Terá o cinema, enquanto espelho que é, a capacidade de colocar as engrenagens em movimento em direcção à mudança do estado das coisas? Poderá este pontificar o momento em que vivemos no tempo? Tomar e medir o pulso de um estado cultural e político tão avassalador como o presente? Quando o cineasta galego Oliver Laxe fala de Sirât — a sua mais recente longa-metragem e primeira presente na competição principal do Festival de Cannes no passado mês de Maio, onde arrecadou o Prémio do Júri e de Melhor Banda Sonora —, fala como se de uma profecia se tratasse. Como porta-voz deste mundo criado, uma experiência sensorial, refere-se a ela com muita claridade, como se esse papel lhe tivesse sido dado por uma entidade divina, e nele estivesse a chave para compreender quase tudo.
Um cineasta que explora fronteiras e pontes, algures entre a antropologia e o documentário, Laxe tem vindo a desenhar um cinema audacioso enquanto prática etnográfica com um corpo e mente de si mesmo (sempre dependente da abertura do espectador). A textura fornecida pelo formato 16mm serve para estabelecer a aura visual que, primeiro lentamente e depois de uma só vez, tomará conta da narrativa, até esta ser apenas o desvendar do véu para uma viagem que trai expectativas. Falo de mundos operados a nível cerebral, que se encontram entre a vida e a morte, fáceis de rejeitar mas prontos a habitar, onde a história existe apenas como local de entrada. Pelo caminho, Laxe deixa vestígios, alguns subtis, outros demasiado óbvios nas suas imagens alegóricas, em direcção a uma perda de controlo que abrirá uma dimensão que é, em iguais porções, fantasia e realidade, paraíso e inferno. Com ele vamos até ao fim do mundo que, como nos é dito no filme, “já começou há muito tempo”.
Através da procura de uma família pela filha e irmã mais velha, de quem nada sabem há cinco meses, caímos na paisagem austera do deserto em Marrocos, onde embarcamos numa travessia que remonta primeiro a Mad Max e depois a Zabriskie Point (1970) num filme que contempla o vazio e onde se consegue ver as costuras da linha de montagem se da experiência dele permanecermos distanciados. Caso isso não aconteça, pelo meio, perderemos noções de velocidade e da passagem do tempo. Mas o espaço (só temos uma referência geográfica dele, a viagem de Marrocos à Mauritânia passando pelo deserto do Sahara, que é politicamente uma terra de ninguém), esse só se expande mais e mais até dele perdermos o rasto também. No seu núcleo respira um diálogo feliz sobre a família fornecida e a encontrada, dentro de uma comunidade de pessoas feridas que perseguem o desejo de viver a vida na sua forma mais elementar, longe do status quo capitalista. Também de referir é a sugestão (ou será manipulação?) de um cineasta e a tarefa árdua que pede do seu espectador: que se abra o suficiente para ter coragem de se ouvir e encarar, aceitando, a sua finitude.
Em Lisboa para promover a estreia comercial do filme nos cinemas portugueses, falamos com Oliver Laxe sobre tudo isto no pátio de um hotel num dia quente de Agosto.
Shifter (S.) — Em vez de começar pelo início, gostava de começar pelo fim. Se eu dissesse que Sirāt se assemelha a uma fórmula para activar o espectador, o que dirias? Nunca o espectador esteve tão anestesiado.
Oliver Laxe (O.L.) — Activar o espectador será fazer com que se conecte consigo mesmo, que é algo que todos nós procuramos de alguma forma, não é? Que o filme seja essencial, que faça com que o espectador se interligue com a sua essência. Nesse sentido, existe um desejo de que o filme seja radical. A origem etimológica da palavra radical vem de raiz, radicalis. Então “raiz”, essência…de alguma maneira isso seria activar o espectador, ou seja, fazer com que o espectador se lembre da sua natureza essencial. Essa era um pouco a minha intenção. Conformava-me com a ideia do espectador conseguir olhar para dentro. Eu quero que [ele] veja interiormente. Quando nos perguntamos se o filme é afirmativo, negativo, luminoso, sombrio, esperançoso, desesperado, eu acho bem que analisemos o filme a partir dessas emoções, mas para mim o mais importante é esse olhar para dentro. Isso já é luz. É um princípio de luz, mesmo que o que encontremos lá dentro seja, mais vezes do que não é, tenebroso. Por isso é que os seres humanos não olham para dentro. E é também por isso que estamos desactivados. Olhar para dentro é duro, então fugimos.
