‘Cultura da Ansiedade’: como a economia da atenção impulsiona (e prospera) no nosso medo do futuro

13 Setembro, 2025 /
The X-Files, ‘Blood’ (1994)
Desgraça! Pavor! Crise interminável e insuperável! Atormentados pela ansiedade, os humanos refugiam-se em versões idealizadas do passado e em distopias abstratas do futuro – como quebrar ese ciclo?

O retraímento prospera na encruzilhada entre o conforto e a ansiedade. Este post é sobre a segunda — não sobre ansiedade enquanto condição médica (não sou médico) mas enquanto um “fenómeno cultural e social” que tem moldado grande parte das nossas vidas na última década, e não parece desaparecer em breve.


Recentemente estava a ver uma série — provavelmente The Studio — quando, no ecrã, o alarme do telefone de uma das personagens começou a tocar. Foi um som que muitos espectadores reconhecerão, um alarme pré-definido da Apple (naturalmente,  já que os iPhones são omnipresentes — até porque a série é transmitida pela Apple TV, permitindo que esta gigante da tecnologia faça essas referências subtis à sua supremacia sob a nossa atenção). Ver TV geralmente é relaxante. Eu estava a saborear uma boa chávena de chá de menta. Mas instantaneamente senti o meu batimento cardíaco acelerar e a minha pressão sanguínea a disparar. Até a minha cadela, a Mimi, que estava a dormir ao meu lado, ficou tensa e levantou as orelhas. Como é que um som relativamente inofensivo pode ter um efeito tão pesado no nosso sistema nervoso?

Há dezenas de milhares de anos, quando os nossos antepassados primitivos viviam em cavernas ou em clareiras nas florestas, vivíamos junto a fogueiras para nos aquecermos mas também por uma questão de segurança. Os guardas noturnos ficavam acordados em turnos enquanto os outros sonhavam — remexiam as brasas, com os ouvidos atentos, alertas aos sons da floresta. Um galho a partir aqui, uma coruja a voar ali, os latidos e uivos dos cães selvagens, predadores a espreitar por entre a escuridão. Em 1966, o investigador do sono Frederick Snyder descreveu isto na sua hipótese do sentinela: “O Homem e outros animais aprenderam que sob circunstâncias de perigo só é seguro dormir se os sentinelas estiverem encarregados para se manterem vigilantes…” Há evidências que sugerem que padrões de sono diversos eram uma característica evolutiva inerente às primeiras sociedades humanas, para garantir que nunca entravam num estado de sono profundo ao mesmo tempo — a inquietação como vantagem evolutiva. E na Tanzânia, os caçadores-colectores Hadza ainda exibem esses comportamentos naturais hoje em dia.

Na grande parte das sociedades industriais (ou pós-industriais), no entanto, já não precisamos de estar constantemente alerta. A maior parte das pessoas — pelo menos a maior parte das pessoas que estão a ler isto — são sortudas o suficiente para viver livres de predadores ou outros perigos iminentes. A tecnologia, as infraestruturas, e códigos sociais mantêm as ameaças longe. Podemos dormir facilmente. E ainda assim… não dormimos.

Em 2025, somos bombardeados por alarmes e outros estímulos que induzem a ansiedade por todos os lados. Isso não ocorre porque o número de ameaças aumentou, mas porque temos acesso a uma grande quantidade de informações. Sabemos muito sobre as ameaças que existem por aí — discutivelmente demasiado, como Ezra Klein defendeu recentemente numa entrevista com a escritora Kathryn Shulz: “Uma das minhas crenças mais inconvenientes sobre o mundo é de que sabemos demasiado. E que a mente humana não está preparada para ser tão puxada por tantas ameaças, perigo e tragédia a toda a hora.”

Seguindo o mesmo impulso evolutivo dos nossos ancestrais, checkamos os nossos telemóveis mais de 200 vezes por dia. Vemos o e-mail, o Instagram, o TikTok e o X, à procura de predadores e presas, aliados e tribos hostis. E mesmo quando desviamos a nossa atenção para outro lugar, uma parte do nosso cérebro está constantemente atenta ao mais leve zumbido de um intruso no nosso «território» virtual. De certa forma, todos nos tornámos um pouco no vigia noturno inquieto — e como todos ocupamos a nossa própria «bolha» ou «clareira» virtual na floresta escura da internet, não podemos delegar o papel de sentinela a ninguém enquanto descansamos. Na verdade, no mundo físico, estamos cada vez menos propensos a confiar nas instituições que antes nos ofereciam alguma paz de espírito: o Estado, a Igreja e até mesmo as empresas.

