B®£x!t: era uma vez uma ilha

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B®£x!t: era uma vez uma ilha

A bem da imparcialidade (ou melhor, falta dela) e transparência, admito sem vergonhas uma perspetiva urbana, assumidamente Metropolitan Liberal Elite.

Ok, antes demais: nesta análise, extremamente pessoal, quase-caricatural, proponho-me a extrapolar insights de duas realidades britânicas que hoje conheço bem — a da city, a ‘cidade’ e a do country, o ‘campo’. Sem a pretensão ou vontade de tirar o óculo tuga atlântico e o bias europeu continental, falaremos de tudo um pouco, de geografia a geologia, de política a cultura. Por isso, a bem da imparcialidade (ou melhor, falta dela) e transparência, admito sem vergonhas uma perspetiva urbana, assumidamente Metropolitan Liberal Elite (MLE, é isto que o country chama aos Remainers urbanos ) com todos os seus defeitos e virtudes, ora bem, bora…

A formação da ilha

Antes da Brexit de que se fala hoje, é importante lembrar, que houve uma milenar, a formação da Ilha – a ‘Primeira Grande Brexit’.

É importante que nos lembremos que o Reino Unido é insular por natureza ( literalmente ) – são uma ilha, um ‘castelo com fosso’, com uma ‘ponte’ no Canal da Mancha, no estreito de Dover.

A verdade é que a primeira Brexit foi produto de uma outra catástrofe, não política, social, cultural ou whatever mas natural, geológica/geográfica há uns 450.000 anos, ainda nem os Neandertais brincavam à ‘primeira revolução agrícola’.

A ironia é que embora esta tenha levado muito mais tempo, segundo o estudo que aqui referencio da Nature Communications, suspeita-se que tenha tido só duas fases; dois grandes eventos de erosão (o primeiro quando um grande corpo de água se estendeu do hoje Reino Unido até a Escandinávia, e o segundo quando o Canal foi esculpido, o estreito destruído, e as águas da Era do Gelo isolaram o Reino Unido). Numa óptica hiperbolicamente Brexiter, não pareceu nada penoso, não houve nem ‘Bruxelas’ nem burocracia.

Mas o que estou a tentar retratar e que podemos retirar deste estudo é que não é contra-natura pensar no Brexit hoje, pois este tem vindo a ser cozinhado há milhares de anos, com o desenvolvimento de uma identidade, uma sociedade e uma cultura separadas do continente. Acho que concordamos todos que somos invariavelmente produtos do nosso ambiente.

Os Britânicos, a Ilha é insular.

A ilha apaixona-se pelo o Mundo Império

Ok, o que se segue é uma beca polêmico, mas tanto a minha mulher (bifa) como amigos britânicos não se escondem do que aqui vou escrever: o Imperialismo é ainda hoje romantizado e presente na génese de grande parte da população — é, para o bem (!?) e para o mal, parte integral da identidade britânica. A título de exemplo, eles sabem e falam bastante dos campos de concentração nazis, mas esquecem-se (leia-se fazem-se esquecidos) dos deles, na África do Sul, na Guerra de Boer, 50 anos antes. Episódios negros que não glorifiquem a sua identidade, não existem na psique britânica, são omitidos da educação, tanto na escola como em casa.

E sim… calma, não estou para aqui a dizer que isto é uma cena exclusiva aos bifes, esta ignorância/falta de educação é característica a todo e qualquer império colonizador — Portugal sofre do mesmo, aprendemos que fomos os ‘colonizadores bonzinhos’, mas yah, enfim…

Não é desproporcional dizer-se que o argumento principal que ecoou em grande parte das discussões quer no Parlamento quer na rua, centrou-se na ideia de soberania, o clássico ‘take back control’. Em antecipação ao MAGA do Trump, havia um sentimento generalizado de ‘Make Britain Great Again’. Até mesmo o slogan eleitoral dos Conservadores (para as últimas eleições gerais) ‘Strong and Stable’  tinha uma aura imperial, a promessa de algo estabelecido e dominante, pronto a navegar.