“Se colocares numa máquina toda a produção audiovisual do mundo, 98% é distracção ou distorção. Dormir. Desactivar.”
S. — E o cinema é bom por causa disso. Ultimamente o cinema tem sido mais evento do que ritual.
O.L. — É mais distracção. É distorção. Se colocares numa máquina toda a produção audiovisual do mundo, 98% é distracção ou distorção. Dormir. Desactivar. Tendo tudo isso em conta, creio que Sirāt é um filme que excita, que provoca, que remexe. Remexe por dentro.
S. — Sim, no corpo. Eu vi o filme assim. Para além de ver sempre a partir das primeiras filas para perder as arestas do ecrã, entrei completamente nele e sofri muito. Pelo caminho, andei à procura de saídas quando eu já sabia que elas não existiam. Mas continuava à procura delas. Senti o desejo de tocar no ecrã, para garantir que tudo era ficcional. Como nunca consegui nele tocar, continuei a sofrer. E depois houve aquela libertação no final.
O.L. — O final é como um sumo de laranja, depois da cerimónia. Para voltar à realidade. E depois tens que deixar passar o tempo. No primeiro dia queres matar o mensageiro,mas as imagens acabam por se acentuar, bem como as emoções que ressoam delas. E depois, por fim, lá vem a calma e a serenidade.
S. — É assim que se processa o fim do mundo?
O.L. — Antes de mais, usas palavras muito evocadoras. Fazem-me pensar. Falavas do filme ser real, da experiência física sem saída. Ou seja, o cinema com capacidade de evocação. E da identificação com os personagens que é muito forte; o nível de empatia e de ligação com os personagens que vês é enorme. E o que quer isso dizer? Que do cinema se pode fazer uma constelação familiar. Faz-se de cerimónia de viver outra vida. Experimentar outra vida. O nosso corpo tem memória de dores ancestrais. Não nos aconteceu o mesmo que aconteceu a este homem. Está na nossa genética. O cinema é a forma que existe de isso nos ser comunicado. Cada um a seu momento. Em Espanha, o filme já está nos cinemas há dois meses. Ou seja, já teve uns 400 mil espectadores. Há psicoterapeutas e psicanalistas que me têm dito que os seus pacientes falam de Sirāt nas consultas. E cada um diz: pensei no meu avô. Ou pensei…nisto ou naquilo. As imagens conseguem provocar coisas dentro do ser.
S. — É difícil conseguirmos ver. Ou seja, só conseguimos ver em retrospectiva. Quando estamos lá, estamos lá. Que é aquilo que mais gosto e menos gosto no cinema. Porque eu sei que vou passar por essa viagem. Então receio-a, mas vou na mesma. Sirāt fez isso. Eu quero estar ali, mas ao mesmo tempo preciso de respirar.
O.L. — É duro. Eu cada vez que tenho de ir a uma cerimónia, não quero ir. O meu ego tem medo. É isso, precisamente. Porque eu sei que vou ter que vomitar, vou ter que sofrer…mas bom, é um dos mistérios do mundo. Da vida. Que se expressa, sobretudo, na dor. Na morte. Ou seja, há um paradoxo. Sabemos pelas mulheres que são mães quando falam do parto. É uma morte. É um momento de sangrar. É tremendamente importante para se interligarem com a vida. A transmissão de informação. A transmissão de conhecimento. É profundíssimo. E muitas morreram efectivamente.
S.— Sim, a morte física. Ainda agora acontece. Os teus filmes estão mergulhados na morte, na destruição, na eternidade.
O.L. — Na transitoriedade, especialmente.
S. — Sim. Fez-me pensar n’O Sabor da Cereja (1997) de Abbas Kiarostami. No sentido em que se questiona pelo valor da vida. E tal como em Sirāt, alimenta-se de ambiguidade.
O.L. — Gosto muito desse filme também. Nós galegos somos conhecidos em Espanha por sermos ambíguos. Eu quero restabelecer a ambiguidade. Creio que temos que restabelecer a ambiguidade. Há que ter certezas do coração, mas o mundo pode ser visto como muitos sonhos.

S. — Mergulhemos então na comunidade raver. Eu ouvi-te dizer num podcast quando o filme estava em Cannes que o raver funde a cabeça à coluna de som para derrubar o mundo.
O.L. — Não, não sou eu que o digo. É uma expressão da cultura rave. Fundimos as nossas cabeças dentro das colunas para não ouvir como se derruba o mundo.
