Acreditar no mundo é o que mais nos falta. Notas para sobreviver ao naufrágio

Acreditar no mundo é o que mais nos falta. Notas para sobreviver ao naufrágio

27 Janeiro, 2025 /
Imagem de uma pintura de J.M.W. Turner onde se vê um lago entre um vale, em tons pastel.
Tell’s Chapel, Lake Lucerne (1841), de J. M. W. Turner via Public Domain Image Archive

Índice do Artigo:

A forte produtividade e a desregrada velocidade marcadas pelo neoliberalismo têm contribuído para a perda da aisthesis, essa tomada do mundo pela sensibilidade. Neste ensaio Maribel Sobreira reflecte sobre esse naufrágio e como lhe sobreviver.

Navegamos em águas onde as estruturas que forneciam estabilidade e orientação à sociedade entraram em desintegração gradual. Este naufrágio simbólico não apenas espelha a instabilidade crescente como expõe a profunda alienação que atravessamos como colectivo. Na dissensão entre aqueles que desfrutam dos privilégios do status quo e aqueles que lutam nas profundezas do caos, encontramos uma metáfora da condição humana: somos todos náufragos nas águas da incerteza, sendo que essas águas não são as mesmas para todos.

No cerne está o desafio urgente de reconstruir e transformar o sistema para lidar com os crescentes desafios que enfrentamos. Esta tarefa monumental exige não apenas coragem e solidariedade, mas também uma visão partilhada de um futuro mais justo e sustentável. A metáfora do naufrágio não nos deixa espaço para hesitações, em vez disso, convoca a agirmos colectivamente para evitarmos o colapso iminente e construir uma sociedade mais resiliente e equitativa.

Ao contemplarmos as representações de naufrágios de artistas como T. Géricault e W. Turner, somos confrontados com a verdade inegável da fragilidade humana e a sublime força da natureza. A tragédia dos naufrágios retratada por Géricault e a fúria dos elementos capturada por Turner não são apenas representações artísticas, mas reflexões profundas sobre a condição humana e a relação complexa entre nós e o mundo que habitamos.

A Balsa da Medusa de T. Géricault via Wikimedia (Domínio Público)

No contexto do sistema neoliberal, essa metáfora ressoa de maneira ainda mais poderosa, destacando a necessidade premente de uma postura mais cristalina e uma abordagem mais cuidadosa para navegar no meio da tempestade económica, social, ambiental e política, que ameaçam engolir os valores e ideais que moldam a nossa compreensão do mundo e de nós mesmos.

Como os sobreviventes de um naufrágio, somos desafiados a encontrar coragem e solidariedade no meio desta época caótica em que vivemos e que Zygmunt Bauman apelida de retrotopica. O optimismo de um mundo melhor, apanágio do século XX, foi gradualmente enfraquecendo. No início do século XXI a utopia morre, os seus sonhos associados desvanecem-se e são substituídos pela retrotopia, que nada mais é do que um olhar saudosista para o passado, já que o futuro não floreou. 

Olha-se para o futuro com filtros do passado à procura de algo e esse acto de recepção do olhar é distorcido: percepcionamos coisas que não estão lá e é a partir de um movimento saudosista que replicamos o que nunca lá esteve, limpando o horror, as desigualdades, entrando numa guerra hobbesiana de todos contra todos, desacreditando o motor utópico como alavanca do futuro. 

“Nunca como hoje estivemos tão longe de uma ideia de nós, de todos os seres e dos objectos, do seu entendimento. Vivemos constantemente num não-lugar referencial alienado alimentado pelo medo: estamos em todo o lado, mas em lado algum.”

Neste sentido tomo emprestado de Deleuze o título deste ensaio, que parte de uma frase que profere numa entrevista a Antonio Negri em 1990: “Acreditar no mundo é aquilo que mais nos faz falta; perdemos o mundo, foi-nos expropriado. Acreditar no mundo também é suscitar acontecimentos, mesmo que pequenos, que escapem ao controlo, ou fazer nascer novos espaços-tempos, mesmo que de superfície ou volume reduzidos.” Neste contexto será necessário suscitar acontecimentos que escapem ao paradigma vigente, mesmo que modestos, para que a autenticidade e a compreensão mútua possam florescer. 

