Como rebentou outra bolha das criptomoedas

Como rebentou outra bolha das criptomoedas

26 Maio, 2022 /

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Entre 9 e 12 de Maio, o mercado das criptomoedas entrou em mais um momento de recessão. Para além das sentenças de que é a morte das cripto e das promessas de que é só um percalço rumo ao paraíso, explicamos-te o que aconteceu e como foram as principais reacções.

O valor global do mercado das criptomoedas voltou há pouco mais de uma semana a ter perdas significativas. Com isso, voltaram os artigos sobre o princípio do fim das cripto. E se é altamente improvável que esse seja o desfecho desta, a verdade é que mais um crash nas cripto gerou importantes debates, revelando muitas das fragilidades do sector, e a vontade dos reguladores em evitar que isso volte a acontecer – com medo do potenciais riscos sistémicos que possam arrastar consigo não só a vida de milhares de pessoas que investem as suas poupanças, como todo o sistema financeiro globalmente cada vez mais empenhado nas criptomoedas. 

Apesar de quase todas as histórias sobre as criptomoedas nos mainstream media se resumirem habitualmente à Bitcoin – por ser ser a principal criptomoeda, não só em popularidade como em valorização; a moeda na qual se concentram as atenções e se mede o pulso aos mercados –, o crash do passado dia 12 de Maio tem como protagonistas um par de moedas muito mais recente e menos popular: a peculiar stablecoin Terra (UST) e a sua moeda irmã Luna, criadas pela Terraform Labs, startup fundada por Do Kwon e Daniel Shin. 

Terra, Luna e as stablecoins

Criada em 2020, foi em 2021 que este par de moedas praticamente indissociável começou a ganhar tração. Para percebermos porquê, comecemos por perceber o que é hipoteticamente uma stablecoin e em que é que a Terra se distingue das demais.

As stablecoins, como o próprio nome indica, são criptomoedas criadas para resistir à volatilidade que caracteriza os mercados cripto, mantendo um valor mais ou menos constante a rondar o 1$. Geralmente, esta estabilidade é conferida às moedas através da criação de reservas de activos, como moeda fiduciária, na mesma razão que a moeda criada o que garante uma proporção de 1 para 1 entre tokens emitidos e os activos reservados como garantia.

Contudo, e se mesmo estes casos já geraram alguma polémica (por exemplo, descobriu-se que a emissora de uma stablecoin chamada Tether não tinha as reservas de valor que dizia ter), o caso da Terra é ainda mais complexo. Em vez de ser uma moeda com lastro no dólar, a Terra é algorithmic stablecoin, isto é, uma moeda que procura manter o seu valor estável através de uma operação algorítmica – é nesta equação que entra a Luna.

Explicando de uma forma simples, a Terra usaria a moeda Luna para garantir a sua estabilidade. Assim quando o valor de Terra está acima do valor de referência, o algoritmo queima uma unidade de Luna, e vice-versa. E seria a moeda Luna que através da Luna Foundation Guard, uma fundação sem fins lucrativos garantia a estabilidade do valor das reservas comprando e armazenando outras criptomoedas, como a Bitcoin. 

Foi este sistema inovador que atraiu milhares de investidores privados mas também investidores institucionais de capital de risco. Mike Novogratz, um conhecido investidor em criptomoedas e director executivo da empresa de capital de risco Galaxy Digital, chegou mesmo a assinalar o seu investimento na moeda com uma colorida tatuagem que publicou no seu Twitter em Janeiro. Mas a estratégia de atracção da moeda não se ficou por aí. Mais sonante e apelativa ainda era uma das aplicações oferecidas pela criptomoeda através do protocolo Anchor. 