E enquanto a atenção dos nossos antepassados ancestrais estava fixa no que os rodeava, hoje em dia as nossas ansiedades abrangem todo o globo e uma boa parte do universo. Crise climática. Asteróides perigosos. Vírus microscópicos. Nós vemos mais do que nunca; o número de ameaças percebidas cresce exponencialmente. A nossa supervisão sem precedentes significa que um sem número de ameaças está disponível 24/7 (é sempre noite em alguma parte do mundo) mas também que, na maioria do tempo, estão muito distantes e desconectadas da nossa vida quotidiana. Em 99% das vezes, quando vemos perigos e desastres a acontecer através dos ecrãs das nossas casas ou dos feeds de redes sociais, na verdade somos completamente impotentes para fazer algo a seu respeito.

Posto isto, será realmente surpreendente que o espírito que melhor define a cultura na década de 2020 seja a ansiedade? O medo, o desamparo? Uma sensação de crise interminável e insuperável? Todos os dias somos bombardeados com imagens reais e ficcionais de zonas de guerra, dados sobre a destruição dos ecossistemas da terra, rumores sobre novas pandemias e o colapso financeiro, e especulações sobre uma revolução robótica iminente. E entretanto, deixámos praticamente de tentar imaginar um modo de vida mais esperançoso. Na música, na arte, nos livros, nos filmes e tv, nos videojogos e especialmente na cultura meme da internet, distopia é a palavra chave. Muitos políticos, pensadores e académicos, a trabalhar na vida real também parece ter perdido a esperança. Os seres humanos fogem do risco e da complexidade que é pensar o futuro, e refugiam-se na nostalgia de um passado que nem existiu. E toda a cultura é hauntológica, para usar o termo de Mark Fisher.

Há apenas algumas décadas, as coisas eram diferentes… ou pelo menos é o que me dizem. Um brilho dourado de entusiasmo emanava do futuro e enaltecia as nossas ações e crenças, incorporadas nos mundos utópicos dos artistas de ficção científica, nos princípios voltados para o futuro da arquitetura e do design modernistas, na crença na ciência para curar todos os males da humanidade e na democracia para organizar as suas massas e, talvez mais do que tudo, nas primeiras imagens espetaculares do além da atmosfera terrestre. Viagens espaciais! Carros voadores! Abundância! Da mesma maneira, os primórdios da internet foram inundados por um sonho optimista de “aproximar o mundo”, empoderar o indivíduo e inaugurar uma nova era de liberalismo global. A humanidade acelerou em direção ao futuro, como traças atraídas pela luz.  Mas agora, 30 anos depois da abertura ao público da World Wide Web, 20 anos desde o lançamento do Facebook, a atitude dominante em relação ao futuro é o medo. Os humanos lutam contra a corrente que flui do passado -> presente -> futuro, como traças levadas pelo ralo.

Conceito de Syd Mead, futurista e designer, ‘Space Wheel Interior’ (1979)

Muitas das ansiedades contemporâneas estão, claro, enraízadas em factos e fenómenos reais. A mudança climática antropogénica tem efeitos extremamente tangíveis e mensuráveis. A pandemia de 2020 mostrou o quão mal preparados estamos para lidar com um surto global de doenças. As superpotências estão a rearmar-se a meio de um complexo impasse internacional. A inteligência artificial parece prestes a virar as nossas vidas de cabeça para baixo — se não por meio de um violento golpe das máquinas, então por meio de uma perturbação do mercado de trabalho, aceleração das divisões sociais existentes e uma consequente crise de significado. E nenhuma destas convulsões existe isoladamente. Como tantas vezes nos dizem, vivemos numa era de policrise, em que cada uma das situações acima referidas (e outras) se juntam numa metacrise complexa maior do que a soma das suas partes.

