Este mês, o The Guardian publicou os Ficheiros Uber [“Uber Files”], em colaboração com o Consórcio Internacional de Jornalistas de Investigação e 42 outros meios de comunicação. A investigação é baseada em mais de 124 mil documentos internos, que mostram que Emmanuel Macron (na altura Ministro da Economia) e outros políticos ajudaram secretamente a empresa; que académicos foram pagos para publicar investigação que estivesse em linha com os interesses da empresa; e o uso de técnicas activas para defraudar polícia e reguladores.
A empresa, numa estratégia de redução de danos de imagem, rapidamente passou as responsabilidades para o seu ex-CEO, Travis Kalanick, alegando que todos os acontecimentos reportados aconteceram antes de 2017. Contudo, para entender a criação da Uber e suas táticas de expansão, é necessário ignorar o caráter de Kalanick e analisar as tendências da economia global desde 2009.
Não é tecnologia, é liquidez de mercado
A ideia de partilha de transporte não tem nada de novo e a Lyft, uma das principais concorrentes da Uber, exemplifica isso na perfeição. A empresa foi originalmente criada como uma empresa de “carpool” chamada Zimride, inspirada no modelo informal de partilha de carros no Zimbabwe (existente em vários países do sul global), algo que o seu fundador viu numas férias.
À primeira vista, pode parecer que o desenvolvimento tecnológico e a popularização dos smartphones é o motivo pelo o qual empresas como a Uber e Lyft conseguiram implementar um modelo de transporte informal, inspirado no Zimbabué, no norte global. Mas isso está longe de ser a principal razão. A Uber foi fundada na ressaca da crise financeira, em 2009, um período em que o capitalismo global – e os EUA em particular – entrava numa década de “dinheiro e crédito barato” combinado com baixos níveis de emprego, subemprego e estagnação salarial. Essa combinação fez com que a Uber fosse capaz de expandir pelo mundo e absorver prejuízos bilionários, financiados por especuladores, numa estratégia de dumping duplo: ganhar popularidade ao fazer concorrência desleal aos concorrentes (táxis) com tarifas altamente subsidiadas, enquanto o pós-crise financeira garantia milhares de trabalhadores dispostos a ser motoristas sem quaisquer direitos laborais.
O apoio de vários políticos e a facilidade de operar ilegalmente pelo mundo é um mero reflexo do equilíbrio ideológico existente, refletido nas leis da concorrência vigentes, gerando uma lógica de “ditadura do consumidor”. Ao ignorar os efeitos perversos do dumping da Uber, como baixar preços artificialmente para derrubar a indústria dos táxis, as leis concorrenciais ajudaram a promover a estratégia da Uber de se tornar um monopólio no futuro.
Um império de papel
O lobby empresarial está longe de ser um exclusivo da Uber mas a sua estratégia agressiva, revelada nos Ficheiros Uber, mostra (implicitamente) as fragilidades do seu projecto de se tornar um monopólio global. Quando comparada com o Airbnb, outro gigante da economia da partilha [gig economy] com um histórico de lobby e atropelos legais, as vulnerabilidades da Uber são mais que evidentes. O Airbnb tem sido capaz de gerar lucros apesar da pandemia e tem um negócio diversificado pelo mundo. Contrastando com a Uber, em que 25% das receitas são realizadas em apenas 5 cidades, tornando-a muito vulnerável a regulações municipais. Consequentemente, o Airbnb tem conseguido acomodar melhor, do ponto de vista de negócio, as regulações impostas em grandes cidades como Berlim, Nova Iorque ou Barcelona. Além disso, estudos independentes mostram que a Uber não tem trazido benefícios para a mobilidade colectiva, trânsito ou redução das emissões de carbono.
Estas dificuldades estruturais são o motivo pelo qual a Uber necessita de uma estratégia tão agressiva, que envolve dumping, sabotagem, financiamento de campanhas políticas, espionagem e não cumprimento da lei. No fundo, estas práticas mostram que a Uber precisa de dominar todos os processos do seu ecossistema (mão de obra, concorrência, leis municipais e laborais) para ter uma chance de ser a empresa bilionária prometida aos investidores.
Acima de tudo, os “Ficheiros Uber” mostram que, tal como outras empresas de apresentadas como unicórnios da “inovação tecnológica”, a Uber é essencialmente um reflexo de um período de exuberância dos mercados financeiros em que biliões foram investidos em negócios não lucrativos na esperança de dominar o mundo no futuro. Talvez não coincidentemente, a delação por parte de um ex-lobista da Uber acontece quando os mercados financeiros estão em queda, períodos em que os investidores são menos generosos com empresas pouco lucrativas. Talvez o lema “fake it until you make it” [finge até conseguires resultados] – que alimentou a Uber e outros unicórnios – esteja (temporariamente) fora de moda.