Entre a popularidade e a dúvida

Criado pela mesma Terraform Labs, o protocolo Anchor consistia basicamente num sistema de poupança e empréstimos – baseado na criptomoeda Terra, mas com um token próprio para gestão do protocolo (ANC) –, que prometia um rendimento anual de cerca de 20%. Se, por um lado, esse valor fez soar alarmes entre os mais cépticos (que já antes do crash apontavam para a insustentabilidade da promessa); por outro, acabou por atrair incautos. Segundo o site Decrypt, o protocolo ganhou tanta popularidade no ecossistema que o volume de Terra que lhe estava associado chegou a ser cerca de 72% de todo o pool da moeda. 

Apesar de todos os sinais apontarem para o facto desta stablecoin poder afinal não ser assim tão estável, do esquema de investimento prometer retornos que nem os melhores e mais estabelecidos produtos financeiros correntes conseguem oferecer, e de anteriormente outras moedas estabilizadas por sistemas algorítmicos terem tido um desfecho semelhante, o sucesso da Terra levou até à 3ª posição das stablecoins em termos de volume global do mercado, sendo listada nas principais plataformas de câmbio. Citado pelo The Verge, um dos mais conceituados executivos do mundo das criptomoedas, Sam Bankman-Fried, da FTX, chegou a dizer num podcast que fazendo zoom out a toda a situação era previsível o desfecho da moeda que, ainda assim, manteve transacionável na sua plataforma. 

A grande queda

Todo o entusiasmo em torno da criptomoeda levou a subidas constantes e significativas num curto espaço de tempo, mas no dia 9 de Maio tudo começou a mudar. A Terra, que por ser uma stablecoin tem um valor de referência perto do dólar, acabou a valer cerca de 0,11$ e a sua irmã Luna, com um valor perto dos 86$, desceu para os – espante-se – 0,000188$.

As razões ainda estão a ser investigadas em detalhe, para que se perceba se houve movimentos consertados com o objectivo de lucrar e destruir a moeda, mas os resultados estão à vista de todos. Mas, ao que tudo indica, o descarrilar da moeda deveu-se numa primeira instância a um retirar massivo dos depósitos no protocolo Anchor, de cerca de 3 mil milhões de dólares que a Terraform Labs foi incapaz de acompanhar com o seu modelo de estabilização algorítmico.

O levantamento de cerca de 3 mil milhões de dólares em Terra do protocolo Anchor fez com que a Terraform tivesse de avançar com os valores e pôs em causa toda a estabilidade do sistema de equilíbrio. Numa tentativa de resposta, a Luna Foundation Guard ainda tentou adquirir cerca de 3,5 mil milhões de dólares em Bitcoin para apoiar as suas reservas num activo com valor mais sólido, mas o descolar da moeda Terra do valor de referência fez com que os investidores começassem a perder a confiança. Nesse momento, gerou-se uma corrida aos levantamentos com os investidores a vender a Luna nos seus portfólios para tentar assegurar parte dos seus depósitos enquanto as moedas entravam numa autêntica “espiral da morte” de perda de valor. 

As perdas totais são difíceis de estimar, mas entre publicações nos fóruns da especialidade de pessoas comuns em situações de desespero e as perdas registadas pelos investidores institucionais, fala-se por exemplo em 44 milhões de dólares perdidos pela Stablegains – uma startup que combinava investimentos privados –, 10 milhões de dólares pela Delphi Digital, e 3,5 mil milhões de dólares por um fundo de investimento sul coreano, para nomear alguns dos exemplos citados pela imprensa. Já no outro lado da moeda, segundo o New York Times, alguns investidores conseguiram no meio de tudo isto lucrar como a Pantera Capital, a Hack VC ou a CMCC Global que anteciparam a queda e liquidaram as suas posições antes da queda. 

Como referido, o caso encontra-se agora em investigação por parte das autoridades sobretudo da Coreia do Sul, país onde estava inicialmente sediada a empresa, depois de darem entrada acusações de fraude e burla sobretudo dirigidas à face mais visível da moeda, Do Kwon. Notícias vindas da Coreia do Sul dão mesmo conta da prisão de um individuo que descobriu a morada do empreendedor e lhe foi bater à porta exigindo explicações, um episódio caricato que ajuda a entender a orbita em torno do criador da moeda. 