Mas a maioria de nós não sentiria os efeitos dessas crises tão intensamente, no dia a dia, se não fosse pelos efeitos ansiogénicos do panorama mediático atual, que constantemente exagera os nossos impulsos evolutivos. Um pouco de contexto: em 2024, a internet substituiu a televisão como a fonte de notícias mais popular do Reino Unido pela primeira vez. Numa pesquisa da Ofcom, entre os jovens de 16 a 24 anos, 82% citaram as redes sociais como sua principal plataforma para receber notícias, numa estatística dividida de entre TikTok, Instagram, YouTube, Facebook e X. Acresce a isso as horas que passamos à procura de narrativas mais locais e personalizadas que se desenrolam nessas aplicações: imagens idealizadas da vida de nossos amigos e estranhos, discussões mesquinhas, hot takes e retórica prejudicial. Nós alimentamos o fogo. Mantemos contato para não ficarmos para trás e, como resultado, nunca conseguimos desligar completamente, entrar no “sono profundo” de que precisamos para descansar, recuperar-nos e sonhar.

Por esta altura, a maioria das pessoas está familiarizada com os incentivos distorcidos que as plataformas corporativas que controlam a internet e a economia da atenção espalharam pelo mundo. Resumindo: algoritmos opacos são projetados para maximizar o tempo que passamos em qualquer aplicação — tempo que se traduz em anúncios assistidos e dados pessoais coletados. Para essas empresas, tempo é literalmente igual a dinheiro. E qual é a melhor maneira de sugar o nosso tempo? Provocar uma resposta emocional. Isso inclui as emoções positivas associadas à dopamina, mas emoções negativas como raiva, tristeza e ansiedade têm-se mostrado ainda mais eficazes. Isso criou o que o escritor JA Westenberg chama de Complexo Industrial de Doomscroll:

“O Complexo Industrial Doomscroll opera com base num princípio simples: más notícias são bons negócios.”

Os efeitos negativos desse sistema são evidentes. Em A Geração Ansiosa, o psicólogo Jonathan Haidt observa que os diagnósticos de ansiedade entre pessoas de 18 a 25 anos aumentaram 92% entre 2010 e 2015, um período que coincide com a popularização generalizada dos smartphones com acesso à Internet. Ansiedades mais específicas relacionadas com a saúde, as relações sociais, vida romântica e a carreira também têm sido associadas às redes sociais e a outras tecnologias, como os dispositivos wearables (que deveriam tornar as nossas vidas mais fáceis, melhores e menos stressantes).

Gráfico da prevalência de ansiedade entre faixa etárias onde se vê o aumento nos mais novos a partir de 2012
Gráfico da adopção de tecnologia

(Gráficos de A Geração Ansiosa de Jonathan Haidt)

Mas precisamos sequer de quadros e gráficos para nos dizer que os nossos cérebros não foram feitos para ser bombardeados com más notícias várias horas por dia? Ou que a sobrecarga de média nos pode deixar mais ansiosos, agitados e infelizes a longo prazo? Ou que o fluxo interminável de imagens horríveis está a minar a nossa capacidade de desligar e relaxar de verdade? Provavelmente não. Como um sábio (MC Ride, do Death Grips) resumiu certa vez: “I’ve seen footage, I stay noided.” («Eu vi as imagens, fiquei perturbado».)

Onde podemos procurar tranquilidade – para encontrar visões de um futuro melhor, para alimentar o nosso próprio otimismo sobre o rumo que as coisas estão a tomar? Já não é na arte. O «futurismo otimista» das décadas passadas já não existe há muito tempo; os nossos futuros ficcionais agora são terras devastadas pós-nucleares, nações devastadas pela guerra civil ou mais do mesmo, mas pior – como nos episódios recentes de Black Mirror, que extrapolam os efeitos da tecnologia atual para realidades sombrias não muito distantes. Mas a política também já não nos oferece muita esperança. Muitas vezes, parece que os nossos líderes e governos não estão particularmente interessados em fazer algo significativo para lidar com o nosso novo estado de agitação e incerteza. Adam Curtis retrata isso em documentários como HyperNormalisation, onde o princípio orientador da política contemporânea é o «declínio controlado».

Há 20 anos, em A Doutrina do Choque, Naomi Klein sugeriu uma realidade ainda mais sombria:

«A recente onda de desastres traduziu-se em lucros tão espetaculares que muitas pessoas em todo o mundo chegaram à mesma conclusão: os ricos e poderosos devem estar deliberadamente a causar as catástrofes para poderem explorá-las.»

