O Clubhouse é o ‘Web Summit’ das aplicações móveis

O Clubhouse é o ‘Web Summit’ das aplicações móveis

19 Fevereiro, 2021 /

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O Clubhouse não é especialmente inovador do ponto de vista tecnológico, mas antes um caso de sucesso de marketing e design explorando as potencialidades do momento. O advento dos directos e da voz nas redes sociais já se vinha a pronunciar como um movimento de fundo.

Pelas redes sociais parece ser unânime que o clima anda tenso. As discussões estão cada vez polarizadas e fugir para um rápido “eu tenho razão, todos os outros estão errados”, sem espaço para ouvir os argumentos de terceiros, racionalizá-los e confrontar com as nossas próprias convicções. A velocidade dos feeds, o design das plataformas que pede respostas imediatas, a tendência inata para a proliferação de desinformação, o carácter viral das redes, a falta de literacia digital, a polarização por vezes inconsciente de posições, as bolhas dentro das quais opiniões semelhantes se isolam, entre outros aspectos directos ou indirectos (como a necessidade de confinamento a que estamos sujeitos), têm levado a uma espécie de saturação das habituais plataformas digitais.

É nesse ambiente que surge o Clubhouse e todo o entusiasmo em seu redor. Lançado em Abril de 2020, o Clubhouse é uma aplicação disponível somente para iOS (ou macOS 11 com processador M1) e por convite, cuja história se assemelha à de outros empreendimentos de Sillicon Valley. Desenvolvida pela empresa Alpha Exploration Co., a aplicação/rede social é resultado da união de esforços de Paul Davison, que passou pela Google como estagiário e fundou a HIghlight, rede social que acabou vendida ao Pinterest, e de Rohan Seth, também ele empreendedor, fruto de uma parceria informal que terá começado quando ambos estudavam em Stanford.

O que é o Clubhouse?

No Clubhouse, não há partilha de texto e a única fotografia é a do perfil de cada utilizador; há seguidores e um feed que, em vez de mostrar conteúdo, mostra todas as salas que estão abertas em dado momento e às quais os utilizadores de podem juntar. Cada uma tem um tema e pessoas que são oradoras ou espectadoras, podendo trocar entre si mediante autorização dos anfitriões de cada sala. Aquando do registo no Clubhouse e depois nas definições da aplicação, é possível definir os tópicos que mais nos interessam e, é dessa forma, que a app seleciona o conteúdo sugerido pelo seu algoritmo, que surge como uma espécie de programa conferência – uma lista das conversas agendadas, com os respectivos horários, informação dos oradores e uma breve descrição. É possível, de imediato, sinalizar os eventos que nos interessam para sermos alertados pouco antes de eles se iniciarem. Por último, as conversas nunca ficam gravadas, pelo que não é possível recuperá-las mais tarde num qualquer arquivo, a não ser que um dos participantes opte por de forma manual registar o encontro.

Há quem diga que o Clubhouse surfa a onda dos podcasts, um formato assíncrono, tornando a experiência de escuta mais interactiva e imediata. Mas outra analogia possível é com o Web Summit ou outra conferência tecnológica com o mesmo perfil. Na verdade, e se algum dos leitores já visitou o Web Summit, as semelhanças são muitas. Primeiro, a opção de seleccionar os tópicos que nos interessam é tudo semelhante ao que a aplicação do evento. Depois, o separador onde está o “programa das festas”. Tal como no Web Summit, as conferências são muitas, diversificadas e sobrepõem-se umas às outras nos mesmos horários. É difícil escolher o que ver e cria-se uma ilusão de que há muita oferta que queremos consumir, quando, na verdade, existe uma alta probabilidade de acabarmos em conversas genéricas a que não prestamos assim tanta atenção. Por último também, também o modelo estruturalmente elitista tem as suas semelhanças. O Web Summit é um evento restrito do ponto de vista do acesso das pessoas – é preciso um bilhete que não é propriamente acessível, um convite. uma acreditação de imprensa, ou os famosos bilhetes a preço bastante reduzido mediante inscrição em sites e mecânicas, tal como o Clubhouse no ambiente digital

F.O.M.O. ou o triunfo da reputação

A aplicação caracteriza-se por promover a interação por áudio e em tempo real, em vez do habitual texto diferido comum na maioria das redes socais, e esse tem sido o principal ângulo da sua promoção, contudo não resume a história do seu sucesso. O seu primeiro grande salto nessa direção, terá sido com o investimento de um dos mais conceituados fundos de investimento de Silicon Valley. A Andressen Horowitz (a16z) investiu 12 milhões de dólares poucas semanas depois do seu lançamento da aplicação, valorizando-a em cerca de 100 milhões de dólares quando ainda tinha pouco mais do que os fundadores como funcionários e cerca de 1500 utilizadores activos. Entretanto, a empresa já vale mais de mil milhões de dólares. A aplicação ganhou tracção no último mês em Portugal, mas também lá por fora, com as aparições de Mark Zuckerberg ou Elon Musk – ou uma experiência de podcast em directo do Público –, a serem bons exemplos da estratégia de crescimento da aplicação, para além dos níveis de procura gerados pela estratégia de escassez usada anteriormente por outras aplicações semelhantes.

