No dia 4 de Dezembro de 2024, Brian Thompson, CEO da companhia de seguros United Healthcare, foi assassinado com três tiros de 9 mm nas costas, na entrada do hotel Hilton Midtown, em Nova Iorque. Em cada uma das balas estava gravada uma palavra: «deny», «defend» e «depose», uma referência à obra do jurista Jay M. Feinman (Delay, Deny, Defend), consagrado nas estratégias adoptadas pelas seguradoras para fugir aos seus contratos, ou para contornar a necessidade de cobrir os custos de assistência médica dos seus clientes.
Alguns dias depois, a 9 de Dezembro, um suspeito de 26 anos chamado Luigi Mangione foi detido num restaurante McDonald’s em Altoona, uma pequena cidade no centro da Pensilvânia, depois de ter sido reconhecido e denunciado por um dos empregados. O jovem é oriundo de uma família burguesa de Maryland, um dos estados situados a sul da Pensilvânia. Aluno brilhante no liceu privado (concluído com distinção), fora aceite na Universidade da Pensilvânia, uma das oito instituições da Ivy League. Sobre a sua biografia, sabemos ainda que terá sofrido uma lesão nas costas, alegadamente incapacitante; mas nada indica que tenha sido cliente da United Healthcare, ou que possa ter sido lesado de algum modo durante o seu processo de tratamento. Não podemos, então, especular sobre a dimensão dessa dificuldade pessoal, ou sobre os efeitos que ela possa ter tido sobre as suas convicções. Quando foi detido, os agentes descobriram na sua mochila uma arma de fogo fabricada com ajuda de uma impressora 3D, vários documentos de identificação (tanto falsos como legítimos), e ainda alguns outros documentos, entre os quais um breve manifesto. Eis, aqui, uma tradução do mesmo:
«Aos agentes federais, vou ser breve, porque respeito o que fazem pelo nosso país. Para vos poupar a uma investigação demorada, declaro simplesmente que não trabalhei com ninguém. Isto foi algo consideravelmente trivial: alguma engenharia social elementar, conhecimentos básicos de CAD, muita paciência. No caderno de espiral, se o encontrarem, estão algumas notas e listas de tarefas que podem ajudar a esclarecer o essencial. Os meus aparelhos electrónicos estão bastante bem protegidos porque trabalho com engenharia informática, por isso aí provavelmente não vão encontrar nada. Peço desde já sinceras desculpas pelos traumas causados, mas isto tinha de ser feito. Sinceramente, estes parasitas estavam a pedi-las. Uma lembrança: os Estados Unidos têm o sistema de saúde mais caro do mundo e, no entanto, estamos em 42º lugar no que toca à esperança de vida. A United é a [ilegível] maior companhia nos Estados Unidos na capitalização do mercado, seguida pela Apple, a Google e a Walmart. Cresceu e cresceu, mas será que a nossa esperança de vida acompanhou esse crescimento? Não. A realidade é que estes [ilegível] simplesmente se tornaram demasiado poderosos, e continuam a abusar do nosso país para os seus lucros imensos, porque o povo americano os deixa sair ilesos. É óbvio que o problema é mais complexo, mas nem eu tenho espaço aqui, nem, francamente, sinto que seja ou pretendo ser a pessoa mais qualificada para expor este argumento em detalhe. Mas muitos já tentaram revelar a corrupção e a ganância (Rosenthal, Moore), há décadas, e os problemas simplesmente permanecem. Neste ponto, já não é uma questão de consciência, mas, claramente, dos jogos de poder em causa. Evidentemente, sou o primeiro a encarar isto com uma honestidade brutal.»
O argumento é tão simples e límpido que se diria auto-explicativo. O engenheiro tem mente clara e fibra patriótica. Porém, a conclusão é tão singular que merece que nos demoremos sobre ela. A execução do CEO é uma questão de honestidade: Luigi interpreta o seu próprio gesto no plano da linguagem — abater um director executivo é, essencialmente, uma prova de franqueza.
