Vinda do “mundo da fome”, Elza Soares tem lugar garantido, e cativo, no Olimpo da música brasileira. Aos 80 anos esta verdadeira força da natureza continua com uma atitude libertária invejável a muitos millennials e suficientemente inspiradora para alcançar a transversalidade necessária para romper as barreiras do tempo e da língua — “Eu não tenho idade, eu sou o tempo”, afirmou Elza Soares numa entrevista.
Mulher, negra e da periferia. Equação de fácil interpretação mas de difícil resolução, serve de mote para uma obra cultural e socialmente impactante num país onde 7,2% da população vive em condições de pobreza extrema – o equivalente a 14,83 milhões de pessoas, segundo relatório da LCA Consultores divulgado pelo IBGE.
O background da artista e todas as dificuldades de uma dura vida são exorcizadas através da rouca voz de Elza Soares, em prol de uma mudança de mentalidades – “Foram vários momentos em que sofri por ser uma mulher negra, mas fui maior do que isso e não deixei me abater”; “Nosso País é o mais racista do mundo. Nós temos que nos mudar, abrir a mente e se libertar.”
“Feminismo” é (infelizmente) uma palavra-chave aliciante para as inflamáveis redes sociais. Com o seu significado facilmente banalizado e com o teor de controvérsia necessário para originar discussões intermináveis, alimenta algoritmos enquanto hiperboliza o irrelevante, destacando o visualmente mais apelativo e sensacionalista, enquanto desvirtua— virtualmente — um conceito por completo, ou perto disso.
Elza Soares é a interprete que através da voz re-credibiliza e dá eco à luta, força e importância de um movimento segundo o verdadeiro sentido literário da expressão — “Acho que é a agora (que o feminismo) tem que ser cantado. Agora é que a gente tem que dizer: ‘com licença, eu tô aqui, cheguei!’ Está chegando o momento da mulher, com muita luta, sacrifício e empoderamento, essa guerra é nossa. A vitória é nossa. Não que eu seja a dona da verdade, mas todos os caminhos que já trilhei, sei que estou no caminho certo”.
Lançado na passada sexta-feira, dia 18, Deus É Mulher é o segundo álbum de originais de Elza Soares e o sucessor de Mulher do Fim do Mundo, lançado em 2015. Em contraste com o disco anterior, Elza participou mais activamente na selecção dos temas, escolhendo a totalidade das 11 faixas presentes no disco – entre 60 previamente seleccionadas pelo produtor Guilherme Kastrup.
“Eu acredito muito em Deus, tanto acredito nele que eu acho que ele é mulher”
Deus É Mulher é o passaporte para uma desconcertante trip sonora, viajando pelo funk, rock, punk e toda a africanidade inerente à obra de Elza Soares, numa autêntica ode à força transcendente da mulher. Politico e interventivo, é a força da expressão das “vozes caladas”; da luta da mulher numa sociedade profundamente machista; da desigualdade social baseada em contrastes raciais; da extrema homofobia e intolerância religiosa – “Sai pra lá com essa doutrinação, eu não quero o medo me dando sermão, o castigo que serve só para vender o perdão” – “Credo”. Num país onde os negros representam 54% da população, Elza Soares defende também o ensino da cultura afro-brasileira nas escolas no seu novo álbum — “Exú nas Escolas”.
“Este álbum é abusado mesmo! Mas a gente estava com muita preocupação. Queríamos um trabalho que igualasse ou superasse A mulher do fim do mundo. A galera é a mesma, os músicos são os mesmos. Só que a mensagem é mais solar, é mais clara, tem mais clareza, é mais aberta. Estamos saindo daquela coisa dark , disse em entrevista ao Correio Brasiliense.
No que diz respeito a à construção do álbum, Elza Soares manteve a espinha dorsal do seu disco anterior. Se Mulher do Fim do Mundo podia ser criticado pela fraca presença de mulheres, o novo disco vem protegido contra haters, com as participações Mariá Portugal (bateria, percussão e MPC) e Maria Beraldo (clarinete e clarone) e o grupo feminino afro Ilú Obá de Min.
Elza Soares conta com a participação especial do cantor Edgar, em “Exú nas Escolas” e do grupo Ilú Obá de Min na percussão e vozes de “Dentro de Cada Um” e “Banho”. A produção ficou a cargo de Guilherme Kastrup com coprodução de Romulo Fróes, Marcelo Cabral (baixo e Bass Synth), Rodrigo Campos (cavaquinho e guitarra) e Kiko Dinucci (guitarra, sintetizador e sampler).
Podes ouvir Deus é Mulher no Spotify e no YouTube.
Deus é Mulher (tracklist + autores)
- “O Que Se Cala” (Douglas Germano)
- “Exú nas Escolas – Part. Especial Edgar” (Kiko Dinucci e Edgard)
- “Banho – Part. Ilú Obá de Min” (Tulipa Ruiz)
- “Eu Quero Comer Você” (Romulo Fróes e Alice Coutinho)
- “Língua Solta” (Rômulo Fróes e Alice Coutinho
- “Hienas na TV” (Kiko Dinucci e Clima)
- “Clareza” (Rodrigo Campos)
- “Um Olho Aberto” (Mariá Portugal)
- “Credo” (Douglas Germano)
- “Dentro de Cada Um” (Pedro Loureiro e Luciano Mello)
- “Deus Há De Ser” (Pedro Luiz)
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