Do Kwon nunca se escondeu como entidade central no universo destas criptomoedas – e mesmo depois da queda continua a dar a cara e respostas no mínimo inusitadas. Ao estilo de outros empreendedores, nunca se coibiu de assumir o papel do vilão, ciente de que isso lhe conferia mais atenção, chegando mesmo a dar respostas infantis e despropositadas a quem lhe tentava fazer perguntas sérias sobre a proveniência dos valores que ia discutindo. Dognhwan Kim, da Blitz Labs ouvido pelo Financial Times, refere que Do Kwon foi durante muito tempo um ‘líder de culto bem sucedido’ mas que hoje é um dos ‘homens mais odiados da Coreia do Sul’. 

A adensar toda a trama surgem notícias de que, antes da criação da Terra, Do Kwon foi responsável pela Basis Cash, uma outra stablecoin que acabou por ruir – a reação do sul coreano às perdas nos mercados não parecia contudo muito empática; ouvido num podcast disse recentemente que o “entretém” ver cair os 95% dos projectos de cripto que falham. Noutras notícias dá-se conta de que Do Kwon fechou as suas empresas na Coreia do Sul, estando agora na Singapura. Confrontado com a possibilidade de enfrentar processos tanto na Coreia como em Singapura, Kwon diz que não lhe interessa o que lhe acontecerá mas quer garantir a continuidade do projecto.

Risco sistémico vs Regulação

Um dos maiores méritos anunciados das cripto é o facto de serem descentralizados, mas, se este argumento poderia indicar que o crash de uma moeda não influenciasse as demais, a verdade é que olhando ao mercado verifica-se que essa não é a realidade. O crash da Luna foi acompanhado por uma perda de valor global de todo o mercado, com a Bitcoin, por exemplo, a recuar para valores abaixo dos 30 mil dólares, perto do valor que tinha no início do ano 2021. E se estes números podem parecer impactantes, importa lembrar a crescente aceitação institucional da moeda ao longo do globo. A Bitcoin tornou-se recentemente moeda oficial também na República Centro Africana depois de ter assumido esse papel em El Salvador (curiosamente Bukele reduziu os seus tweets sobre o tema durante a crise), apesar de a ausência de regulação e a sua natureza a manter um activo altamente volátil.

A descida global das criptomoedas não pode ser isolada do estado global dos mercados financeiros, que se relaciona de sobremaneira com a confiança que os investidores depositam em certos produtos. Perante a queda de uma stablecoin, os investidores parecem estar a migrar as suas posições para produtos com menor risco associado, desvalorizando assim o mercado das cripto e revelando de certa forma o novo perfil do mercado, mas esta não é a única razão. 

O perigo da inflação que tem dominado todo o mundo e fez com que a reserva federal aumentasse as taxas de juro, o que fez também abrandar sobretudo os investidores institucionais envolvidos no mercado. Paralelamente a tudo isto, retoma-se o debate sobre a regulação que traz sempre consigo alguma incerteza sobre o futuro do mercado que já vale mais de 2 biliões de dólares.

No rescaldo do colapso desta moeda, Gary Gensler, responsável do regulador SEC, reiterou que os investidores a retalho não estão protegidos a investir na maioria dos activos cripto, lembrando que em apenas três semanas “um complexo das cripto foi dos 50 mil milhões de dólares de valorização até ao 0”, referindo-se ao caso da UST. Mas este não foi o único sinal de que regulação pode estar a caminho, e este caso pode ter acelerado esse processo. 

Francois Villeroy de Galhau governador do Banco de França, disse recentemente, numa intervenção sobre o papel e as políticas para o euro no controlo da inflação, que “os activos cripto podem disromper o sistema financeiro internacional se não forem regulados, supervisionados e inter-operados de forma consistente e apropriada entre as várias jurisdições”. E Fabio Panetta, membro do conselho de https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração do Banco Central Eruopeu, usou o exemplo da UST para numa conferência sobre o euro digital dizer que “é uma ilusão acreditar que instrumentos privados podem funcionar como dinheiro quando não podem ser convertidos em dinheiro em qualquer momento”.