No século XX, o crime — especialmente (mas não exclusivamente) na forma de homicídio em massa — tornou-se uma importante gramática da expressão política. O acto terrorista é uma forma de escrita pública da realidade social. Essa escrita joga-se através de três níveis, a começar pelo da própria performance. As espingardas de assalto e os carregadores dos terroristas supremacistas brancos Brenton Tarrant (na Nova Zelândia) e Payton Gendron (no estado de Nova Iorque) estavam repletos de slogans e mensagens, tal como os invólucros das balas de Mangione exibiam as suas queixas. Para além disso, a escolha dos alvos a abater (jovens mulheres e «machos alfa», no caso dos incel; negros e militantes de esquerda, no caso dos fascistas; etc.) exprime uma vontade de reescrever a composição social ou demográfica de um determinado lugar. Ainda mais radical, o homicídio do CEO da principal companhia de seguros de saúde dos Estados Unidos da América é, evidentemente, uma declaração fracassada que desejava ser transformadora. Enfim, esses actos de violência são geralmente acompanhados por manifestos ou reivindicações, frequentemente escritos, mas por vezes também sob a forma de vídeos ou gravações áudio, que procuram explicitar as intenções em causa. O crime político do século XXI é uma trama de signos que se repetem, convergem e se reforçam reciprocamente ao martelar a sua mensagem; o seu motor principal é tornar comunicativa a obsessão de matar. É uma obsessão que utiliza o crime para se prorrogar e continuar a proliferar.
Neste caso, o sucesso é total, e a proliferação, máxima. Tanto os jornalistas como os utilizadores das redes sociais se apaixonaram por Luigi. Alguns tentaram perceber as suas motivações, outros ficaram fascinados pela sua beleza, ou revoltados com as suas ideias. Os comentadores de esquerda enquadraram-no prontamente à direita; os editores de direita pintaram-no, pelo contrário, como um activista comunista. Na realidade, o indivíduo só se tornará interessante quando a sua história for adaptada por Hollywood (mas só se o guião for bem escrito). Um acto deste género não é uma decisão subjectiva, mas resulta antes da cristalização de desejos, fantasmas e ideologias colectivas saturadas. Estes atentados são manifestações da meteorologia social, tal como as trovoadas o são para a meteorologia natural. A leitura dos manifestos e as reivindicações dos assassinos em massa é pertinente, não para «subjectivar» um acto, para o desligar da biografia particular de uma determinada pessoa, mas, pelo contrário, para identificar, explorar e compreender as forças sociais que, precisamente, aí se manifestam.
Qualquer pessoa com «formação política», como se costuma dizer, aprendeu a desconfiar dessas missões venturosas e solitárias que com ares de ajustes de contas. Chama-se a isso acção directa, e é geralmente vista com severidade e comiseração. Ora, se essas discussões são cruciais para definir as linhas organizadoras de qualquer política revolucionária, elas deixam, todavia, de fazer sentido, quando se trata de julgar o exterior da acção espontânea de um caso como o de Luigi, que nada tem de militante no sentido tradicional do termo. O seu gesto assinala antes uma meteorologia pulsional — e, por isso mesmo, é necessário interpretá-lo política e socialmente, mais do que demonstrar a nossa aprovação ou desaprovação.
Mas, se assim é, é lamentável que essas rotinas doutrinais, juntamente com uma afeição talvez meramente declarativa à «acção colectiva», conduzam os activistas a considerar este gesto ainda com mais cautela do que o grande público, menos politizado. Porque, ainda antes da revelação do rosto angelical de Luigi, uma grande parte das massas estado-unidenses já tinham tomado o partido do atirador, não demonstrando qualquer empatia pelo seu alvo. Pouco depois do assassinato, reagindo a essa estruturação de um espaço público súbita e palpavelmente hostil ao capitalismo na medicina, o governador da Pensilvânia, Josh Shapiro, resolveu assegurar que o assassino, de herói não tinha nada: «Na América não matamos a sangue frio por diferendos políticos, ou para expressar pontos-de-vista». Terá o estado de Keystone alguma vez testemunhado mentira mais lamentável? A realidade histórica é que, nos Estados Unidos da América, começa-se a matar desde muito cedo — tanto dentro, como fora de casa —, a partir do momento em que há divergências sobre pontos de vista. Contrariamente às ilusões do governador, é absolutamente lógico que, nesse país, o realismo capitalista só comece a pôr-se em causa depois de alguns tiros. A filosofia política nacional está impecavelmente resumida no refrão da canção «Davidian», da banda de metal Machine Head: «Let freedom ring with a shotgun blast!» (Deixem a liberdade ressoar com um tiro de caçadeira!).