Outro exemplo desta nostalgia pós-colonial, do império romantizado, são marcas que nasceram e ganharam força com o debate, com a ideia Brexit, vimos por exemplo a East India Company voltar ao mercado, a vender chás, café, biscoitos e tudo mais com uma vibe vintage e exótica. Ironicamente, o English Brexit Tea também foi registado, por uma empresa alemã dias depois do referendo (lulz).

É exactamente este romance, este anseio pelo retorno à grandeza do império, emulado de vento em popa pelos Boris Johnson desta vida, que é partilhado por uma grande fatia da população. Ora, este estudo da YouGov ( 2016 ), dá conta de que mais de 40% dos britânicos acham que (1) o colonialismo, enquanto parte da história do país é motivo de orgulho e que (2) o Império Britânico foi uma ‘coisa boa’, tanto para o colonizador como para o colonizado.

Mais um exemplo deste complexo de superioridade enraizado sob a forma de saudosismo deu-se em 2016, quando o então o deputado conservador Liam Fox twittouo que a Grã-Bretanha “é um dos poucos países da União Europeia que não precisa de enterrar a sua história do século XX”. Pós-referendo, o mesmo Fox, foi eleito ministro do comércio internacional pela May, pasta que depois passou também pelas mãos do Boris Johnson, e que leva crer que é um cargo que requer um certo entusiasmo ou romance pelo império (seja ele marítimo e romântico, ou invisível e capitalista), ou esquecimento da história.

A Ilha mãe e as ilhas satélite

Ora, para dar luz ao que me refiro quando falo do império invisível, recomendo o The Spider’s Web, um documentário que detalha como o antigo Império foi transformado. A Cidade de Londres e o Bank of England, pós-Segunda Guerra Mundial, enfrentaram uma crise de legitimidade e perderam parte da sua influência no palco-mundo (descolonização, etc.) e assim transformaram o antigo império num novo império financeiro de paraísos fiscais e jurisdições de sigilo, de modo a reivindicar a sua posição no globo.

Já no auge do antigo império, a cidade de Londres (enquanto capital financeira), era conhecida como o ‘Governor of the Imperial Engine’ , é por isso sem surpresas que vemos a transferência das capacidades regulatórias, monetárias, financeiras, imperialistas ou lá o que quer que seja para o ‘novo’ império. Um império encabeçado pela a ilha-mãe, The City of London, e esticado pelas ilhas-satélite, antigos territórios e dependências britânicas (aka jurisdições secretas aka paraísos fiscais) como as Ilhas Caimão e as Ilhas Virgens Britânicas. Só para se ter uma ideia, Nicholas Shaxson, autor do Treasure Islands, estima que a Corporation of London (a cidade e os seus satélites ) controle cerca de 25% do mercado global offshore. Até mesmo o célebre autor de Gomorra, Roberto Saviano, intitula The City of London como o coração da corrupção financeira global.

O que estou a tentar fazer entender aqui, é que se é quase subentendido que o Brexiter de Yorkshire, o operário na rustbelt ou o trabalhador da high street, romantiza o ‘antigo’ império e proclama ‘Let’s Make Britain Great Again’, é menos visível mas tão ou mais importante perceber-se que os Boris desta vida, os Brexiters de fato e gravata, têm conta no ‘novo’ império, pelo que se torna fácil acreditar em algo já materializado.

Londres, a Ilha europeia

Posto isto, saltemos para 2016, a fanfarra era tanta, nas discussões no trabalho, na rua, na net e na televisão só passava Brexit, era vira o disco e toca o mesmo…

Por tudo isso e muito mais, decidi que 24 de junho era para ser levado até às tantas, esperaria pela madrugada se tivesse que ser, queria ‘viver’ o dia B — era tipo o Live Aid da política. Não podia perder a ‘Segunda Grande Brexit’.

E foi com Londres já a acordar, ouvindo-se a primeira vaga de trabalhadores lá fora a preparar-se para a maratona diária ( rat race )  que a contagem, as percentagens e as previsões, se começaram a materializar.

