Mulheres que mudaram a Nutrição

Mulheres que mudaram a Nutrição

8 Março, 2020 /

Índice do Artigo:

As mulheres que no passado mudaram a nutrição, quer tenha sido por vocação ou por força das circunstâncias, permitiram que as mulheres de hoje possam continuar a fazê-lo.

O aparecimento de literatura sobre nutrição humana foi coincidente com a entrada das mulheres na ciência, no início do século XX, não necessariamente por vocação coletiva, mas principalmente porque a alimentação era à data considerado um “assunto de mulher” na academia.

Na maioria das situações, apesar da formação de base destas cientistas não ser a nutrição, viam-se empurradas pelas circunstâncias para o estudo de temas como a economia familiar, gestão do lar e programas relacionados com alimentação infantil e gravidez. Mesmo nos anos 20 e 30, as oportunidades profissionais para as mulheres que tinham a sorte de estudar, e que não queriam ser enfermeiras nem professoras, não eram muitas. Algumas delas investiram em desenvolver capacidades técnicas com potencial empregador, como a química, muitas vezes depois aplicada ao estudo da composição dos alimentos e do metabolismo humano.

A história da Nutrição foi lapidada por aquilo que muitas vezes é descrito quando se retrata a Ciência da primeira metade do século XX: homens a explorar problemas que os inquietassem e entusiasmassem, mulheres a estudar o que representasse uma necessidade.

Falar de cientistas na nutrição implica obrigatoriamente falar de Dame Harriette Chick, nascida na Inglaterra Vitoriana, numa altura em que a mulher era considerada incapaz de assumir qualquer função https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativa e não tinha sequer o direito a votar — direito que só chegou à maioria dos países europeus por volta de 1920.

Harriette foi a primeira a assumir uma posição de assistente no Lister Institute of Preventive Medicine, e durante a 1ª Guerra Mundial fez o estudo das rações dos soldados ingleses. O seu objetivo foi perceber o que tinha de ser mudado nas rações de forma a evitar o escorbuto e o beribéri, causados pelo défice de vitamina C e tiamina, respetivamente.

No final da 1ª Guerra, a fome e a malnutrição continuavam muito prevalentes na Europa, principalmente até a Alemanha assinar o tratado de paz. Chick deslocou-se a Viena para partilhar e disseminar o seu conhecimento sobre vitaminas, num país onde o raquitismo (habitualmente provocado pelo défice de vitamina D) era um grave problema de saúde pública — e ainda visto por muitos médicos como uma doença infecciosa.

Harriette foi posteriormente diretora da divisão de nutrição do Lister Institute, e continuou a estudar o défice vitamínico até próximo da sua morte, aos 101 anos.

Do outro lado do Atlântico, nascia em 1884, Agnes Fay Morgan no estado do Illinois. Agnes aproveitou uma bolsa de estudos oferecida por um mecenas local para fazer a sua licenciatura e mestrado em Química, na Universidade de Chicago.

Em 1915, após finalizar o seu Doutoramento, aceitou ensinar Nutrição em Berkeley, por um salário anual $600 mais baixo do que o pago aos seus colegas homens — um problema que seria bom que tivesse ficado em 1915.

Os seus anos de vida académica foram repletos de dificuldades e conflitos, quer pela escassez de conhecimento à data em Nutrição, quer pela dificuldade em arranjar patronos dispostos a financiar trabalhos experimentais conduzidos e pensados por uma mulher. Como nos contam as suas notas pessoais: “A combinação desatualizada de cozinha e aritmética que era considerada a nutrição não é nada com que eu quisesse ter algo a ver. O que eu queria era estabelecer uma base científica sólida para as práticas ensinadas na altura.” E foi para isso que trabalhou. Os seus estudos permitiram conhecer melhor o efeito de micronutrimentos na saúde, como o papel do cálcio, fósforo e vitamina D na saúde óssea, e da Vitamina B5 na pigmentação da pele e do cabelo.

A composição nutricional dos alimentos, em macro e micronutrimentos só seria verdadeiramente estudada mais tarde, principalmente por Elsie Widdowson, uma das mais relevantes cientistas britânicas do século XX, nascida em 1906.

A sua formação de base foi a Química, o que lhe permitiu estudar a separação e doseamento da frutose, glicose, sacarose, amido, e hemicelulose na fruta, durante o seu PhD no Imperial College, em Londres. Este trabalho levou a que contestasse os valores de hidratos de carbono na fruta previamente apresentados por Robert McCance. A audácia compensou, e ele acabou depois por se tornar seu mentor e colega.

Elsie percebeu que as tabelas de composição nutricional eram uma ferramenta essencial no trabalho dos nutricionistas, e que tanto as existentes no Reino Unido, como as americanas e as alemãs, apresentavam um elevado défice de informação e clareza. Elsie Widdowson e McCance publicaram em 1940 as aclamadas tabelas de composição nutricional dos alimentos. Durante a 2ª Guerra Mundial, o trabalho de Elsie foi essencial: devido à preocupação dos efeitos do racionamento alimentar no estado nutricional dos ingleses, iniciou o estudo de uma alimentação eficiente em tempo de guerra que foi depois adoptada a nível nacional.

E hoje? Segundo os dados do estudo do percurso socioprofissional da Ordem dos Nutricionistas, em 2019 cerca de 90% dos Nutricionistas portugueses eram mulheres, que felizmente não tiveram de lidar com muitas das barreiras que encontraram Harriette, Agnes e Elsie, mas isso não significa que esteja tudo bem. Segundo o mesmo estudo, os inquiridos do sexo masculino continuam a registar uma remuneração média mais elevada que as mulheres, uma diferença que merece certamente uma análise profunda.

Seria bom que os dados dos próximos anos já não traduzissem essa diferença. Seria bom que as minhas colegas do futuro nunca tivessem de ouvir que “uma menina nutricionista numa instituição é bom porque assim cozinha umas coisinhas” ou que “um nutricionista (homem) num clube desportivo é mais conveniente e mais apropriado”.

As mulheres que no passado mudaram a nutrição, quer tenha sido por vocação ou por força das circunstâncias, permitiram que as mulheres de hoje possam continuar a fazê-lo. E elas fazem-no: nos hospitais, nas universidades, nas câmaras municipais, nos clubes desportivos, nas clínicas, nas cantinas, nas empresas, nas escolas, e em tantos outros locais; honrando as mulheres do passado que estudaram, e as que nunca o puderam fazer.

Autor:
8 Março, 2020

Nutricionista, membro do NNEdPro Global Centre for Nutrition and Health e da Associação Ilumiano. Mestre em ciências do consumo e nutrição e licenciada em ciências da Nutrição. Limiana que gosta de ler, comer e passear. Escreve principalmente sobre nutrição, alimentação, sociedade e política nutricional.

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