Islamofobia e xenofobia em Portugal: inventar o medo, e reclamá-lo

Islamofobia e xenofobia em Portugal: inventar o medo, e reclamá-lo

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23 Fevereiro, 2024 /
Fotografia de uma parede grafitada, na Amadora, onde se lê Basta de Racismo depois de visivelmente, alguém ter adulterado um grafiti originalmente racista.

Índice do Artigo:

Falar para os arquitetos de um medo inventado na sua linguagem, refutando os factos (leia-se, mentiras) que apresentam, nunca nos salvará precisamente porque o que os move não é a reposição da verdade, mas sim a imposição do poder.

A 13 de maio de 2021, o gabinete parlamentar da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira, ao qual pertencia enquanto assessora política, lançou um projeto de voto à Assembleia da República com o título “De saudação à comunidade muçulmana em Portugal, por ocasião do Eid al-Fitr”. O Eid-al-Fitr corresponde à celebração do final do mês do Ramadão, um mês marcado pelo cultivar de um espírito autorreflexivo, assente em valores como a entreajuda, a compaixão, o sacrifício e a disciplina. Para mim, e para muitos e muitas outras muçulmanas distribuídas pelo globo, é talvez a ocasião mais marcante de cada ano religioso. Foi a primeira e única vez que ouvi um projeto de voto dirigido à comunidade muçulmana em Portugal ser lido numa sessão plenária da Assembleia da República, assinalando uma ocasião de prosperidade e alegria para tantos e tantas que residem e fazem parte deste país. Foi também a primeira e única vez que escrevi um. 

O projeto de voto da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira foi admitido no próprio dia, deu entrada no Diário da República como manda o protocolo, e desapareceu durante vastas semanas. A cada segunda-feira de manhã, verificava diligentemente se tinha sido incluído na ordem do dia da reunião semanal da Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, para que fosse discutido na generalidade nessa semana. Mas nunca era. Finalmente, quando considerámos que a ausência da iniciativa dos agendamentos da 1ª Comissão parecia significar o seu apagamento e já com a memória da celebração de Eid-al-Fitr a desvanecer-se no passado recente, telefonei aos serviços parlamentares para que nos esclarecessem sobre o paradeiro do projeto de voto. Por entre risos de estupefação e embaraço, o funcionário parlamentar com quem falei garantiu-me que o projeto de voto não tinha sido rasurado. Apenas tinha sido enviado – aleatoriamente, afirmou de imediato – para a Comissão errada. Algo nunca antes visto, assegurou-me. O projeto “tinha ido parar” à 2ª Comissão – a Comissão de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portugueses, cuja atividade fundamental é nada mais do que “acompanhar a política e relações externas de Portugal, bem como [d]as Comunidades Portuguesas espalhadas pela Diáspora”.

Apenas um mês depois, o partido CHEGA!, à época representado pelo Deputado único André Ventura, lançou um projeto de resolução à Assembleia da República com o título “pela definição de quotas máximas à imigração proveniente de países islâmicos”. No texto da proposta sem força de lei lê-se: “as experiências já́ conhecidas e amplamente divulgadas na Europa revelaram riscos e problemas que não são despiciendos, podendo colocar em risco a própria matriz de valores da civilização europeia. (…) A descontrolada imigração islâmica pode ser tremendamente disruptiva no funcionamento social e na própria dinâmica de tensões dentro das comunidades, levando muitas vezes a afetar os alicerces axiológicos das nossas sociedades em matéria de igualdade, direitos das mulheres e das crianças, laicidade do Estado ou promoção de violência religiosa”. Não houve hesitações ou erros incidentais relativamente a um projeto de compatibilidade constitucional no mínimo dúbia, nem mesmo tendo em conta que esta era a única iniciativa, das duas em questão, que abordava em concreto a temática dos movimentos de entradas e saídas de pessoas migrantes do território nacional. No dia seguinte à sua publicação no Diário da República, o projeto de resolução do CHEGA! baixou à 1ª Comissão, a certa. 

