Paola del Prado usa IA para mapear possibilidades além do eurocentrismo

Paola del Prado usa IA para mapear possibilidades além do eurocentrismo

29 Julho, 2022 /

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Paola Torres Núñez del Prado não é uma artista vulgar. Junta cultura e tecnologia, e funde os dois, procurando espaços híbridos e transitórios como as nossas sociedades.

Paola Torres Núñez del Prado nasceu na cidade de Lima, no Peru. Depois de um curso inacabado de pintura no seu país natal, partiu à descoberta de outros mundos. Formou-se em artes na Big Apple, mas assoberbada pela azáfama consumista da cidade decidiu regressar ao seu país de origem. Foi por lá, durante um período pessoal conturbado, que aceitou que ser artista seria o seu percurso. Hoje, descreve-se como uma mãe-nómada e vai sendo reconhecida como artista transdisciplinar. Na sua prática, desafia quase todos os limites com que se envolve, quer em termos formais, quer em termos conceptuais. Vive actualmente algures entre a Suécia e o Peru, mostrando o seu trabalho nos mais diversos contextos. 

Incorporando na sua prática artística tecnologias de ponta, como a Inteligência Artificial, Paola fá-lo de uma forma particular. Partindo das referências culturais que lhe são pessoalmente próximas, a artista usa a tecnologia como forma de interação, fazendo desse diálogo uma descoberta não só sobre a cultura nem só sobre a tecnologia, também sobre como estas duas dimensões se unem e se fundem no mundo em que vivemos. “No meu trabalho estou sempre a ligar cultura e tecnologia, desvendando-as simultaneamente”, diz-nos numa entrevista por e-mail, a propósito da sua passagem por Portugal a convite do ciclo Human Entities 2022

Paola Torres Núñez Del Prado via CADA / Fotografia: Joana Linda

Paola interpreta a tecnologia numa perspectiva mais alargada, contrariando a tendência actual para nomear como tal um conjunto muito estrito e situado de coisas, e à boleia desta redefinição sustenta que “também as referências culturais ancestrais são parte de uma linhagem tecnológica, que foi extinta ou modificada e adaptada entretanto” — Paola não pretende substituir artefactos culturais mas, a seu jeito, alertar para a substituição que já aconteceu com a marginalização colonial de culturas indígenas. Recordando o pensamento de Gilbert Simondon, a artista destaca a importância do enquadramento na forma como se percepciona o papel de cada elemento no diálogo gerado pelo seu trabalho. Para o filósofo francês, sintetiza Paola, “uma ferramenta torna-se um objecto técnico quando transporta informação, e o utilizador como intérprete deve então ter formas técnicas, que lhe permitam compreender tal informação.”. É nesta reflexão sobre a interdependência entre tecnologia e cultura que o seu trabalho se incide – ou, melhor, deriva. 

Saltando entre práticas, domínios técnicos, objectos de trabalho, sem uma intenção deliberada de se posicionar como uma outsider na cena artística, Paola acaba por transpor a forma “extremamente pessoal” com que lida com o ambiente e gere as ideias que a rodeiam para o seu trabalho, inspirando-o por vezes com uma certa distância. Uma distância que permite discernir os diferentes lugares das coisas, que “ultrapassa a concepção comum de tecnologia e talvez, de historicidade”. Na sua obra, a tecnologia não é só um tema, contrariando a linearidade que seria previsível, um dos principais predicados da sua prática.

“Como a especialização técnica ocorreria devido à e para a cultura, a compreensão de tal especialização como capitalista é uma progressão lógica, dado o nosso actual zeitgeist cultural dominante. Walter Benjamin afirmou-o claramente: ‘não há nenhum documento de civilização que não seja ao mesmo tempo um documento de barbárie’, que já questiona a linearidade pressuposta da história”, reflete.

GIF com imagens do trabalho Corrupted Structures

Renascer com uma nova noção do tempo 

Como nos conta a determinado momento da conversa, uma história lateral sobre a sua vida pessoal inaugura uma nova perspectiva sobre o seu trabalho. “Há cerca de 20 anos conheci a palavra Qipa/Qhipa, um termo aymara polisémico que significa algo como à frente ou atrás, dependendo se se refere a um fenómeno espacial ou temporal”, relata, partindo numa reflexão mais ampla sobre a linearidade da história que começara por desafiar. O pensamento andino, ou talvez a minha interpretação do mesmo, permitiu-me compreender o futuro e o passado de uma forma diferente, não necessariamente uma forma sequencial e linear com uma seta sempre a apontar para a frente.” E assim, a partir deste entendimento contra-hegemónio, “o que está a ser reconhecido como uma discussão sobre tradição, contempla, de facto, múltiplas referências a várias tradições que coexistem e se reproduzem em cada obra que faço”.