Esta citação continua atual. Muitas das nossas figuras mais poderosas – dominadas por interesses corporativos ou ganância pessoal, além de vícios incapacitantes pelo poder, fama e, provavelmente, cetamina – inspiram mais ansiedade, em vez de menos.

Isto não se refere apenas à elite de Silicon Valley (e simplesmente regular ou livrarmo-nos das grandes empresas de tecnologia não é a solução rápida que muitos acreditam ser). Nos últimos anos, muitas empresas de media tradicionais aderiram ao novo paradigma, compartilhando manchetes mais extremas, polarizadas e emocionalmente impactantes para competir pela nossa atenção. Se não pode vencê-los, junte-se a eles, acho eu… É claro que a cobertura noticiosa sempre teve uma tendência para o mórbido e o sombrio, em linha com o viés de negatividade inerente aos seres humanos – outro resquício das nossas vidas pré-históricas –, mas as notícias tornaram-se ainda mais raivosas e negativas nas últimas duas décadas, especialmente em nações com uma divisão ideológica cada vez maior. Mesmo no Reino Unido, onde a BBC faz alegações (frequentemente contestadas) de racionalidade e imparcialidade, o surgimento de redes privadas como a GB News fez com que a cobertura convergisse com a tendência da internet para o extremismo. Tudo isso, inevitavelmente, se refletiu nos debates da vida real.

Há um contra-argumento compreensível aqui: o mundo real não se tornou simplesmente mais extremo, polarizado, hostil e perigoso nas últimas décadas? Se sim, não é melhor sabermos disso, mesmo que isso signifique ser expostos a mais notícias ruins? Bem, vamos dar uma olhada num exemplo (relativamente apolítico) do início de 2025, para ver como as nossas percepções são distorcidas pela economia da atenção…

No início de 2025, vários acidentes aéreos chegaram às nossas telas em rápida sucessão, amplificados pelo facto de terem ocorrido na América do Norte:

  • 29 de janeiro: um avião comercial colidiu com um helicóptero Black Hawk nos arredores de Washington, DC. Nenhum dos pilotos, tripulantes e passageiros sobreviveu.
  • 31 de janeiro: um Learjet caiu numa zona residencial da Filadélfia, matando todos os seis passageiros e um transeunte infeliz.
  • 17 de fevereiro: um jato capotou na pista do Aeroporto Internacional Pearson de Toronto. Todos os passageiros e tripulantes sobreviveram, com 21 feridos, alguns deles graves.

Uma onda de pânico sobre os perigos das viagens aéreas surgiu na sequência destes acidentes. Publicações alarmistas nas redes sociais espalharam as habituais teorias da conspiração para atrair engajamento (o governo está a fazer os aviões caírem para nos manter todos dentro de casa ou para matar os opositores políticos, etc.). Isso fez com que pesquisas no Google como «voar é seguro?» disparassem em todo o mundo. E, numa corrida por atenção e cliques, as manchetes das notícias foram elaboradas tendo em mente essas palavras-chave populares. Em muitos casos, isso também envolveu apelar a uma reação política — justificada ou não — contra a DOGE, a agência governamental então chefiada por Elon Musk, por cortar funcionários federais, incluindo controladores de tráfego aéreo. O resultado? De acordo com uma inquérito, mais da metade dos americanos ricos relatou ter perdido a confiança na segurança das viagens aéreas em março de 2025. A ansiedade aumentou, enquanto a realidade mais otimista foi ocultada: no geral, as viagens aéreas estão a ficar muito mais seguras. As mortes na aviação reduziram drasticamente nas últimas décadas, enquanto os «acidentes» em geral diminuíram para metade entre 2005 e 2023. Voar é muito menos perigoso do que, por exemplo, conduzir até ao aeroporto ou andar de bicicleta. Mas não se sabe disso. As percepções emocionais das pessoas sobre as viagens aéreas já não correspondem aos factos.

