Um Domingo na cidade — ou um ensaio crítico pela vitalidade urbana em dias de lazer

Um Domingo na cidade — ou um ensaio crítico pela vitalidade urbana em dias de lazer

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30 Setembro, 2024 /
Um sinal de "Fechado" colado numa montra. A imagem está com uma tonalidade próxima do preto e branco aludindo à perda de vitalidade mencionada no texto.

Índice do Artigo:

O insuspeito Henry Lefebvre caracterizava, num afamado livro, a “reunião de objectos em lojas, montras e expositores” como “razão e pretexto para reunião de pessoas, que olham e vêem, falam e se falam”. Chamava-lhe um sugestivo “terreno do encontro, a partir da reunião das coisas”. Talvez tenha sido demasiado ambicioso na premonição. Coisas da sua utopia! Apesar de um antigo entusiasmo do pós-guerra (e do pré-guerra) com o comércio, a verdade é que as lojas, montras e expositores não gozam hoje de especial encanto e reputação, estando mais vezes do lado da vilania, do que da virtude.

O livro citado é o expectável Direito à Cidade que, se outra coisa não tivesse feito, tinha legado ao ensaísmo das coisas da urbe um título que se presta às mais diversas mutações. A mutação que me interessa particularmente é o direito à “vitalidade” urbana. E é sobre esta lente – cujo termo se rouba a Jane Jacobs, outra das incontornáveis pensadoras do urbano – e a pretexto de uma proposta de três pequeníssimas alterações à Lei, que se propõe que voltemos à cidade, ou ainda, talvez no fim, que voltemos afinal à rua. Este ensaio crítico parte da proposta apresentada pelo Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal, que, pelo sucesso dos seus assinantes, será em Setembro votada e discutida na Assembleia da República.

Os proponentes defendem três alterações à Lei. Nada de particularmente inovador, mas um conjunto de medidas inspiradas em práticas internacionais, que são para si da maior justiça: limitar em duas horas diárias a janela horária de possibilidade de abertura do comércio (passar das 24h para as 22h), em 18h (todas as possíveis) ao Domingo, e em 18h (igualmente todas) sempre que motivos de força maior caracterizem o dia como Feriado.

Três pequeníssimas alterações que à primeira leitura nos poderiam fazer encolher os ombros, retorcer a boca e baixar os olhos, em jeito de anuência despreocupada. A este ensaísta não fazem, mas não por falta de solidariedade com a argumentação dos proponentes, que evocam o “direito ao repouso e aos lazeres” e “realização pessoal” como motivações maiores. É precisamente em defesa dessas motivações que se propõe uma reflexão orientada para a vitalidade urbana, centrada nos dias em que essa vitalidade está mais condicionada: aos Domingos e aos Feriados.

Sobre a vitalidade urbana

Uma das definições de lazer do sociólogo francês Joffre Dumazedier tomava-a como “libertação, prazer, entretenimento, mas também desenvolvimento pessoal e principalmente, participação social”. Esta descrição tem várias particularidades interessantes: evoca a liberdade, o grande grito de emancipação; destaca o prazer, o júbilo, a felicidade; mas também o entretenimento enquanto proposta de ocupação do tempo; centra-se no eu e na sua construção pessoal; e por fim devolve-a ao outro, através da participação. Em Delirious New York, Rem Koolhaas passa todo um livro a tentar explicar-nos, sem o definir, o que entende por “cultura de congestão”. Koolhaas evoca o exemplo do manhattanismo para nos trazer a hiper-densidade, a compressão, a condensação. A cultura de congestão retrata a necessidade de moldura humana, o outro, em acumulação, para se cumprir. É através destas propostas de Dumazedier e de Koolhaas, devidamente deslocadas para o espaço (público) urbano, que se pretende circundar uma possível definição de vitalidade, junto do lazer, da densidade e da concentração.

