic-Con, “o acesso (…) será limitado apenas a automóveis”. Também na página do espectáculo de Luís de Matos, é referido que os bilhetes são vendidos por “veículo ligeiro ou monovolume (máximo 9 lugares)”, condições que deverão ser semelhantes para o espectáculo do Nilton dado que a promotora é a mesma. Quanto aos eventos no Braço de Prata, o Shifter sabe que são aceites motas e bicicletas.
O regresso do drive-in (que também está a ser equacionado para o futebol) abre um precedente estranho em pleno ano de 2020, colocando a propriedade automóvel como critério no acesso a determinados eventos. É um critério de exclusão. Nem toda a gente tem carro, seja porque não quer, seja porque não tem essa capacidade financeira – estima-se que o custo anual de se ter um automóvel em Portugal ronde os 4-6 mil euros. Os eventos organizados pedem registo e, por isso, não é sequer possível alugar um automóvel numa plataforma como a DriveNow só para assistir ao evento. Estas iniciativas representam um retrocesso do ponto de vista das alterações climáticas e da readaptação necessária das cidades para um cenário pós-automóvel, integrando o carro na dinâmica cultural de onde havia sido excluído, sob o pretexto do distanciamento social. Na sua maioria, estes eventos excluem também todos os que tenham motas ou bicicleta.
O distanciamento social é fundamental nesta altura mas o carro não é condição necessária única para cumprir essa recomendação; é possível distanciar motas e bicicletas umas das outras, ou mesmo as pessoas umas das outras, num espaço aberto e amplo como é geralmente um parque de estacionamento, cumprindo as normas de segurança. O recurso a uma solução do passado para resolver um problema do futuro, ilumina o paradoxo fundamental para que a nostalgia tantas vezes nos conduz, confrontando-nos com a falência das soluções que armazenámos com carinho no nosso imaginário. O drive-in é um desses casos; se, por um lado a carga simbólica e estética, e as aparições no filmes de Hollywood são um convite ao desejo de fazer parte de algo assim, na prática, a promoção da dependência do automóvel, tantas vezes desanconselhado para acesso a eventos culturais ou desportivos.
Se é certo que a internet também não chega a toda a gente, é um meio mais universal que o drive-in. Se o drive-in se tornar efectivamente uma moda e as autarquias começarem a optar por este modelo para oferecer eventos culturais de uma forma simplificada, corre-se o risco de promover novas desigualdades e, para além disso, enaltecer simbolicamente a necessidade de ter um automóvel, numa altura em que a sua utilização mais é desanconselhada por motivos ambientais.
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Edgar Almeida contribuiu para este artigo.
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