S. — Derrubar no sentido de queda?
O.L. — Decadência. Mas há duas formas de interpretar esta expressão. Há algo de escapismo. Na cultura rave, no geral, há algo de Peter Pan — de não querer crescer. É algo presente em toda a sociedade. Tu, por exemplo, estás a escapar. Eu também estou a fugir do presente e da minha ferida ao fazer os meus filmes. Estou a idealizar. É tanta a dor do mundo que é difícil para nós relacionarmo-nos com ela. Temos muitas maleitas nas nossas famílias. Inevitavelmente o ser humano precisa de se distrair.
E a outra interpretação, de que eu gosto muito mais, reflecte-se no facto de que certas pessoas, e eu incluo-me nelas, não quererem participar na decadência moral do mundo. Mas antes de mais, se me permites, falar-te-ei da minha percepção do futuro ou da minha intuição do futuro. Sou um artista, então sou um pouco como um sismógrafo. É ao sentir que intuímos as coisas. Isso e a ouvir quem sabe do que fala. Este é um momento de mudança muito significativo. Regressamos ao velho mundo. É como se estivéssemos assim [gesticula com a mão um caminho feito de curvas e aponta para uma das curvas]. Neste shift…é assim que se chama a revista, não é? Shifter, de shift (mudança). Este é o passado e este é o futuro. Neste momento do presente estamos a ir assim [em curvas] como sociedade. Ainda estamos influenciados…estas energias que nos transcendem fazem-nos voltar atrás. Temos sempre a sensação de que estamos a voltar um pouco para trás. Como se do passado viesse o futuro. Certas formas de pensamento sociais, certos valores. Por exemplo, certas ideias progressistas colhem as formas de certos totalitarismos. Estamos a viver uma altura em que o que é aparentemente mais progressista é, muitas vezes, fiscalizador. É uma cultura do julgamento. Do acusar.
S. — Sim, o policiamento do outro.
O.L. — Sim, muita dialéctica. Muito moderno. Assim é o velho mundo. Ou seja, muito masculino. Quando entramos num mundo que devia acolher, ser mais piedoso ou misericordioso. E eles (os ravers) estão à espera. Como quem diz: ‘Quando o mundo cair, telefona-me. Estou preparado.’ Eles preparam-se para este novo mundo. Mas sem entrar nessas dialécticas que fazem lembrar um mau filme americano — os bons e os maus, as vítimas e os culpados —, que me Parecem muito imaturas.
“Encontramo-nos na posição zero. O ser humano parece estar mais humilde. Pelo menos dentro da cultura rave, há muito menos ego agora. É mais sincero. Não é tanto mudar, é mais criar pequenas comunidades, locais, muito articuladas e sustentáveis.“
S. — Por falar nisso, o Sirāt não é só um filme masculino como tem quase a textura do cinema americano da contracultura da década de 1970. E não só porque é filmado a 16mm. Uma imagem sobre a qual não consegui parar de pensar depois de o ver levou-me lá. Josh a conduzir o camião a meio da noite no deserto. É quase uma pintura a óleo. E parece dizer…lá foram as máscaras. Aquelas pessoas são agentes livres, auto-suficientes, à procura de algo maior que elas mesmas. Aquela simples imagem daquela sequência no deserto à noite remeteu-me para um cinema que trabalha ambiguidades. Que não quer estar em diálogo com tudo o resto que está a acontecer.
O.L. — É uma boa reflexão. O cinema americano dos anos 70 é uma enorme influência para mim. São filmes sintonizados com aquele momento no tempo. Com as pessoas. Apocalypse Now (1979). Two-Lane Blacktop (1971). Zabriskie Point (1970). São filmes que não são capazes de entender o que querem dizer ou o que falam. Mas são filmes que transmitem as emoções e a energia desse tempo. Essa violência da década de 1970, mas também a psicodelia e os momentos contraculturais. Os medos da sociedade, e o desejo de mudança entre aquilo e o agora. Essa década ficou marcada por algo muito revolucionário, mas também muito dialéctico. Os movimentos, tanto de direita quanto de esquerda, eram igualmente firmes. Eram polaridades que se atraíam. Acredito que a cultura rave não é contracultural. Não está contra nada. Muito pelo contrário. Faz uso de uma sensibilidade, onde eu também me encontro com a minha prática espiritual. Não queremos que o mundo mude. Sabemos que vai mudar. E simplesmente esperamos que mude. Os ravers são como hienas que vão reciclar essa decadência, e estão preparados para essa autossuficiência. Acredito que é aí que se diferencia o tempo presente da década de ’70. Hoje não acreditamos tanto em certas utopias. Há mais realismo neste momento. Encontramo-nos na posição zero. O ser humano parece estar mais humilde. Pelo menos dentro da cultura rave, há muito menos ego agora. É mais sincero. Não é tanto mudar, é mais criar pequenas comunidades, locais, muito articuladas e sustentáveis. Acredito que é para aí que vamos como sociedade. A crise climática, a tecnologia, a inteligência artificial. Tudo ajudará. Vamos estar mais na dimensão da ferida, como Sirāt. Luis, que é pai, será igual aos ravers, que são iguais aos marroquinos e aos mauritanos no comboio. Nessa dimensão, o ser humano vai reconhecer-se humano.

