“Queremos apresentar um método inovador para reconstruir obras de arte perdidas, mediante a aplicação da transferência de estilo neural a radiografias de obras de arte com obras de artes inferiores em segundo plano por trás de um exterior primário, para reconstruir obras de arte perdidas”, escreveram Anthony Bouchared e George Cann, dois investigadores da University College London, na tese em que revelaram uma descoberta que pode vir a revolucionar a História da Arte.
O palavreado pode parecer complexo mas traduz-se mais ou menos nisto: utilizando redes neurais – algoritmos inspirados no funcionamento de neurónios do cérebro humano –, os investigadores conseguiram reconstituir várias obras perdidas no tempo. Entre elas está uma pintura de Pablo Picasso que estaria escondida no quadro O Velho Guitarrista, em exposição no Art Institute de Chicago.
A obra foi pintada pelo espanhol entre 1903 e 1904, o seu chamado “Período Azul”, e é provavelmente a mais conhecida dessa altura. Nessa época, Picasso era pobre, vivia em Paris e utilizava a cor azul para tentar representar tristeza e desolação. Talvez pela falta de recursos, reaproveitava telas e, por isso, alguns dos quadros eram pintados por cima de outros que já existiam, de rascunhos ou esboços.
Assim terá nascido a história desta pintura agora revelada, que já estava a ser estudada há mais de 20 anos, quando o Art Institute de Chicago usou análises raios-X e infravermelhos para detetar outra imagem por baixo que, ainda que pouco nítida e sem cor, parecia ser de uma mulher com o braço estendido. Na altura, a descoberta forneceu uma visão importante da progressão do trabalho de Picasso, os seus temas e o seu pensamento durante o Período Azul. Sendo o artista espanhol um dos mais importantes do século 1920, o mistério foi acompanhado de perto por toda a comunidade artística, que desejava ter forma de o ver resolvido. E eis que chega a tecnologia, ao serviço do mundo, para provar mais uma vez que desenvolvimentos recentes podem ser cruciais para analisar o passado.
Tentámos simplificar o que é a “análise neural”
A técnica que permitiu a descoberta chama-se análise neural e foi desenvolvida originalmente por Leon Gatys e outros cientistas da Universidade de Tubingen, na Alemanha.
Através de redes neurais, é feita uma análise de uma imagem em diferentes escalas. A primeira camada permite reconhecer características mais gerais como linhas ou arestas. Outra detecta as formas simples formadas por essas arestas, como círculos. A seguinte reconhece padrões de formas, como dois círculos juntos. Outra funciona por adivinhação, permitindo, por exemplo, rotular esses dois círculos como olhos.
O mecanismo em rede é assim capaz de reconhecer olhos em pinturas de vários estilos, de Leonardo da Vinci a Van Gogh ou Picasso. Em cada caso, os olhos são quase sempre pintados de forma idêntica, formando assim um padrão semelhante que a máquina pode identificar.
Gatys e companhia foram mais longe, treinando essa rede para reconhecer o estilo artístico; por exemplo, para distinguir um Van Gogh de um Picasso.
A principal descoberta de todo este processo foi perceber que o mecanismo consegue separar a capacidade de identificar objectos ou características humanas, da de distinguir um determinado estilo. Assim, Gatys e companhia conseguiram separar essa habilidade e usá-la ao contrário, num processo que permite converter qualquer imagem no estilo de outro artista.
O seu trabalho tem desde então sido extremamente influente e certamente já te deparaste com ele – em apps de Facebook que transformam a tua selfie numa pintura cubista de Picasso, por exemplo. É usado nas mais variadas áreas para produzir obras de arte, banda desenhada ou até filmes, no estilo de qualquer artista escolhido.
É assim que Bourached e Cann entram em cena. Os investigadores pegaram numa versão editada manualmente das imagens de raio-x da mulher fantasma por detrás de O Velho Guitarrista e passaram-na por uma rede de transferência de estilo neural, treinada para converter imagens no estilo usado por Picasso durante o seu Período Azul.
O resultado é uma versão colorida da pintura, antes pouco nítida, no estilo que Picasso explorava durante a época em que a pintou. Não há, obviamente, como saber se Picasso pintou mesmo a imagem desta maneira. Mas Bourached e Cann dizem que o seu objectivo é ampliar a percepção das intenções, erros e reflexões de um artista, reconstruindo obras de arte ocultadas. “O nosso método de combinar obras de arte originais, mas ocultas, contribuições humanas subjectivas e transferência de estilo neural ajuda a ampliar a visão do processo criativo de um artista”, dizem.
A equipa garante que a obra, agora chamada La Femme Perdue (A Mulher Perdida), não foi a única que reconstruíram, e apresentam a técnica como “apenas o começo” de um processo que historiadores e artistas sentem que tem o potencial de ir muito mais longe.
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