Sobre a proposta de regulação do lado europeu, também um membro do Centre for European Policy Studies in Brussels, Karel Lannoo, escreveu recentemente no Financial Times alertando para o facto de a forma como a União Europeia se prepara para legislar poder deixar os consumidores vulneráveis no mercado global, por falta de clareza nos instrumentos. Para Karel, a melhor regulação deste mercado passaria por uma integração destes activos na legislação sobre outros instrumentos financeiros, no caso das criptomoedas, e no enquadramento dos NFTs nas leis de propriedade intelectual; o que agora é proposto gera, segundo refere, uma miríade de problemas que podem pôr em causa o sucesso do pacote legislativo e afastar potenciais usos inovadores e interessantes da tecnologia.

Conduzindo o seu artigo para um apelo a um consenso internacional na regulação das cripto, Karel Lanoo termina dizendo que o mais importante é “informar os consumidores sobre os riscos de investir em cripto, e a necessidade de distinguir entre esquemas fraudulentos e esquemas bem intencionados”, a ponte certa para voltarmos a falar do caso que nos trouxe aqui. 

O renascimento da Luna

Semanas depois do rebentamento de mais uma bolha das cripto – e quando tudo o fazia prever que a Luna pudesse não voltar –, uma proposta de Do Kwon para a criação da Luna 2.0 foi aprovada com 65% dos votos da comunidade. A nova moeda tomará o nome da já existente, enquanto esta assumirá o nome de Luna Classic; para arrancar o projecto será feita uma distribuição gratuita do novo token, de acordo com a proporção especificada na proposta escrita por Do Kwon e votada pela comunidade. Entre os pressupostos desta distribuição, está um congelamento temporário de 70% destes activos durante pelo menos dois anos, para que os investidores não corram a levantar o dinheiro e façam colapsar de novo o sistema.

Mais uma vez, esta proposta não surgiu sem críticas desde a sua apresentação. Changpeng Zhao, CEO da Binance e um dos grandes perdedores, revelou ser contra a proposta por em seu entender não conferir valor à nova moeda. CZ, como é conhecido, chamou ao desfecho fork (um fork é como se fosse um desvio do caminho inicial) e, embora Do Kwon insista que se trata de uma nova moeda e uma nova chain, será difícil não ver esta opção como tal.

De resto, também o criador da Doge Coin, Billy Markus, não se coibiu de comentar com palavras assertivas sobre a proposta, chamando-lhe uma estupidez e dizendo que basicamente está a tentar atrair mais investidores de retalho para pagar aqueles que defraudou na primeira vez, e aproveitando para dizer que Binance também teve a sua parte de culpa ao listar os activos que colapsaram e que se quer fazer parte da solução deve começar por não aceitar esta nova versão.

Em suma, este caso mostra como na ausência de supervisão, regulação e de uma investigação séria e competente sobre os princípios de funcionamento destes instrumentos financeiros, o risco de investir neles aumenta exponencialmente.

Não obstante, é importante que perante estes momentos – em que o nome da blockchain enquanto tecnologia é arrastado nas espirais de desvalorização – se faça um ponto de distinção. A utilização do sistema para a emissão de criptomoedas fora de qualquer regulação e transacionáveis nas principais plataformas de compra e venda não é o único uso possível e expectável desta tecnologia. Os debates que têm acontecido mostram alguns usos interessantes da blockchain, em áreas como a energia, por exemplo. Por outro lado importa lembrar que as criptomoedas não são o único tipo de dinheiro digital existente, e que no futuro próximo, como ficou explicito nos planos da União Europeia, moedas como o euro digital deverão estar para chegar.

Autor:
26 Maio, 2022

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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