S. — Agora que mencionaste o caminho de Sirāt, estava a pensar nele enquanto alegoria que é. A vida faz-se exactamente daquilo. É aleatório, não sabemos o que poderá acontecer ou porquê. E temos que aceitar que vai acontecer. E, nesse sentido, aquelas personagens unem-se como família, todos juntos numa travessia até à superação. Nós não sabemos muito bem quem são, o que me agrada muito. Mas através do cinema, chegamo-nos perto deles e intuímos quem poderão ser. Mas depois, e especialmente quando os militares aparecem, eu questionava-me. O Luis é um personagem sensível. Se nada mais, é um senhor que aparenta ser sensível. Por que foi ele, então, atrás deles? Ele já perdeu a filha. Porquê colocar o filho mais novo também em risco?
O.L. — É o filho que quer ir [diz com um sorriso].
S. — E ele arranca. O pai arranca.
O.L. — O pai tem uma missão. O ser humano é uma mistura de estupidez e heroísmo. Somos assim. Porque é que eu faço os meus filmes que são tão excessivos? Também poderia pensar que são perigosos. Porque, por eles, vou ao limite. Como artista e como ser humano, vou ao limite. Somos assim. É uma polaridade no ser humano. Fazemos coisas ridículas, mas também heróicas ao mesmo tempo. E não podemos negar o destino de alguém. Não sabemos porque é que as pessoas vieram a este mundo, qual é a missão. Quer dizer, pensemos por exemplo na vida desse rapaz. Quais são as consequências desta morte? Claro, numa sociedade moderna, que é tão tanatofóbica, temos problemas com a morte. Consideramos a morte um fim, então fugimos dela. Mas as perguntas mais importantes, relacionadas com a morte, começam por ser: como morremos? Se morres com dignidade ou não. E depois, o que desencadeia a tua morte? Que consequências tem na vida a tua morte?
Eu acho importante questionar o que desencadeiam as mortes de Sirāt nas outras pessoas. Essas almas que vieram para estar cinco meses, doze anos, trinta anos, ou o que seja, qual é a repercussão no resto, na vida? Porque a vida expressa-se através da morte. E as almas que vieram até aqui movem isto, e isso tem uma repercussão infinita. Há muita gente que interpreta que a morte do rapaz desencadeia a viagem interior de Luis. E há outras que dizem que Luis encontra a filha no caminho — porque a entende, porque a sente. Experimenta a filha. Dança a filha. Então, claro que entendo que o nosso olhar moderno faz com que não consigamos entender, às vezes, sabes? De que Sirāt não tem fé. É normal olhar a vida e considerar que é injusta. E eu entendo. Morrem pessoas inocentes todos os dias. E porquê? Há uma lógica para isto. E é positiva. Tinha que ser assim. Não é niilista. Não é o facto de a vida ser dura ou não. No fundo, a vida, ainda que se expresse através da tragédia, da dureza, o que quer é cuidar. E [esse confronto com a tragédia] é a melhor forma de cuidar do espectador. Ainda que pareça ser uma contradição. Era essa a minha intenção, pelo menos.
“A meu ver, o filme mostra claramente como esse personagem, que vive algo atroz, escolhe viver. O que vem depois disso? A vida. Mais força, mais amadurecimento. E muitas mais curvas. Também mais humildade.”
S. — Agora quero ir ao fim do filme. Nós começamos com texturas, relevo da montanha. Coisas que são tácteis. E depois ao longo do caminho, tudo se vai liquidificando. Vai perdendo a sua materialização. A paisagem. As pessoas, que se começam a ver internamente. Eles e nós. A viagem é fisicamente deslocada para outras dimensões. E quando este processo começa a acontecer e achamos que atingimos um fim, temos ainda mais caminho para percorrer…
O.L. — Liquidificação. Gosto disso. Em que sentido? Consegues explicar?