[Qhipa em Aymara significa, de modo simplificado, ‘atrás’ quando usado para falar sobre tempo, embora, por exemplo ‘qhipa mara‘ deva ser traduzido como “próximo ano” – isto relaciona-se com a forma como este povo percepciona o tempo, vendo o passado à sua frente e o futuro atrás.] 

A Núñez del Prado não interessa apenas um questionamento contemplativo de tradições passadas, por outro lado, forja no diálogo e na interação entre os elementos de diferentes proveniências e contextos, uma reflexão sobre a barbárie contemporânea – parafraseando Benjamin. “Eu situo o meu uso de Inteligência Artificial dentro do quadro comum, mas trabalho para usar os viés de outra forma, em que gero novos viés fora da tradição exclusivamente eurocêntrica (…) podemos pensar se é de facto possível quebrar a hegemonia dominante com as suas próprias ferramentas. Provavelmente só podemos esculpi-la um pouco”, diz-nos, antes de, – e abraçando a circularidade da conversa – lembrar que “de qualquer forma, como produtos culturais, toda a tecnologia é inevitavelmente enviesada. Por isso, a chave é reconhecê-lo”.

É nessa dimensão do reconhecimento, da partilha de códigos culturais que permitem desvendar as direções da tecnologia, e da fusão que os aproxima uns dos outros, que Núñez del Prado opera. Num dos seus mais recentes trabalhos, incluindo no projecto Knots of Code, desenvolvido em parte numa residência da Google Arts and Culture, Paola criou AIELSON, um sistema de inteligência artificial que recita poesia emulando a voz do poeta e artista peruano Jorge Eduardo Eielson (1924-2006), que se notabilizou, entre outros trabalhos, pela sua reinterpretação dos Quipus exposta na Bienal de Veneza em 1964. Em Sonofied Textiles, por exemplo, a artista toca em téxteis — quipus e outros objectos — aproveitando a tecnologia para os elevar à dimensão de instrumentos musicais – com uma série de sons codificados em resposta às suas interações com os materiais. Já em Corrupted Structures, o percurso é invertido; sons selecionados pela artista — como do choro de crianças refugiadas ou da explosão numa mina — são transformados em visualizações que servem para corromper a estrutura de pedaços de textil maias – uma oscilação entre pólos, entre o extremamente analógico e o eminentemente digital. 

Capa de El Tiempo Del Hombre, álbum resultante do projecto AIELSON

[Os quipus eram instrumentos utilizados pela civilização inca para armazenar informação. Numa explicação simples, são cordas com nós e é a distância entre os nós que permitia codificar e descodificar informação]

Como diz em entrevistas anteriores, Paola procura que o seu trabalho seja mais sobre interação e menos sobre descodificação de conceitos, e ao fazê-lo está, de certa forma, a replicar a dinâmica de base de qualquer sociedade – situando-se num espaço híbrido ou, se quisermos, transitório. Embora esteja em movimento, em interação, e portanto munido de intencionalidade, o trabalho de Paola não se enquadra numa lógica militante; sendo obviamente político, até pelo grau de relação que a artista estabelece com a sua obra, deixa espaço para que outros – o público – se possa juntar. “Posso estar a apelar a uma mudança social, mas considero a definição de tal apelo demasiado ambiciosa, algo que uma pessoa só não pode fazer. Ver-me como capaz de oferecer “a direcção”, por assim dizer, pode ser um pouco egomaníaco demais.”

Paola Torres Núñez del Prado não procura dar respostas com o seu trabalho. Prefere, antes de mais, indicar-nos direções que nos permitam fazer mais perguntas.“Se tiver de me posicionar nessa questão, diria que estou mais a sugerir tópicos como caminhos, que nos podem levar para diferentes direções em diferentes pontos”, reflecte. Talvez esteja a fazer uma espécie de mapa e, a partir daí, posso recomendar por onde não ir, estando ciente de que posso estar errada, até porque o mapa é um trabalho em progresso.

Autor:
29 Julho, 2022

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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