Acreditar no mundo pressupõe despirmo-nos das amarras constitutivas da materialidade discursiva do mundo; estamos num impasse em que as palavras já estão tão gastas que nos esgotam, saturam o pensamento e a acção. Esta saturação programada despojou-nos de estarmos juntos. Apesar de tudo parecer estar à distância de um clique, esta não deixa de ser uma ideia ilusória de proximidade. Nunca como hoje estivemos tão longe de uma ideia de nós, de todos os seres e dos objectos, do seu entendimento. Vivemos constantemente num não-lugar referencial alienado alimentado pelo medo: estamos em todo o lado, mas em lado algum. 

Este fluxo sem forma que vivemos desforma a sensibilidade, ou seja, a virtualização da vida. Em tudo e nada operou um entorpecimento das emoções. A alta valorização do indivíduo e do individual deturpou o foco essencial da humanidade, que são as relações empáticas com os seres diversos a si e com o mundo. Empatia é aqui entendida como um fenómeno físico e afectivo e não intelectual. Nesta linha, Franco “Bifo” Berardi faz notar que este entorpecimento da sensibilidade e, como consequência, o esvaziamento da empatia têm como resultado a incapacidade de detectar e ler as subtilezas do mundo e dos mecanismos discursivos, originando uma barreira na conexão com o outro, seja através da sua dor ou da sua alegria, porque é no carácter das emoções, da sensibilidade, que nos ligamos às coisas. Mas como resgatar esse sentir? 

A forte produtividade e a desregrada velocidade marcadas pelo neoliberalismo têm contribuído para a perda da aisthesis (origem etimológica de estética), essa tomada do mundo pela sensibilidade e, consequentemente, para a perda da capacidade de sentir e de se relacionar com o outro. Não usamos aqui o termo estética como habitualmente se pode interpretar, ligado à arte, mas antes como um conceito operativo da sensibilidade; é este aspecto que foi influenciado pelos dispositivos de poder. A sensibilidade foi sendo instrumentalizada pelo sistema colonial neoliberal: como sinto, o que gosto, como falo, como ajo foi sendo construído socialmente. Vivemos numa sociedade que construiu e moldou os nossos sentidos, a nossa constituição/aparelho estética/o sensitivo.   

Não somos neutros, o que vemos e como integramos as categorias da sensibilidade na nossa estrutura cognitiva influencia a construção imagética da alteridade. Veja-se como, no início dos anos de 1970, foi problematizado através da desconstrução do gaze instituído feita por John Berger em Modos de Ver (1972), chamando a atenção para o facto de que o elemento activo do ver está no sujeito masculino, normativo, que criou dispositivos visuais à sua medida; de seguida, Laura Mulvey o demonstrou nos seus ensaios sobre a construção da imagética feminina através do, e no, cinema; e mais recentemente The Oppositional Gaze: Black Female Spectators (1997) de bell hooks ou nos documentários  Disclosure: Trans Lives on Screen (2019) de Sam Fader e Exterminattes all Brutes (2021) de Raoul Peck, que ampliam a frase emblemática de Berger “men act and women appear” para the system acts and the subaltern appears

Neste sentido, Bernard Stiegler reforça que a cultura contemporânea contribuiu e contribui para a perda da sensibilidade e a desumanização do indivíduo. Vivemos num mundo onde a privação estética se enraizou e capitalizou os corpos, colocando-os em campos de batalha, expondo-os aos discursos populistas programáticos, levando a uma incapacidade de sentir o outro na sua totalidade de diferenças sócio-estético-políticas. 

Por outras palavras, o naufrágio da alienação social é causado pela privação estética alienada, como descrito por Stiegler, onde uma parte do colectivo não consegue sentir em conjunto ou amar para além de si. Acabou enclausurada num espaço que não é mais o mundo, pois perdeu a sua conexão estética. Isso acontece porque o aparato político-tecnológico tem a capacidade de padronizar e homogeneizar as experiências humanas, fazendo com que as pessoas percam a capacidade de sentir e de se relacionar com o mundo e com os outros de uma forma autêntica e singular. 