Mais uma vez, a nossa economia baseada na atenção (e na «pós-verdade») funciona com base em emoções intensificadas. E essas emoções são importantes – moldam as nossas perceções da realidade e, portanto, o panorama de futuros possíveis –, mas também sustentam as nossas atitudes cada vez mais negativas e ansiosas. Em 2018, um grupo de investigadores multidisciplinares da Universidade de Columbia chegou ao cerne dessa dinâmica. Eles escreveram:

«Se a cultura da ansiedade tem a ver com ter medos, estes são muito mais resultados pelo sentir do pulso da vida contemporânea e lutar para conceber o futuro, do que por um estudo frio e analítico do presente.»

O paradoxo entre facto/sentimento vai além de qualquer questão específica e molda a nossa opinião sobre a própria vida moderna. À escala global, a qualidade de vida das pessoas tem melhorado constantemente desde o início da Revolução Industrial, mas cada vez mais consideramos essa revolução um grande erro (em parte porque esperamos que as suas consequências tragam o fim da própria vida… se isso se confirmar num futuro próximo, então tudo bem, talvez os pessimistas estivessem certos). Em vez disso, idealizamos a vida pré-industrial dos nossos antepassados — uma versão do passado, ironicamente, em que ainda éramos capazes de «conceber um mundo radicalmente diferente daquele em que vivemos atualmente» (Mark Fisher novamente). Um passado em que ainda acreditávamos no futuro. Mas o tempo move-se numa única direção: não há volta a dar. E mesmo que pudéssemos viajar para trás no tempo, esquecemos convenientemente que teríamos de sacrificar também todas as coisas boas. A medicina e a odontologia modernas. Viagens baratas e eficientes. Comidas variadas e exóticas. A extrema improbabilidade de um vizinho lhe dar uma pancada na cabeça com um pau. A relativa improbabilidade de os países vizinhos se darem pancadas na cabeça uns aos outros com um grande pau, por assim dizer.

Em termos gerais (e sem levar em conta as flutuações de curto prazo), os factos concretos dizem-nos que as coisas estão a melhorar para a raça humana como um todo, mesmo que pareça que estão a piorar. Isso não significa que as coisas sejam simplesmente boas — que coisas horríveis nunca acontecem ou que os desastres são coisa do passado. Há uma ótima citação sobre isso do economista Max Roser:

«O mundo é horrível. O mundo é muito melhor. O mundo pode ser muito melhor. Todas as três afirmações são verdadeiras ao mesmo tempo.»

Ok, outro contra-argumento: mesmo que a vida quotidiana não esteja a tornar-se mais perigosa e distópica com o passar dos anos, o nosso acesso ao sofrimento de outras pessoas aumentou graças às tecnologias globalizantes, como viagens de alta velocidade, meios de comunicação social e internet. Certo? Não temos a responsabilidade de nos mantermos informados sobre as dificuldades e crises de outras pessoas, agora que sabemos sobre elas? Isso não é o oposto de se isolar?

Essa é uma questão complicada. Poucos de nós queremos sentir que estamos ignorando o sofrimento de alguém menos afortunado para proteger a nossa própria paz de espírito (que muitas vezes depende de terceirizar cegamente esse sofrimento para trabalhadores de fábricas na China, mineiros de cobalto no Congo e assim por diante). Mas também não devemos ser totalmente acríticos em relação ao nosso próprio envolvimento. O que estamos realmente a contribuir ao «manter-nos informados» sobre conflitos e desastres distantes, se raramente absorvemos mais do que um título ou alguns parágrafos abstratos? Com que frequência esses fragmentos de informação se traduzem em ações significativas? E mesmo quando isso acontece, quanto tempo dura? Já vimos como as campanhas mais bem-intencionadas pela justiça social,política ou ambiental podem degenerar em mera performance, um marcador de identidade grosseiro e superficial. O quadrado preto ou a infografia na grelha do Instagram. A ilustração de IA de uma paisagem palestiniana inexistente.