Conseguimos imaginar que o conceito de vitalidade urbana se relaciona com o lazer. Por sua vez, os percursos casa-trabalho, casa-universidade, casa-hospital, entre outros, que, podendo ter o seu quê de prazerosos, são habituais obrigações repetidas; definem os movimentos e os fluxos urbanos, mas não a sua vitalidade. Mas poderiam ainda assim fazer parte. Lefebvre dizia-nos também que devíamos “recuperar a festa”, transformando o quotidiano numa realidade de vida-lazer sem fim, levando Featherstone a assegurar-nos que esta “indefinição das fronteiras” entre a arte e a vida quotidiana já teria sido alcançada, ou como apontou Frederic Jameson, “tudo se tornou cultural”. Esta discussão que nos legou a segunda metade do século XX trouxe-nos a um momento em que ainda nos animamos com a incerteza de um resultado final. A ideia de “estetização da vida quotidiana”, que foi alertada meio século antes por Benjamin, Baudelaire ou Simmel, poderá mesmo ter sido conquistada. Turismo, ócio e cultura, mas também o comércio, e voltando aos nossos exemplos anteriores, a casa, o trabalho, a escola e o hospital, todos se encontram no mesmo plano. Todos contribuem para a vitalidade urbana – não apenas o lazer. A ida à mercearia estará assim no mesmo plano cultural da ida ao teatro, ao jogo de futebol, ou ao centro de saúde. Se nos custa ainda identificar este último como pertencente à categoria de vitalidade urbana (pese embora a enorme transformação do conceito de doença para saúde), o exemplo serve para normalizar os demais.

Por outro lado, se não há duas visões de cidade, como nos diz Nuno Grande, a de quem a habita e a de quem nela passa ou visita, podemos argumentar que na cidade contemporânea não encontramos os limites entre o que é do quotidiano e do que é do lazer. O turista percorre a cidade no mesmo plano de uso do habitante. Apesar de utente temporário, não é um ocupante menos definidor do que é a cidade. Nesta linha, John Urry decretou o “fim do turismo”, pela sua absorção no quotidiano da cidade, ficando para Feifer a tarefa e caracterizar este tempo como pós-turístico. Mas o turismo, que corresponde a cerca de uns muito significativos 12% do PIB nacional, é também responsável pela gentrificação, aumentando o valor das propriedades e das rendas, quer habitacionais, quer comerciais – ficamo-nos por analisar as segundas – afastando os pequenos negócios, os antigos, tradicionais e os novos, mais inovadores, incapazes de encontrar uma boa localização (a santíssima trindade do comércio continua a ser “localização, localização, localização”).

O turismo que nos lega congestão nas ruas para as activar, também afasta a autenticidade local, substituída por um num cenário de “autenticidade encenada”. Lojas de souvenirs (que tantas vezes ocultam outras ilegalidades), restaurantes e bares com generosas esplanadas, substituem os anteriores negócios mais, diríamos, úteis! Mas o problema, é obviamente, o preço. Se, ainda que por nostalgia, nos custe entregar, por desistência, certas partes da cidade aos turistas, é porque percebemos esse movimento, não como uma camada externa e temporária ao território, mas como parte integrante do mesmo. O lamento que por vezes sentimos dá-se menos pelo sentimento de perder área urbana para o inimigo, mas mais pela perda de significado, onde lemos essas zonas como artificiais.

A cidade contemporânea está ainda longe (e ainda bem) dos devaneios utópicos e distópicos das entusiásticas arquitecturas de papel de Cedric Price, Archigram ou Constant Nieuwenhuys, que desenhavam cidades para o Homo Ludens. Mas nunca fomos o humano lúdico de Hiuzinga. Aspiramos à tal mistura, na esperança de que o nosso quotidiano seja o mais prazeroso possível. E, para isso, desenhamos, não apenas como diz Gehl, “cidades para pessoas”, mas mais especificamente, cidades para serem fruídas pelas pessoas.

Sejamos habitantes, estando a passar em trabalho, em estudo ou em turismo; usando a cidade para deambular despreocupadamente ou como ávidos consumidores, todos estamos a fruir a cidade. Mas não podemos fruir sozinhos. Precisamos do outro – ou, como nos diz Lefebvre, da reunião, com o outro. Somos fruidores urbanos!