E eu ia esperando sentado, no meu sofá, no meu studio, na minha cabeça, esperançado mas ansioso até que… the votes are in… fiquei sentado, imóvel, em total descrença, a televisão até podia estar aos berros, mas o silêncio era ensurdecedor, tal e qual os zumbidos Hollywood pôs-granada, aquele piiiiiiiiiiiiiiiiiii…

Foi nessa altura, e só nessa altura que,como dizem por cá, ‘the penny dropped”. Pela a primeira vez eu e tantos outros acordámos para o Brexit. Os 48.1% – 51.9% espelhavam o país dividido. Seguiram-se gritos de vitória e lágrimas de derrota nas redes sociais, a ansiedade capitalista dos mercados, e as pesquisas tardias do que realmente era ou significava a Brexit!

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Foi esquisito, ver o país onde ainda hoje resido, querer bazar da União Europeia. Eu, orgulhosamente imigrante, europeu, residente e trabalhador no Reino Unido, não consegui se não sentir o desprezo e raiva vociferada pelos Brexiters. São gajos como eu e outros tantos que eles não querem cá – “go back to your country” – ou pelo menos era esse o refrão da cantiga do Brexit.

Mas verdade seja dita, Londres é uma ‘bolha’, uma ilha dentro de uma ilha, isolada socioculturalmente do resto do reino. E mais a mais,  é uma cidade construída e alimentada todos os dias por imigrantes… é fácil equivocar-nos da sua posição em relação ao resto do reino. É um sítio onde é difícil o racismo ou a intolerância religiosa sobreviver, onde as ‘tribos’ não conseguem viver isoladas do resto da cidade (o indivíduo em contrapartida pode se sentir muito ‘sozinho’, mas isso é outra estória), estando em constante contacto com os outros, com o diferente, o que significa que o fanatismo e a intolerância não tem radius.

Curiosamente (ou não) o que bolhas de tolerância radical como Londres tendem a fermentar é o paradoxo da tolerância – a tolerância é exercitada à letra, radicalmente, e acaba por auto-contradizer-se, reflectindo-se nela própria, agindo sobre si própria.

Em teoria, a regra diz-nos que devemos ser tolerantes com (quase) tudo e todos, seja isso fashion chunga-mitra-hipster-shit, LGBTQA, muçulmanos ou até mesmo benfiquistas – não podemos escolher o que queremos tolerar ou não. Mas nós não o conseguimos, é nos difícil dar scroll num feed e ver posts Islamofóbicos ou homofóbicos… por isso damos unfollow, unfriend. E isto é verdade tanto no universo digital, como social, no nosso dia a dia.

É aqui que o paradoxo acontece, por norma as bolhas características às grandes cidades não toleram a intolerância, distanciam-se e fecham as portas às ruralidades, não lhes dão o direito à intolerância. É essa divisão de city vs country que é visível não só no Brexit, mas no resto da Europa e nas Américas, nesta nova vaga de populismo.

De volta às Terras de Sua Majestade, a nível pessoal o que me chateia mais é esta ideia que certas cliques da sociedade britânica têm de que o resto do mundo (não só a Europa) não gosta deles, o que não podia ser mais longe da verdade; são respeitados e ouvidos como sendo quase a direção, a resposta mais razoável e diplomática. Não há mesa nenhuma em que um britânico não seja necessário. São-no sempre. São responsáveis… e é talvez dessa responsabilidade para com os outros e não só para com eles de que estão fartos. Já na altura, entre amigos, falava-se se do ripple effect que isto teria no mundo, e não foi preciso muito para que outro terramoto político da mesma magnitude acontecesse do outro lado do Atlântico. Também acompanhei dito evento live e… Deja vu, bitches. Claro que diferente, mas também uma canalização da emoção e do medo (do alien muçulmano, do mexicano desonesto, das máquinas, dos chineses, etc.), a mesma discórdia inflamatória e as mesmas echo chambers.