Um projeto de voto de saudação à comunidade muçulmana em Portugal e de Portugal (com a clarificação no seu próprio título) a ser reconduzido a uma comissão parlamentar que, por definição, se debruça apenas sobre o que fica para além das margens que definem o nosso povo, sobre o que é externo e fica no exterior e não faz parte inteiramente ou da mesma forma. Uma espécie de Freudian slip institucional. Muito podemos inferir sobre as premissas que moldam a nossa consciência coletiva observando os ocasionais deslizes que ocorrem num órgão de soberania e de representação máxima do poder político em que impera a ordem, o rigor e a intencionalidade, e os deslizes são raros, inexistentes ou sintomáticos de algo mais premente e transversal. 

O lançamento destas duas iniciativas no espaço de algumas semanas (apenas uma delas noticiada prontamente) e, sobretudo, todo o processo parlamentar subsequente invocaram, para mim, as duas posições políticas – distintas mas complementares – que sempre vi reproduzidas à minha volta, enquanto mulher muçulmana portuguesa, filha e neta de imigrantes que partiram da Índia e fizeram de Portugal a sua casa há várias décadas: de um lado, a pronta rejeição da entrada de pessoas como nós, por personificarmos o perigo desconhecido do Outro; de outro, o não-reconhecimento tácito de que já cá estamos há vários anos, de que de cá somos, de que não temos outro sítio e de que é legítimo e correto afirmar que este é o nosso sítio, sem mais. 

Mais recentemente, no início deste mês de fevereiro, organizações ultranacionalistas e de extrema-direita, encabeçadas pelo neonazi Grupo 1143 de Mário Machado (apelidado benevolentemente de organizador do protesto pelos órgãos de comunicação social nacionais, apesar das suas prévias condenações pela participação reincidente e energética em crimes de ódio), anunciaram o planeamento de uma manifestação “contra a islamização da Europa” na zona do Martim Moniz, em Lisboa; o culminar de vários instantes de violência racista dirigida a grupos de migrantes sul-asiáticos e percecionados como sendo muçulmanos a viver em Portugal nos últimos anos. Contaria com vários apoiantes ou ex-apoiantes do partido CHEGA!. O desejo anunciado por Mário Machado, sem pudor ou autorrestrições, era de reconquistar o território nacional, um desejo que é difícil de conceber sem o imaginar alicerçado à agressividade, à vontade de ameaçar, intimidar e destruir, ao ódio transparente. Os moradores e comerciantes da zona do Martim Moniz foram aconselhados a ficar em casa pela própria Junta de Freguesia, a não “reagirem a provocações”, mesmo após a manifestação ter sido considerada ilegal. Como muitas outras pessoas racializadas em Lisboa, recebi várias mensagens sobre esta manifestação nos dias que a antecederam. A preocupação era só uma: ter cuidado na rua, sobreviver ao dia. 

Nunca é só um dia. É a realidade atual. Talvez seja surpreendente para alguns termos chegado a este ponto de normalização tão profunda do racismo, e, neste caso em específico, da islamofobia na política e na sociedade portuguesa, ou talvez pareça repentino que a extrema-direita portuguesa tenha elegido a islamofobia como o terreno profícuo para mobilização do ódio. Mas os indícios sempre cá estiveram. E uma das razões por que cá estamos prende-se pelo facto de o debate formal em torno da imigração em Portugal parecer circunscrever-se apenas a dois campos discursivos. Um binómio de desumanização. Os migrantes são os inconciliáveis, os primitivos, os subservientes, os exóticos, os criminosos. Ou são os que não pertencem, mas não ameaçam. Os anónimos, os unidimensionais, os vários outros que se unem numa só categoria difusa e distante e estranha à identidade nacional. São os que foram adequadamente integrados (ou absorvidos), os que não impõem as suas tradições e vivências – na verdade, são muito eficientes a mantê-las ocultas, na esfera privada, na vida familiar. Ou são os que representam a corrosão da ordem civilizacional e dos bons costumes, do nosso substrato e do nosso futuro. Não são nossos ou como nós e não chegarão a ser. Mas talvez sejam qualquer coisa. São a utilidade, são a eficiência, são o trabalho produzido que ninguém quer produzir, são o lucro contributivo, são a comida quentinha a ser entregue, são a bicicleta alugada que transporta o estafeta invisível, ou o Uber que se calhar rejeitamos quando lemos o nome no ecrã, porque dizem por aí que há perigo. São os corpos empilhados em beliches, por vezes mais de 30 por quarto, são as mercearias vandalizadas por todo o país, o número 1143 desenhado à janela a passar despercebido pelo público como se não fosse prenúncio de qualquer coisa maior. São as mulheres que precisam de ser salvas delas próprias. São a rua do Benformoso e são Odemira e são os perímetros por cruzar. São aquilo em que Lisboa se transformou, para bem ou para o mal, mas não são Lisboa e nunca serão Lisboa (talvez sem nunca ter saído de Lisboa). 