Se por reverência intelectual este ensaio começou pelo Direito à Cidade, por simplificação prática e vontade estilística continuará agora por uma das suas mutações: pelo Direito de Cidade. Naquela que é talvez a mais actualizada teoria urbana, Carlos Moreno define a já famosa Cidade de 15 minutos, defendendo que “todos os serviços essenciais se encontram acessíveis num quarto de hora”. São eles: habitação, trabalho, abastecimento, educação, saúde e lazer. O investigador parisiense parte da premissa de que a cidade é “complexa, imperfeita, incompleta e frágil”, mas ainda assim que “nada é mais sustentável que a cidade”. Moreno relembra-nos que toda a discussão verde deve ser operada dentro da cidade. Se, para Lefebvre, viver na cidade é ter o direito à cidade, ou seja, pertencer, existir, ser aceite, fazer parte, isso pode ser alcançável cumprindo os 15 minutos. Conceitos como densidade, heterogeneidade, ubiquidade e, principalmente, proximidade, aos quais se acrescenta a mistura (funcional) e a comunidade são as principais chaves de leitura destas ideias que nos deixam mais próximos do lazer de Dumazedier e da congestão de Koolhaas.

Mas se a Cidade de 15 minutos de Carlos Moreno é a mais hodierna teoria urbana, não podemos esquecer o já longo caminho de sucessivas actualizações das noções de novo urbanismo. Simbolizado originalmente pelas propostas neo-camponesas dos irmãos Krier, através da definição de cidade para pessoas de Jan Gehl, o novo urbanismo agora cruza-se com a informalidade do urbanismo táctico ou quotidiano, onde a dimensão social, humana e ecológica ganha protagonismo sobre a produtividade no desenho urbano. Em todas estas teorias, o lugar do consumo está associado à proximidade e não ao lucro. A partir de André Gorz nos anos 70, o elogio das cidades densas veio acompanhado por uma vontade de decrescimento selectivo: parar de construir, de crescer, de expandir, e claro, de abrandar o nosso ritmo de consumo.

É assim a defesa da cidade compacta que nos interessa enquanto catalisador principal dessa vitalidade. Só a cidade densa consegue ser sustentável ao ponto de nos poupar tempo, espaço e assim, recursos. “A densidade é a virtude da cidade; a distância é o seu vício”, alerta-nos Richard Sennett. Um caminho tortuoso que tem ainda de superar o último bastião da modernidade: o automóvel. O favorecimento dos itinerários de proximidade é ainda uma das resoluções mais eficazes para o desenho da cidade. Se a viragem do século nos legou um entendimento do espaço urbano como pertencente não a um centro vigoroso, mas a um dinâmico território extenso e difuso, por vezes transgénico, como nos diz Álvaro Domingues, hoje entendemos bem que, através das redes de comunicação, conseguimos ser urbanos até quando voluntariamente isolados num eremitério campesino. Aceitar que haja quem tenha pouco interesse pela cidade, não nos desculpa de não pensarmos a cidade e a sua vitalidade, em seu benefício.

Para alcançar o nubloso conceito de vitalidade urbana, ainda que na sua heterogeneidade, precisamos de pensar a cidade para as pessoas, para a sustentabilidade ambiental, para o cumprimento dos recursos. Precisamos que seja próxima, e por isso densa. Precisamos que seja complexa, mas também eficaz. Precisamos que os usuários gostem da cidade e cuidem da sua cidade. Ter o Direito de Cidade é um conceito que se vai fortalecendo ao longo do tempo. O tempo em que estamos, segundo François Ascher, é o do compromisso.

Três pequeníssimas alterações

Regressando às três alterações dos proponentes, devidamente comprimidas, resumem a sua argumentação numa investida sobre o comércio em shopping (e outras superfícies drive-to), o comércio para o turismo, e ao supermercado.