Em La Sorcellerie capitaliste, Stengers e Pignarre observam que a crítica política do capitalismo se tornou mais difícil por causa da existência de actores intermediários, cada vez mais concretos, aparentemente, e sobre os quais é fácil fazer recair a culpa. «Lembremo-nos do Livre noir, onde estavam anotados todos os mortos “provocados” pelo comunismo. Esse tipo de cálculo é impossível no capitalistmo, porque há sempre em cena actores que parecem muito mais concretos.» O efeito da morte de Thompson na consciência estadunidense e mundial representa um fenómeno interessante, porque ninguém considera que esse patrão anedótico multimilionário (cuja fisionomia lembra mais um dos heróis de Alvin e os Esquilos do que propriamente um Lex Luthor) seja um indivíduo especialmente malicioso. As suas características subjectivas, a sua personalidade, as suas decisões pessoais, nunca estiveram em causa. Trata-se apenas das consequências e do agravamento da sua função social. É evidente para qualquer um que ele vem representar uma certa noção de mercado da saúde (o que está realmente em causa), e da qual este indivíduo é apenas uma encarnação acidental.
A priori, uma tal postura comporta certamente um risco: a violência política institucional funciona frequentemente desumanizando as suas vítimas, privando-as de características humanas. É um motor psicológico conhecido entre os crimes em massa, que permite a passagem ao acto: o Judeu é apenas um rato com forma humana, o Tutsi uma barata com rosto humano, o Palestiniano um animal humano. Mas, neste caso, o processo parece invertido. A desumanização é a própria condição de vida dos CEO. A United recusa um terço dos pedidos de reembolso que lhe são endereçados: é a pedra de toque do seu modelo de negócios. Thompson construiu uma fortaleza de actuários, de burocracia e agora também de inteligência artificial, uma fortaleza entre si e os os efeitos da sua gestão no povo estadunidense. Alguns dias depois do crime, Andrew Witty, ele próprio CEO de uma companhia parente da United Healthcare, tomou a palavra para defender a honra da sua profissão: «O nosso papel é fundamental, e nós velamos para que os cuidados estejam assegurados, adaptados e prestados quando e onde as pessoas precisarem», disse, sublinhando a importância de recusar os «cuidados não necessários», a fim de garantir a sustentabilidade do sistema. A cada declaração, estes indivíduos comprovam pertencer a uma espécie de mundo paralelo, onde julgam ser heróis, recebendo aclamações imaginárias, quando por todo o lado são na verdade vistos como predadores. Evidentemente, a morte desperta esses homúnculos virtualizados que são os CEO para a realidade brutal diariamente sofrida pelos clientes das empresas que dirigem.
Dir-se-á, e com razão, que estas estruturas são o verdadeiro problema, mais do que estes homens, que na verdade estão votados a suceder-se interminavelmente. Thompson, o indivíduo, não era propriamente nada. Mas pensar assim, é esquecer que esses homens, os homens dessa estrutura, parecem especialmente agarrados à própria vida — tanto que todas as companhias de seguros norte-americanas adoptaram imediatamente medidas drásticas para proteger os seus corpos de elite. Alguns decidiram mesmo abdicar das suas reformas aberrantes, na esperança de evitar a fúria de novas multidões. Assim, na esteira da execução de Thompson, a concorrente Blue Cross abandonou um projecto controverso que impediria o reembolso de despesas de anestesia a vários pacientes (o que, na prática, teria obrigado os cirurgiões a operar quatro vezes mais depressa, para evitar custos adicionais para os esses pacientes). Este homicídio abriu assim uma possibilidade, fez entrar algo novo no mundo: e essa possibilidade aterroriza os altos quadros das empresas.