Se assim estamos, desapegados, porque nos mantemos naufragados à espera que o mar acalme, obedecendo pacientemente? Eichmann é o seu maior elemento figurado, que dá corpo à banalidade do mal, ao automatismo da palavra, ao pronto-a-pensar, à sopa instantânea do pensamento, assente na falta de julgar, ajuizar. Não seremos nós “todos filhos de Eichmann”? Fréderic Gros, no livro Desobedecer, constrói a sua argumentação, que deverá guiar a nossa acção, na seguinte pergunta: “(…) a desobediência, face à absurdez, à irracionalidade do mundo como se acha, é uma evidência. Exige poucas explicações. Porquê desobedecer? Basta abrir os olhos.(…) tão fácil concordar-se acerca da desesperança da actual ordem do mundo,(…), tão difícil desobedecer-lhe”. 

Desobedecer, em última instância, significa defender a ideia de uma democracia crítica, ruidosa, mas não cacofónica, que se pactua e recupera a resistência ética, como antídoto para o conformismo.”

Esta obediência está construída na base de desencorajar as acções políticas e colectivas sucessivas, ancoradas no “vai ficar tudo bem”, sendo edificada pelos tentáculos do neoliberalismo económico. Este despolitiza e desencoraja a reflexão crítica, individual e colectiva, através de abstrações frias e anónimas. Este tentáculo está montado numa “hiper-responsabilização difusa”, onde todos somos responsáveis, mas ninguém o é, proporcionando escusas genéricas, “extensiva a todos os cúmplices passivos que “participaram” no sistema, que o fazem andar, que o suportam, que o mantêm”. Reparem que a obediência não representa, apenas limita, silencia. 

Desobedecer, em última instância, significa defender a ideia de uma democracia crítica, ruidosa, mas não cacofónica, que se pactua e recupera a resistência ética, como antídoto para o conformismo. No resgate do acreditar no mundo teremos de ter em atenção o desmantelamento dessa abstração, para que o que virá se coadune à escala humana, dos afetos e da empatia. Desobedecer também é parar a cadeia mimética dos comportamentos irreflectidos, que tal como coloca Didier Eribon, em relação ao insulto que “(…) é uma citação vinda do passado. Só tem sentido porque foi anteriormente repetida por ‘n’ falantes: <<uma palavra vertiginosa vinda do fundo dos tempos>>, como refere um verso de Genet. Mas representa também, para aqueles que visa, uma projecção no futuro: o pressentimento terrível de que essas palavras e a violência de que são portadoras os acompanharão ao longo da vida.”

Há os que tomam consciência, há os que desobedecem porque já “não podem continuar a obedecer”. Mas uma coisa é certa, temos um dever ético para com as gerações futuras, sejam humanas, animais ou vegetais.

E tal como James Baldwin coloca, na carta que escreve ao seu sobrinho, temos de mostrar ao outro, com amor, o seu espelho para que assim desmantelemos o naufrágio: “E, se a palavra «integração» quer dizer qualquer coisa, é precisamente isto: nós, com amor, teremos de forçar os nossos irmãos a olharem para si mesmos tal como são, a pararem de fugir da realidade e começarem a mudá-la.”, mas sempre com a noção de que as “pessoas parecem associar-se sempre umas às outras na base de um princípio que nada tem que ver com o amor, um princípio que as liberta da responsabilidade individual.”.

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Autor:
27 Janeiro, 2025

Maribel Mendes Sobreira é filósofa e arquitecta com uma prática interdisciplinar que inclui a escrita, ensino, investigação e curadoria expandida. Combinando de forma única a filosofia, arquitectura e a arte no seu trabalho. Mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL), é actualmente doutoranda na mesma área. A sua investigação foca-se no conceito de espaço e no seu impacto na subjectividade, adoptando uma abordagem crítica interseccional às questões contemporâneas. Paralelamente à sua vida académica, Maribel é uma prolífica ensaísta, investigadora e educadora, contribuindo para discussões sobre cultura visual, teoria queer, feminismo e antirracismo. Como curadora e activista cultural, é co-fundadora do ColectivoFACA, um projecto que alia práticas curatoriais à cidadania activa. O seu trabalho questiona as dinâmicas de poder na percepção, desafiando-nos a reconsiderar o espaço, a cultura e a identidade. Tem publicado vários ensaios e participa regularmente em debates públicos sobre temas actuais. É autora de vários ensaios, destacando-se “The Art of Feminist-Queering the Museum: Gate-leaking” (2021), "Questioning the Question" (2022), e "Unlearn the System" (2023). A sua prática reflete um compromisso com a transformação das estruturas culturais e sociais através do pensamento crítico e da acção.

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