A mais significativa fatia do comércio de rua (às vezes chamado genericamente de tradicional – como se uma ida ao shopping não fosse já uma tradição lusa) já está habituado o encerrar, voluntariamente, aos Domingos e Feriados. Uma rápida visita empírica a várias cidades compreende que os comerciantes zelam pelo seu direito ao descanso, fazendo-o instintivamente num silencioso uníssono, construído pelas leis da concorrência: se o meu vizinho está fechado, não ficarei aberto sozinho. Já no que toca ao horário, a alteração para as 22h parece também irrelevante, visto que a maior parte do comércio fecha antes do jantar – o que felizmente em Portugal é particularmente tarde – deixando a noite para outros lazeres. Aos Domingos e Feriados, para além das chamadas grandes superfícies (e nem em todos os Feriados, resiste algum decoro), está aberto o comércio das zonas turísticas. Se nas cidades com praia se vendem bóias e merchandising de inspiração local, nas cidades mais secas vendem-se pins de frigorífico e camisolas de futebol. A paisagem comercial destas zonas, não sendo particularmente entusiasmante, não deixa de contribuir para a vitalidade. Fechar lojas de souvenirs ao Domingo não resolve nem o problema do descanso, nem os problemas próprios das lojas de souvenirs, que não cabem neste ensaio.

Ainda nos Feriados (e em Domingos seleccionados), e focando-me no bairro onde me mexo, vende-se: design de autor, vinhos, cortes de cabelo e objectos vintage, entre tantos outros; negócios que beneficiam do particular privilégio de agradar simultaneamente ao turista e ao local, garantindo à cidade (e à sua vitalidade) a devida incursão neste segmento que atrás falávamos: onde o limite do que é do local e do turismo, fica esbatido. Sinteticamente conhecidos por quarteirões artísticos, há nas cidades portuguesas um conjunto de bairros com características particulares, que devem ser entendidos com especial cuidado. Nesses bairros, para além de habitantes e comerciantes, há uma miríade de espaços de difícil caracterização entre a oficina, o atelier e o escritório. Aqui, há um conjunto de trabalhadores, artistas, escritores, músicos, artesãos, que não têm horários – e por vezes nem fazem ideia se é Domingo ou Quarta-feira. Estes, tantas vezes de porta (ou montra) aberta para a rua, desenham a vitalidade urbana do lugar; atraem visitantes; animam o quotidiano. Claro que os proponentes, com as suas três pequeníssimas alterações, não imaginaram fechar ateliers. Mas imaginaram certamente que um cabeleireiro com serviço de café pode abrir ao Feriado, fazendo as delícias e as necessidades dos seus clientes; enquanto o seu concorrente que não investiu numa máquina de tostas-mistas, terá necessariamente de escolher outra ocupação, ou simplesmente, mudar o conceito.

É também esta colecção de espaços de complexa caracterização, que fazem parte das conhecidas indústrias criativas, que deve ser não apenas defendida, mas potenciada. Lefebvre lembrava-nos que a cidade não era apenas lugar de consumo, mas era também “consumo do lugar”. Vamos (ou estamos) na cidade para a consumir. Sobre os consumidores, François Ascher dizia-nos que estes “não querem já somente abastecer-se”, mas querem “fazer compras, ou seja, passear, sonhar, ver o espectáculo da rua, ter o sentimento não de que eles estão na rua, mas de que eles são a rua”. A defesa da rua, da vitalidade urbana, é a defesa dos negócios (mais ou menos lucrativos que a compõem). Principalmente porque, por constante esquecimento nos abaixo-assinados mais bem-sucedidos, acabam sempre por ficar preteridos. “Ser a rua”, eis uma ideia para a vitalidade da cidade – até porque como alternativa, resta-nos a congestão simulada, ou num grande equipamento comercial físico, ou num infinito equipamento digital de consumo!

O Shopping, o Hiper, o Super e o Online

Desde o aparecimento dos primeiros centros comerciais nos anos 50, até ao seu apogeu estético no classicismo free-style de Tomás Taveira, na nossa pós-modernidade apressada dos anos 80, os portugueses tornaram-se fãs das grandes superfícies. Conjuntos de centro comercial + hipermercado polvilharam o país, secando o comércio urbano, deixando a rua abandonada às sortes de outros movimentos, menos lúdicos. Um lugar de congestão, dir-se-á com certeza, mas com pouca mistura para ajudar à vitalidade. Desde os anos 90, tirando pontualmente alguns artifícios de entretenimento, introduzidos para garantir a necessária renovação (pistas de gelo, paredes de escalada, exposições de cartazes vintage de vacinação, entre outras modas temporárias), que não há nada de verdadeiramente novo num shopping center, e o entusiasmo tem decrescido nos consumidores, ávidos por outras autenticidades.

