Quando recorremos à memória para imaginar a imensidão que é o universo, a imagem que nos surge é, provavelmente, a de uma espiral composta de minúsculos pontos que representam estrelas, ao torno das quais orbitam planetas. É num desses pequenos pontos, ínfimos e microscópicos à escala universal, que, por sua vez, existe a imensidão mundana que nos rodeia na Terra.
Uma imagem semelhante serve para representar o universo da literatura, e as centenas de ramificações, que o tornam imenso. Um dos pontos, neste caso, é a Livraria Uni Verso, numa ruela perto da Câmara Municipal de Setúbal – uma pequena loja, à semelhança da terra, que nos rodeia com uma imensidão de livros que desafiam e redefinem a nossa noção de perspectiva. Atrás do balcão, como na liderança de um governo mundial, está João Raposo, homem de poucas palavras mas de uma dedicação absoluta aos habitantes do seu mundo, os livros.
Entrar na Livraria Uni Verso é como conhecer um novo mundo, uma experiência que não se resume ao impacto de uma primeira vez; uma experiência que implica descobrir os cantos da casa e perceber a riqueza que cada canto guarda; é preciso observar atentamente, deambular entre estantes e falar com João Raposo que, de forma evasiva, se esquiva de qualquer história que lhe dê protagonismo. Esse é, de resto, o único motivo pelo qual este artigo não é uma entrevista.
A primeira vez que visitei a Uni Verso, lembro-me como se tivesse sido a semana passada, perguntei enquanto olhava de modo mais ou menos atento se tinham livros de Luiz Pacheco, uma figura mítica cuja relação com Setúbal tinha descoberto há poucos dias. Sentado ao computador, o livreiro disse-me que não e as interações ficaram por aí. À segunda vez que lá voltei a entrar, a viagem foi totalmente diferente, como se o meu esforço legitimasse a minha entrada num segundo nível da experiência. Menos focado na procura e mais atento às descobertas, dessa vez reparara de imediato nas fotografias do Pacheco que enchem as paredes do lado direito desta carismática livraria, e permitem um atalho para conversas sobre o Libertino.
A conversa num espaço de letras funciona como um passeio num local turístico e se Luiz Pacheco era o monumento que se elevava à primeira vista, rapidamente me apercebi que naquele mundo, muitas outras peças importantes totalizavam o puzzle da cultura. O Pacheco e o Raposo, como lhe passara a chamar entretanto, eram amigos e camaradas na luta permanente que é a escrita. Começámos pelos Textos Setubalenses que o Raposo me aconselhara a comprar e só quase por acaso me apercebi de que era ele o editor daquela obra. Daí resultaram conversas sobre as cartas que o Luiz lhe endereçara, e sobre os textos que ele próprio escrevera.
Só no segundo capítulo deste convívio descobri que o Raposo livreiro era também o Raposo poeta. Comecei pelo Brancura, um pequeno livro de Haikus e o último da sua coleção. Seguindo o interesse, passei para o Canto do Bulbul, uma delicada colectânea de poemas com a Serra da Arrábida como pano de fundo onde pude descobrir outra fascinante peça do puzzle: Agostinho da Silva. Autor do prefácio, soube depois, Agostinho fora amigo do Raposo e até inspiração para o seu filho durante alguns anos da sua mocidade, inspirando o pai na escrita e o filho na vida. No percurso pela sua obra que então se transformara numa espécie de exercício de empatia para com aquele homem que me vendia belos livros a preços simpáticos e com boas conversas de oferta, foi então que cheguei, por sua cortesia, a’O Rolar da Pedra.
Este livro, uma peça rara, primeira edição, de autor, com papel manteiga na capa e as folhas datilografadas à máquina é um exemplar único e mais uma pista para desvendar este universo de referências que nos conta a história de outros tempos. Ao primeiro folhear e perante as referências à Holanda percebera a história de Raposo nos tempos da ditadura, motivo para que me contasse na visita seguinte como tivera de fugir e viver exilado em Amesterdão, inspiração para poemas como este:
Agora que já nem conto as vezes em que lá entrei, cumprimento o Raposo assim que entro, e já vou à livraria tanto à procura dos seus livros como das suas histórias, recupero a imagem do universo com que começara o artigo; não são simplesmente as livrarias que nos abrem ao universo da literatura como não são só as letras que o compõem, homens como João Raposo que unem pontos da cultura e resistem até à especulação com que podia lucrar com os seus exemplares clássicos de obras ímpares, ensinam-nos todos os dias o que significa a resistência à efemeridade dos tempos e aos mais contextos mais inóspitos, sempre com uma simpatia ao comando da extravagância.
No final de contas o que interessa é o que fica com cada um de nós, para o Raposo um universo com Herberto, Pacheco, Agostinho, e a vitalidade que nos deu obras significativas da cultura nacional; em mim, para já, certamente os momentos de conversa à entrada da livraria, consigo ou com outros clientes que coincidiram no tempo, a descoberta de Mckenzie Wark, de António Barahona, do jornal Mapa, da obra inédita do Pacheco e das histórias que nunca por outra via me chegariam.
Numa altura marcada pela impossibilidade de sair de casa restam-nos, em parte, os livros para que possamos continuar a viajar. Nesse contexto, nada melhor que fazê-lo com a direção dos que já percorreram esse caminho, ajudando-os a manter viva essa paixão. Por estes dias continuo a acompanhar o Raposo nos seus diários de distanciamento social sempre atrás do balcão da Uni Verso, com máscara ou viseira, mas sempre com um sorriso simpático, uma piada espontânea e uma imensidão de livros. As suas dicas valem mais do que as de algoritmos; em vez de serem definidas por grupos de engenheiros ou gestores de marketing são forjadas por anos de experiência e a empatia que gera com cada cliente. Como este livreiro já não devem existir muitos, e neste momento em que o online parece um processo tão simples, importa lembrar que raramente o caminho mais curto é o mais interessante, para chegar seja onde for.
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