Isto não quer dizer que o engajamento nunca faça diferença, porque obviamente faz – apenas que vale a pena questionar a natureza do nosso engajamento. Estamos a tornar o mundo um lugar melhor através do doomscrolling interminável ou de ficarmos colados às notícias 24 horas por dia? Mais importante ainda: à medida que ondas intermináveis de más notícias causam um impacto mensurável na nossa saúde mental, não estarão na verdade servindo como uma distração dos problemas mais próximos de casa – problemas sobre os quais temos influência? Estaremos a refugiar-nos num sentimento nebuloso e sem rumo de pavor que não exige nada de nós além de levantar as mãos e declarar que o mundo está a ir para o buraco, em vez de enfrentar os problemas que poderíamos realmente ajudar a resolver? Como criaturas emocionais e avessas ao risco, esse impulso pode ser natural: a curto prazo, é muito mais fácil e eficiente em termos energéticos folhear as notícias e abanar a cabeça perante alguma tragédia distante do que realmente fazer algo – especialmente quando todos os incentivos apontam para o consumo, e não para a criação. Mas isso tem um custo elevado: custa-nos o nosso sentido de agência e criatividade, a oportunidade de cultivar um sentido de confiança e controlo sobre o rumo do futuro.

Adam Curtis, It Felt Like A Kiss (2009)

Isso é mau. Num sentido mais material, abre a porta para que outros moldem o mundo como bem entenderem (as pessoas optimistas em relação ao futuro tendem a ser as que o criam). Nesse sentido, a cultura da ansiedade alimenta-se a si mesma, num ciclo cada vez mais acelerado. Encoraja-nos a trocar a nossa agência e habilidade de imaginar novos futuros; em alternativa, o futuro parece-nos cada vez mais estranho, desenhado por e para outra pessoa completamente diferente; a realidade torna-se cada vez menos familiar, ficamos mais ansiosos e isolados; e o ciclo repete-se.

Isto não acontece só na escala individual, ou local, mas potencialmente numa escala social ou civilizacional…

Recentemente, perguntei à minha mãe se ela teve alguma dúvida em trazer uma criança (eu) ao mundo. Isto foi no Reino Unido, em meados dos anos 90 — uma década apelidado como “férias da história” —, onde ainda havia alguns motivos para ansiedade: conflitos nacionais e internacionais, os receios climáticos a entrar na agenda política, o bug do milénio ao virar da esquina, e imagens de ruína financeira e de aviões a cair do céu.

“Não”, respondeu ela. “As pessoas não pensavam muito sobre essas coisas”.

Hoje, potenciais pais contam uma história diferente, caracterizada pela dúvida e incerteza. (Esta comparação é baseada numa evidência anedótica mas parece corresponder aos dados que existem sobre o mundo real.) Em estudos recentes, investigadores estabeleceram correlações entre a percepção dos jovens sobre ameaças futuras, especialmente a degradação do clima, e atitudes negativas em relação à gravidez. Estas atitudes negativas baseiam-se numa preocupação bastante óbvia: Porque traríamos mais humanos para um mundo em chamas? Claro que muitos factores contribuem para a queda nas taxas de natalidades — e muitos investigadores discordam sobre a escala desse problema — mas a cultura da ansiedade não ajuda.  Ironicamente, alguns investigadores sugerem que o declínio populacional, provocado por esta relutância em ter filhos, se torna, por si próprio, um motivo de ansiedade existencial. Outro ciclo vicioso.

O oposto da ansiedade é a confiança. Mas podemos simplesmente ser mais confiantes?

Se chegaste até aqui, a maneira mais óbvia de combater a ansiedade provavelmente é evidente. Desligar as notícias 24 horas por dia. Largar o telemóvel. Desligar a torrente de más notícias e negatividade que alimenta a economia da atenção. É mais fácil dizer do que fazer, mas esse é precisamente o ponto: não se progride ao ficar na zona de conforto. Porque ninguém fará isto por ti, como August Lamm escreve em You don’t need a smartphone:

“Não espere por mudanças institucionais para fazer mudanças na sua própria vida. As grandes empresas de tecnologia não têm nenhum incentivo para se tornarem menos viciantes. O dinheiro delas depende de mais, não de menos. Esperar por legislação ou regulamentação é como esperar que o traficante de heroína morra para ficar limpo: isso diminui o poder e atrasa a sua recuperação.”

Deitar fora o iphone é a visão mais extrema de levar a cabo esta mudança. Mas há muitas outras maneiras com quem podemos renegociar a nossa relação com a tecnologia e os media, mantendo um certo nível de conectividade, desde ferramentas que limitam o tempo de ecrã até rituais da vida real: desligar a televisão, colocar o telemóvel noutra divisão enquanto jantas, dar um passeio sem dispositivos, activar o modo “Não Perturbar” sempre que possível e cultivar limites digitais mais fortes. E, ao mesmo tempo, reservar mais tempo para relacionamentos “reais”, mais próximos de casa — para construir uma tribo que possa assumir a vigilância nocturna enquanto descansamos.