S. — Eu estava a pensar no relevo de todas as coisas que estava a ver. Nós somos colocados no espaço. E eu, sempre que entro num espaço, penso na forma como me encontro nele, o meu comportamento. No cinema, é outra pessoa a colocar-me lá. No caso de Sirāt, trata-se de uma paisagem bastante austera, dominadora, e eu sou nem uma sombra ali. E procuro sobreviver. E é a partir daí que tudo se altera aos poucos. O caminho é físico, mas deixa de se sentir físico. E nós não paramos de ir, de caminhar. Mesmo quando a morte vem até nós e precisamos de pedir ajuda. Mas como não há nada que exteriormente possa ser feito, viajamos para dentro e começamos a sentir realmente os elementos. Tudo a mudar de estado até derreter. E no final ainda mais estrada há, mas desta vez volta a ser física, sob carris. E estamos num comboio com outros sobreviventes de coisas inimagináveis, de pobreza extrema…que elemento poderá seguir-se?
O.L. — Eu gosto dessa pergunta, porque me fazes interpretar o final. Pode ser frustrante para o espectador porque, se interpreto algo, ele vai dizer que entendeu mal. E não há que entender aqui, há que sentir, e depois há que transcender o autor. A meu ver, o filme mostra claramente como esse personagem, que vive algo atroz, escolhe viver. O que vem depois disso? A vida. Mais força, mais amadurecimento. E muitas mais curvas. Também mais humildade. Porque a vida espeta agulhas. A agulha indica o lugar e faz acupuntura com o ser humano, não é verdade? Veda o núcleo do ego. Mas como dizias, chegas a esse comboio, que é também este momento, à minha frente. Noutras palavras, estou muito contente de viver estes tempos. É muito estimulante este momento de mudança.

S. — Quando caímos no filme, a primeira coisa que vemos é um plano aproximado de uma coluna de som. Logo a seguir as colunas são empilhadas para criarem uma espécie de estrutura, um muro ou fortaleza de vibração. É evidenciado o acto físico de as compôr umas em cima das outras. Queria perguntar-te sobre o símbolo imagético da coluna em si, a sua interioridade e a importância daquele close-up inicial que me parece ser muito premonitório. Uma abertura sem fim para algo que é fisicamente invisível, a música que de lá sairá.
O.L. — Essa imagem invoca e expressa as minhas intenções como artista, como cineasta. Estas colunas são uma das coisas mais pétreas, mais rígidas e pesadas. O mundo material é bruto. Mas o que sai dele é subtil, como o som. Já a electricidade, também presente no início do filme com a ligação entre as tomadas e os fios, é um mistério. Tal como a música electrónica. É muito abstracta. A sua origem é uma abstracção, aliás. É vibração, mas no mesmo instrumento, no mesmo corpo, na mesma percussão. Então a minha intenção como artista é, através do cinema, pertencer a essa escola de cineastas que querem evocar esse mundo subtil que se encontra atrás do mundo material. Há uma escola de Andrei Tarkovsky, David Lynch, Apichatpong Weerasethakul. Há uma série de cineastas que conseguem captar esse momento acidental em que se sente como espectador que há algo ali escondido, para lá da superfície. Esse close-up em particular tem o objectivo de evocar esse mistério. Não sei se o faz realmente, mas é esse o princípio. Deixar clara a inteligência criativa que há por trás de tudo, que move tudo, que decide tudo, essas regras todas que nos escapam, como falava há pouco. Mas está bem visto, sim. Para mim, é um plano muito importante. Acredito que a arte procura entender dando-nos a evidenciar um pouco essas lógicas misteriosas do mundo. É isso que procuro, pelo menos. Há outro momento também, em que conseguimos ver uma cruz entre as colunas, e há um homem a dançar, muito ferido.
S. — É aí que está a catarse.
O.L. — Sim. Assim começa o filme. E será essa a sua essência até ao fim. A vida está nessa catarse. Eu entendi que Deus está na ferida [diz, sorrindo suavemente]. Na imperfeição. Ou seja, o ser humano, ao tentar transcender-se através das drogas, da dança, do que seja, demonstra a incapacidade, a sua impossibilidade de o fazer. Ele assume que não pode — sou impotente, sou imperfeito. E é aí, nesse momento de humildade, perante a incapacidade, que se encontra a transcendência. Há um render que acontece. Faço o que posso, faço o que tento. Há um momento de verticalidade. Creio que por isso é que Sirāt convoca o cinema. Eu tenho um pé muito forte na tradição. Muito forte. Há algo de muito ancestral no meu olhar, na minha maneira de estar e nos valores que injectei no filme, mas no final do dia sou um ser humano do meu tempo.
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