Nas compras de utilidades, a concentração no hipermercado esgotou o modelo de mercearias de proximidade e gestão familiar – que apenas conseguiram ter um recente remake nos centros urbanos mais predispostos à congestão. Mas hoje, em qualquer ponto do país, estas mega-estruturas desmultiplicaram-se num complexo sistema concorrencial, onde meia dúzia de players compete pela proximidade ou pela acessibilidade (porque o automóvel continua). Ainda que no espaço periurbano estas mega-estruturas tenham mantido, ou por vezes excedido, a sua dimensão, no centro das cidades é hoje o médio-mercado (devidamente rebaptizado com prefixos e sufixos do tipo “bom-dia”, “city”, “express” ou “my”), de gestão central ou franchisada, que domina as compras do dia-a-dia.
Baudrillard definia estes equipamentos como espaços de homogeneidade sem profundidade, onde a ausência de mediação, através de um sistema self-service (que rapidamente se está a transformar na operação de pagamento preferencial), garante ao utilizador o comando da selecção. Em tempos em que o conceito de curadoria está tão bem cotado, é precisamente esta noção de escolha que anima o consumidor (tal como na ilusão das compras online). A falta de profundidade é também característica de algum entretenimento da pós-modernidade. O supermercado (hiper ou outra escala de equipamentos) é lugar último de pertença do cidadão-consumidor à cidade. Um lugar democrático, com uma oferta para todas as carteiras, que reúne debaixo do mesmo espaço a heterogeneidade do gosto. Esta imagem do supermercado como lugar democrático é particularmente curiosa para a nossa reflexão, assumindo-o como uma espécie de grau zero da vitalidade urbana.

Se o supermercado é hoje um último bastião do encontro, do contacto, ou da “reunião a partir das coisas”, a obrigatoriedade do seu encerramento em certos dias retira a esta dimensão umas das suas camadas fundamentais. Entrar e sair de um estabelecimento comercial sem passar por uma caixa de pagamento – desde que devidamente munido de uma app – é há muito uma realidade. A ausência de mediação significa precisamente a ausência de funcionários atentos às dúvidas e desejos dos clientes, pelo que paradoxalmente, esse encontro será restrito a clientes.

Como foi avançado no início deste ensaio, o encerramento dos supermercados aos Domingos e Feriados parece um assunto de somenos: qualquer um é capaz de um planeamento mínimo de quatro refeições (como mandam as boas regras) para o dia seguinte. Mas quem vai diariamente ao supermercado (incluindo Domingos e as Feriados) percebe que a função deste vai muito além da compra. É o sair, que comporta a preparação para sair, a vontade e o regresso. É a tal reunião, o contacto com o outro, mesmo o outro com quem nunca se falou. É o motivo para a reunião. É o garante que a cidade continua animada, viva, vivida e segura (não podemos aqui esquecer o contributo de François Ascher ao alertar-nos que da importância vigilante do comerciante para a segurança da vizinhança). O percurso casa-supermercado, entendido como espaço-público, é o grau zero da vitalidade urbana e deve ser preservado.

Se há pouco falávamos da importância da localização como o grande factor de sucesso de um negócio comercial, não podemos esquecer que hoje, uma percentagem muito significativa dos negócios não requer presença física, ou requerendo, é a comunicação online que potencia a visita. Na futurologia urbana – e não precisamos ser particularmente distópicos – é fácil lamentarmos o progressivo abandono dos rés-do-chão comerciais e dos shopping-centers. As compras online, principalmente impulsionadas por uma eficaz experiência nos tempos pandémicos, vieram para ficar.