No seu discurso à Assembleia, a 3 de Dezembro de 1792, Robespierre toma a palavra para defender a morte sem julgamento do rei Luís XVI. Parecia-lhe fundamental, não só tirar a vida do soberano, mas também que essa execução não fosse decidida por nenhum tribunal. Acreditar que onde não há processo penal adequado, também não há justiça é, para Robespierre, a consequência de uma visão redutora e truncada da mesma. «As multidões não julgam como os tribunais judiciários; não argumentam sentenças: lançam raios; não condenam reis: aniquilam-nos; e essa justiça vale tanto como a dos tribunais.» No argumento de Robespierre, o rei não deveria ser tratado como um cidadão submetido ao direito civil, mas antes como um inimigo submetido ao direito das massas (o antepassado do direito internacional); ou, ainda mais radical, ao direito do estado natural. É indispensável, para Robespierre, tratar esse rei não como parte de uma comunidade política, mas como um elemento exterior, cuja única relação com o povo é de violência, opressão e dominação. Não só a comunidade política é fundada sobre o facto de ele ser considerado um elemento exterior, como nem mereceria o nome de «república» se assim não fosse. Se existe república, por definição, é na condição de que o tirano esteja dela excluído, e seja o seu inimigo. Robespierre prescreve a oposição à pena de morte contra todos os crimes que a sociedade pode prevenir. No entanto, por definição, os crimes do soberano são subtraídos à pegada da sociedade. É esta capacidade de retirar do mundo, mas manter poder de julgamento e direito sobre a vida e a morte dos outros a partir dessa retirada inviolável que deve, aos olhos de Robespierre, ser interrompida por uma execução, mais do que por um julgamento. Não há a favor ou contra a considerar, não há princípio de contradição a respeitar, face à violência desmedida do soberano. Apenas a abolição terrível e sangrenta desse lugar de excepção do qual ele injustamente se apropriou. E é preciso que seja exemplar: «Exijo que esse acontecimento memorável seja consagrado com um monumento destinado a alimentar no coração do povo o sentimento dos seus direitos e o horror dos tiranos; e, nas almas dos tiranos, o terror salutar da justiça popular».
A sobrevivência de qualquer pessoa residente nos Estados Unidos da América encontra-se hoje suspensa ao sabor da vontade das forças de ordem e dos cálculos dos actuários das companhias de seguro privadas. Até o beneficiário do seguro de saúde mais oneroso está condenado, em caso de necessidade, a horas de conversa telefónica para apresentar o seu caso à sua companhia. No século XVI, Jean Bodin definia o soberano como aquele que não possui nada, depois de Deus, a não ser a espada. O polícia e o agente de seguros representam os dois golpes da espada de Dâmocles, hoje suspensa sobre a vida americana. A população negra sabe que o golpe de morte pode bem vir do polícia; mas o conjunto da população estadunidense é forçada a reconhecer no rosto de esquilo de Thompson o do seu carrasco. Os enormes lucros gerados pelas companhias e a injustiça manifesta de ver recusado um serviço pelo qual se pagou durante anos, até décadas, surge como uma contradição quase tão chocante como as lettres de cachet de Luís XVI. O CEO — e especialmente o CEO da companhia de seguros — endossa no imaginário contemporâneo o lugar de um novo soberano: a encarnação da decisão mortal.
O terror tomou conta das seguradoras, para retomar as palavras de Robespierre. Na memória recente dos Estados Unidos, um homicídio político, sobretudo largamente mediatizado, suscita sempre réplicas. Tendo em conta as ovações suscitadas por esse homicídio, será espantoso que seja um caso isolado. Em todo o caso, para que tenha um impacto real sobre a vida quotidiana dos estadunidenses, será preciso que o diagnóstico implacável do manifesto de Luigi encontre uma verdadeira tradução no âmbito das reformas políticas. O falhanço absoluto da campanha presidencial lamentável de Kamala Harris sublinha a necessidade de que o partido democrata se coloque radicalmente em causa. Mas qualquer que seja o destino desse debate ao longo dos próximos anos, lembrar-nos-emos de que não seria possível sem esta honestidade brutal.
Tradução de Teresa Projecto / Originalmente publicado no jornal lundimatin#456, a 31 de Janeiro de 2025
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