Para clarificar: desligar não é mesmo que subtrair-se. Não se trata de recuar para esconder a cabeça dentro da nossa concha. É mais sobre avaliar o que podemos controlar e o que não podemos. O filósofo estoico Epicteto disse-o melhor.

“Há coisas que estão ao nosso alcance e coisas que estão fora do nosso alcance […] Trabalhando dentro da nossa esfera de controlo, somos naturalmente livres, independentes e fortes. Fora dessa esfera, somos fracos, limitados e dependentes.”

“Se depositar as suas esperanças em coisas fora do seu controlo, assumindo responsabilidades que pertencem por direito a outros, estará sujeito a tropeçar, cair, sofrer e culpar tanto os deuses como os homens.”

As redes sociais de massa e os ciclos de notícias internacionais normalmente alimentam-nos com problemas sobre os quais temos muito pouco controlo e incentivam-nos a preocuparmo-nos com coisas fora do nosso alcance. Em contrapartida, as coisas que podemos influenciar é mais provável que as encontremos ao envolvermo-nos com o nosso ambiente local, as suas pessoas e comunidades. (Sejam físicas ou digitais. O significado de local mudou muito nas últimas duas décadas.) E ao envolvermo-nos com nós mesmos, os nossos próprios corpos e mentes.

Para terminar quero voltar à ideia da distopia, a palavra-chave preferida da cultura contemporânea. Se quisermos combater os sentimentos de ansiedade e desesperança que surjam quando olhamos para o mundo dessa forma, parece fazer sentido invocar o seu oposto: a utopia. E o pensamento mágico pode ser uma boa prática imaginativa, como escreve o designer e investigador Fred Scharmen, neste artigo da e-flux sobre arquitectura espacial. «Os ideais utópicos conceituais existem a montante dos padrões que produzem a dura realidade», diz Scharmen, citando o falecido crítico Frederic Jameson e a sua conceção do pensamento utópico como uma ferramenta crítica: «O pensamento utópico existe para criticar o quadro dominante existente, o status quo.»

O problema é que a verdadeira utopia — onde a raça humana resolve todos os seus problemas para sempre, o que provavelmente significa resolver todos os problemas de todos os outros seres vivos na Terra também — é impossível de colocar em prática. Pior ainda, qualquer coisa chamada de utopia no passado geralmente envolvia a criação de algo que se parecia muito com uma distopia para outra pessoa. Felizmente, no final da década de 2000, o escritor, editor e futurista Kevin Kelly criou uma palavra para uma terceira via: protopia. Enquanto o pensamento utópico pode proporcionar uma forma divertida e perspicaz de criticar o status quo atual, a protopia oferece um caminho realista e otimista para o futuro. A ideia é tornar o amanhã um pouco melhor do que o hoje. Não se deixar levar pelo desespero (ou pela ilusão otimista) sobre futuros distantes e possíveis, mas concentrar-se em melhorar as coisas que se pode controlar.

Devido aos problemas intermináveis, complexos e imprevisíveis causados pelo progresso, Kelly admite: «A protopia é muito mais difícil de visualizar» do que as suas alternativas distópicas. Também está destinada a criar problemas novos e imprevisíveis. Também não é tão emocionante. Mas vale a pena dedicar-lhe a nossa energia mesmo assim — é melhor concentrarmo-nos em como o amanhã poderia ser plausivelmente e como poderíamos plausivelmente torná-lo melhor, do deixarmo-nos levar pelo Futuro Terrível, pelo Presente Cego ou pelo Passado Falso. A destruição implacável não é inevitável. Chegámos até aqui, não foi?

Este texto foi originalmente publicado no Substack de Thom Waite, Nightmare of Mollusc.

Autor:
13 Setembro, 2025
Picture of Thom Waite

Thom Waite

Thom Waite é um escritor que vive em Londres e na World Wide Web. Interessado na intersecção entre arte e tecnologia da IA às viagens espaciais , escreve frequentemente para a Dazed, a AnOther Magazine e outras publicações. Também fundou o Substack Nightmare of Mollusc! , onde explora o fenómeno moderno do retraímento.

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