Nesse sentido, o que resta na cidade que nos faça sair de casa? Frescos, legumes, fruta, carne, peixe e outros perecíveis que, sendo cada peça diferente, nos faz ser micro-curadores e escolher. Ir uma vez por semana ao hipermercado pode ajudar a amadurecer alguma fruta, mas obriga ao congelamento dos restantes bens. É, novamente, na virtude do supermercado de proximidade, que reside a solução.
O panorama comercial das próximas décadas ameaça uma alteração substancial, capaz de descaracterizar a cidade, e como tal, a sua vitalidade urbana. Muitas das lojas (incluindo as de shopping) estão rapidamente a tornar-se obsoletas, capazes de ser substituídas por umas caixinhas postal dispostas pela cidade para devolução de artigos que se compraram online, não às cegas, mas desprovidas de toque, e que não se gostaram. O combate à abertura do comércio para além das 22h tornou-se desactualizado. Talvez seja melhor virar a atenção para os centros de logística e outros armazéns menos qualificados onde, longe da vista, o trabalho segue ininterrupto 24/7.

Com menos lojas (efeito do comércio online), com menos necessidade de deslocação diária para o trabalho (fruto do sucesso pós-pandémico do tele-trabalho), antevê-se que cidades que não beneficiam de áreas culturais ou lúdicas de grande destaque possam ficar – sem grandes subterfúgios – mais tristes. Mesmo nas que dessa concentração beneficiam, constata-se que as restantes áreas da cidade perderão vitalidade. Resta a experiência concentrada da congestão que só um centro-comercial e uma rua movimentada nos pode fornecer. Mas não ao Domingo!

Então, e o que fazemos ao Domingo?

Tudo, excepto comprar! É o que propõem os assinantes. Para o afirmarem, precisamos de considerar que comprar uma refeição, um bilhete de museu ou atestar o depósito não contam como processo de aquisição. Serão serviços, dir-se-á, não bens! Tudo, excepto adquirir bens – seria uma resposta mais segura, mas não correcta, porque apesar de tudo, em vez de passarmos uma tarde no shopping, à volta dos produtos (com gente à volta), podemos sempre passar uma tarde no sofá, à volta dos produtos (sem gente à volta) a comprar indiscriminadamente online, tantas vezes remotamente assistidos por um batalhão de operários próximos da ilegalidade laboral de um país distante.

Ora, se toda a estrutura familiar se alterou; se o tele-trabalho, o nomadismo digital e as novas tipologias de empregos, mais independentes e flexíveis, vieram alterar todas as dinâmicas laborais; se recentemente por cá começámos a explorar a semana de quatro dias (de trabalho); se um conjunto progressivamente maior de utentes da cidade a vive em horários descoordenados, porque é que ainda mantemos a vontade de rigidez do Domingo (e felizmente o Sábado não veio a lume)? Para quando pensar a semana de uma forma mais adaptada à condição contemporânea?

Mas no fim-de-semana não há escola. O Domingo é ainda o dia da família, dirão. Da tradicional e de todas as outras tipologias familiares que a nossa sociedade, ainda pós-moderna, luta por preservar. Inclusivamente – não poderia deixar de ser – famílias compostas definitiva ou temporariamente por um só elemento (solteiros, viúvos e deslocados da outra família). As mudanças sociais recentes fizeram com que, principalmente nas nossas cidades, os agregados familiares atingissem as mais variadas definições e complexidades. É também por isso que condicionar Domingos e Feriados em prol da defesa do tempo em família se torna exercício impróprio. Daí o cuidado dos proponentes a anunciarem a desejada harmonização da “vida profissional, com a vida familiar e social”, sem nunca esquecerem um nubloso conceito de “realização pessoal”, algo que pode ser praticado quer, na solidão individual, quer na poética imagem de alguém sozinho no meio da multidão. As três alterações propostas pretendem assim, ainda que com pouco, definir o que fazer ao Domingo. Privilegiam o descanso de mais uma camada de trabalhadores (ainda ficam por resolver os da restauração, dos museus e das bombas de gasolina, mas também de invisíveis call-centers e centros de logística) e com isso concentrar o rol de actividade a desenvolver.