A incapacidade de alguma esquerda superar uma argumentação puramente utilitária e assente em condicionalismos para enumerar as vantagens que a migração traz a um país como Portugal (através, por exemplo, do reforço constante de que as pessoas migrantes são responsáveis por um saldo vastamente positivo para a Segurança Social) e, assim, justificar a aceitação de quem cruza as nossas fronteiras para garantir a sua subsistência é prevalente, e revela limitações graves. É verdade que as pessoas migrantes trazem vantagens para a economia portuguesa. É verdade que muitas delas ocupam-se da precariedade, residem em condições insalubres e marginais, não aumentam substancialmente os índices de criminalidade, respeitam os costumes nacionais, procuram aprender a língua, procuram passar despercebidas. Tudo isto é verdade e, por vezes, afirmar a verdade é essencial e faz diferença. É o que permite esclarecer o indeciso de boa-fé, ou quem aponta a sua raiva e frustrações legítimas ao alvo errado, porque só quer poder viver melhor, e tudo é difícil e injusto, e o tempo não é verdadeiramente seu. Mas também há vezes em que a exposição do que é real é apenas redundante ou insuficiente. Falar para os arquitetos de um medo inventado na sua linguagem, refutando os factos (leia-se, mentiras) que apresentam, nunca nos salvará precisamente porque o que os move não é a reposição da verdade, mas sim a imposição do poder, a criação de um alçapão entre grupos explorados para preservar uma hierarquia de classes que tem claros beneficiários, e claros derrotados. É reclamar um medo inventado e colocá-lo em suspensão, sem nunca o abolir inteiramente. É tentar apelar ao vazio, como tentar desviar uma bala através da racionalidade. Ninguém nos ouve, e a bala atravessa o ar. Raramente pensamos a migração como uma consequência da devastação perpetrada por Impérios coloniais como o português, por anos e anos, nos países do Sul Global. Raramente olhamos o acolhimento de pessoas migrantes como um desfecho histórico inevitável dessa devastação, a reparação da crueldade infligida, dar casa à casa tirada, um dever puro. Raramente pensamos as famílias que migram como compostas por pessoas historicamente conectadas a Portugal por décadas, séculos. A minha família, por exemplo, como muitas outras: há razões para cá estarmos, razões que superam a nossa própria existência, e que não podem ser apagadas, e que se consubstanciam em dignas e justas reivindicações. No sábado, dia 24 de fevereiro, no período crítico que antecede as eleições legislativas de 10 de março, essas reivindicações vão à rua e é nosso dever cultivar uma solidariedade horizontal, e lá estar para ouvir e para que nos façamos ouvir. Nunca foi tão urgente.

Autor:
23 Fevereiro, 2024

Miriam Sabjaly é jurista, cronista e ativista anti-racista. Trabalhou como técnica de apoio a pessoas migrantes vítimas de crime em Portugal e a pessoas vítimas de crimes específicos, como os crimes de ódio, tráfico de seres humanos, discriminação, mutilação genital feminina/corte e casamento forçado. Foi assessora política da Deputada não inscrita Joacine Katar Moreira entre março de 2021 e março de 2022. Atualmente é mestranda em Direitos Humanos, dividindo o tempo entre Gotemburgo (Suécia), Bilbao (Espanha), Londres (Reino Unido) e Tromsø (Noruega).

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