A bem dizer, a minha vida pós-Brexit é praticamente a mesma, mas tenho consciência de que esse não é o caso de muitos outros como eu. Eu pareço-me com eles (o meu cota é alemão), também curto de pale ale e fish & chips, só mesmo quando abro a boca é que sabem que sou estrangeiro.

A dura verdade é que, enquanto a retórica política desenha linhas religiosas e raciais entre as pessoas, as maiores divisões são as de classe e da geografia. As grandes cidades, os centros urbanos densos, ‘forçam’ o multiculturalismo sobre as pessoas e inevitavelmente produzem uma sociedade mais tolerante, o mesmo não é verdade na periferia, nos sítios esquecidos por forças pós-industriais. Tal e qual na América do Trump, ou na Índia do Modi.

Eu percebi isso melhor quando me mudei de Londres para a periferia, the burbs — quis comprar casa e o meu budget não dava sequer para uma garagem, por isso fui priced out of London como eles dizem, e acabei em Leighton Buzzard, parte do Bedforshire (56% Leave). É a 28 minutos de comboio do centro de Londres mas a ‘energia’ muda totalmente, são stickers da ‘Independence Day’ em MINIS todos kitados com neons vermelhos e azuis, são aqueles pubs mais autênticos, gritty and rough, e muito Gammon.

Gammon?! É um termo utilizado por Remainers para caricaturar aquele Brexiter, macho de meia idade, de eurofobia intensa, cuja cara cor-de-rosinha e suada se parece com um pitéu clássico dos pubs, uma espécie de pernil, ora vejam!

É nesta linha de pensamento que a consultoria fictícia Post-Rational (uma brincadeira de pessoal da Wolff Olins e da Goldsmiths University) produziu um report que projecta uma visão utópica do futuro britânico. Londres é democraticamente relegado a cidade-estado, fora do que eles chamam a URE, United Regions of England. A URE ‘expulsa’ Londres por este ser um sítio absoluto, dominante e centralizado, sem tempo e espaço para o resto. Efectivamente uma ‘Terceira Grande Brexit’ – vale a pena a leitura, checkem.

O Sr. Gibraltar

Ora para terminar, e como o David nos falou da Irlanda do Norte no seu ensaio, e do quão complexo a situação se encontra lá — Sunday, Bloody Sunday — eu resolvi falar de algo aqui mais perto de casa, Gibraltar, o anexo Britânico do nosso país vizinho. Acho pertinente falar-se de Gibraltar visto que à imagem da Irlanda do Norte, que partilha a fronteira com a Irlanda; Gibraltar, partilha a fronteira com Espanha, e tal e qual a Irlanda do Norte embora orgulhosamente Britânicos, votaram na sua maioria ( 96% ) Remain. Agora, não me proponho a fazer qualquer análise política que se preze sobre este assunto, ao invés disso vou utilizar Gibraltar como uma caricatura do imperialismo inglês que falei ali em cima, pois é na verdade um ilha-satélite tanto do imperialismo colonial como do financeiro.

O que é Gibraltar senão uma Little Britain além-fronteiras com o selo de aprovação da Rainha?  É um parque temático (leia-se turismo sazonal tudo-incluído característico à Europa do Sul – yup, Algarve, Corfu, Tenerife, etc.) em esteróides e sem a possibilidade de robalo ou sardinhas, peixe só fish, fish and chips. Tem castelos, canhões e brasões da Rainha, tem Brits queimados pelo sol mediterrâneo a comprar Walkers (yeah f%#k Lays!) no Marks & Spencer, macacos e Rolls Royce, tudo com a The Rock no pano de fundo, é, tal como o Brexit, meio surreal! Ora checkem este ensaio fotográfico (artigo com paywall).

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  • Daniel Hoesen

    Luso-alemão nascido algarvio. Creative Strategist a trabalhar em Londres. Procuro descodificar pessoas, lugares e culturas para (re)criar marcas – não apenas como elas se parecem e falam, mas como elas se comportam enquanto parte da sociedade. Sou possibilista – 'I don’t hope nor fear without reason, but I’m always convinced progress is possible'.

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