Como é um Domingo (e um Feriado) perfeito? Talvez a única resposta que este ensaio pode arriscar é alertar para que se evite a pergunta. O condicionamento da forma como um cidadão frui a sua vida (urbana ou não) deixou de ser matéria legislativa ou moral. As políticas de gosto tornaram-se inadmissíveis, principalmente ao Domingo! Reintroduzir essa definição será lido como processo em retrocesso. E é por isso, que defender a liberdade de escolha do fruidor de cidade, em ir almoçar fora, ir ao museu, atestar o seu automóvel para um passeio, ou simplesmente, sair para comprar o pequeno almoço do dia seguinte, é defendido como protecção conquistas antigas, que – e agora sabemo-lo – permanecem instáveis. A proposta do Sindicato dos Trabalhadores do Comércio, Escritórios e Serviços de Portugal, para além da notória vantagem de nos pôr a discutir as questões da cidade, serve para nos alertar também que três pequeninas alterações à Lei, que pretendem dar horas de descanso a quem as menos tem, por vezes, são potenciadoras de outras dimensões. Se todos podemos concordar que resolver questões laborais é da maior justiça social; fazê-lo condicionado a vitalidade urbana é só desviar o problema com um novo problema. É essa, precisamente, uma das dificuldades da cidade. Estamos, como nos diz Edgar Morin, constantemente condenados ao “pensamento complexo”.

Considerações Finais

Se ao ensaísta, “livre da servidão académica”, como nos dizia Adorno, pudessem ser admitidas escolhas, eu gostaria que um Domingo (e um Feriado) na cidade pudesse ser igual a qualquer outro dia, onde no meu catálogo de possibilidades pudesse figurar a mesma panóplia caleidoscópica de afazeres que num dia quotidiano. A imagem da cidade que nunca dorme, popularizado pela cultura do fim de século, é ainda cenário de desejo deste autor. Também gostaria que todos os shopping-centers + hipermercado encerrassem permanentemente. Mas, ao contrário dos proponentes, não por decreto, mas por desinteresse popular, conscientes finalmente das maravilhas da cidade compacta. Nesta hipótese, todas as actividades comerciais (portanto lúdicas), espalhavam-se pelas ruas da cidade. As mesmas ruas, onde o mesmo autor, há 10 anos, co-fundou uma loja-galeria de design no bairro artístico do Porto.

Mas sabe este ensaísta – que ocupa hoje o papel de académico, investigador de cidades – que segundo Morin, “enfrentar o emaranhado” à procura de (boas, justas e comprometidas) respostas temporárias para os problemas da cidade, é o único desejo possível. Tentou-se falar da cidade. Lançar pistas e chaves de leitura, que devem ser agarradas pelo leitor, compostas e acrescentadas por outras, na construção da sua própria ideia de cidade – pois não há só uma. O trabalho dos planeadores, dos políticos e demais artífices da urbe, é fazer o emaranhado possível com todas as visões complementares e contraditórias. E daí, vem precisamente o fascínio da cidade: na sua impossibilidade!

Em breve terá voz o parlamento. A esquerda, que votará favoravelmente, será acusada pela direita de estar apenas do lado dos trabalhadores e a atacar a liberdade do consumidor. A direita, que votará contra, será culpabilizada pela esquerda por defender os patrões, prejudicando o direito ao descanso de quem trabalha. Ganhará, matematicamente a maioria, mantendo-se o quadro anterior. E neste maniqueístico cliché, cercado pelas questões monetárias e laborais, a vitalidade urbana não terá lugar no debate. Não porque a política deles se desinteresse, mas porque esta se habituou a um processo de simplificação em nome de uma facilitação operativa. Resta à sociedade civil – e aos media – essa posição na discussão dos seus assuntos. Mas o cidadão, consumidor, turista ou local – sempre fruidor – quer mais, e precisa de mais.

Da parte que me toca, discutir a cidade é já uma forma de a fruir!


Autor:
30 Setembro, 2024

André Ramos (Viseu, 1984) é arquitecto, investigador e galerista. Doutorando no DARQ UC (2022-), com uma Bolsa da FCT, e mestre pela FAUP (2002-10).
Trabalhou em arquitectura de forma intermitente desde 2008, em colaborações, nome próprio ou parceria.
 Em 2013, com Sílvia Pinto Costa, criou a galeria de arte e design SCAR-ID, e em 2017 a marca ATER by SCAR-ID. Colabora pontualmente com jornais e revistas.

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