Não é a primeira vez que uma rede social nova surge e gera níveis de entusiasmo como o Clubhouse, mas são poucas aquelas que conseguem manter-se. Todos se recordarão de plataformas como o Ello, o Vero, o Google+ (também inicialmente por convite e com números que pareciam prever sucesso), o Snapchat ou até mesmo o TikTok. Se o Clubhouse veio para ficar ou não, ainda não se sabe – e, em boa verdade, pouco importa no imediato. Contudo, a história do aparecimento meteórico desta aplicação permite-nos um olhar aprofundado sobre as dinâmicas de sucesso e valorização das redes sociais e das tecnologias no geral.

Todos os dias surgem dezenas de projectos e ideias para novas redes sociais. Um pouco por todo o mundo, programadores e entusiastas esboçam e desenvolvem novas formas de interação online que pretendem explorar o potencial tecnológico para nos pôr a interagir de uma forma diferente. Por todo o lado surgem protótipos de redes sociais para todos os gostos e feitios: open-source, descentralizadas, federativas, privadas, de texto, de áudio, o que seja. Basta passar os olhos pelo Product Hunt, site com compila alguns dos novos projectos tecnológicos, ou seguir de perto as comunidades interessadas em software, para se ter uma ideia do ritmo de surgimento destes produtos e do seu perfil de criação.

A referência ao investimento inicial na aplicação da Alpha Exploration Co. não é, portanto, um dado menor nesta interessante história. Como diz o crítico de tecnologia Benedict Evans – e como apontam outras análises feita à aplicação ao longo do tempo –, a articulação entre o interesse do círculo mais fechado de Sillicon Valey e a dinâmica de convites para os primeiros utilizadores fez com que esta aplicação fosse integrando uma rede de pessoas que lhe foram conferindo interesse e visibilidade. Tanto por bons, como por maus motivos, a aplicação foi sendo notícia especialmente nos Estados Unidos e entrando no radar das publicações sobre tecnologia.

O primeiro grande momento mediático da aplicação terá sido pouco depois da sua fundação, em Julho de 2020, quando uma série de investidores se juntou num grupo privado para discutir se os jornalistas não teriam demasiado poder na chamada “cancel culture”. O caso fez notícia e gerou polémica, especialmente envolvendo a jornalista do New York Times Taylor Lorenz, que fora tema de conversa dias mais tarde, por no entender de alguns dos participantes da conversa estar a jogar “a cartada da mulher” ao vitimizar-se numa discussão sobre a aplicação. Contudo, nada disto fez travar o sucesso da aplicação que usando o “fear of missing out” como técnica de persuasão foi acumulando utilizadores que, em conjunto, iam gerando comunidades.

Um dos grupos sociais que o Clubhouse procurou agarrar foi a comunidade negra que, como escrevem publicações internacionais, fez com que a aplicação não se transformasse simplesmente num Linkedin com áudio. “O Clubhouse tem feito um trabalho incrível de abraçar a comunidade negra como investidores da app e ajudar-nos a construir uma comunidade na plataforma”, disse Felicia Horowitz, esposa do investidor Ben Horowitz, numa entrevista à CNBC, inserida num artigo sobre como a comunidade negra tem impulsionado o Clubhouse.  Felicia e Chris Lyons são citados na peça como os impulsionadores desse abraço à comunidade negra de criativos que migrou em força para as conversas de áudio e lhes deu um uso particularmente. Mas também Naithan Jones, que a par de Chris Lyons é um dos negros do board da a16z, mereceu uma menção por parte de Horowitz, num tweet entretanto apagado, que referia os dois foram responsáveis pelo maior número de pessoas convidadas para a aplicação. A comunidade negra terá não só aderido à aplicação nos seus primórdios, gerando alguns dos debates mais interessantes e cativantes, como também explorado formas criativas de explorar a aplicação. Entre os famosos que passaram pela app destacam-se por exemplo os rappers Meek Mill ou 21 Savage. Mas o exemplo mais paradigmático é o de Bomani X, um artista que se juntou à aplicação e se tornou em Dezembro o ícone (literalmente) desta. “O Clubhouse coloca membros de sua comunidade como ícone da aplicação, trocando a foto a cada algumas semanas. O Bomani não é o primeiro negro a ser o ícone da aplicação, mas foi o primeiro desde que a app chegou à App Store da Apple em Setembro”, comentou Felicia Horowitz.

As dores de crescimento

De base tecnológica e orientado também por algoritmos, não deverá demorar muito até o Clubhouse começar a sofrer dos mesmos problemas que hoje encontramos pelas redes sociais mais comuns e que enunciámos no início deste texto. Quando o Facebook começou há cerca de uma década e tinha poucos utilizadores ainda, a rede social não se via a braços com problemas como a desinformação ou a influência eleitoral, não se prevendo que essas questões, por exemplo, pudessem ser desafiantes para as plataformas online de génese social como agora, anos mais tarde, estamos a ver.

O Clubhouse surge num panorama em que já se sabe todos os problemas que os ditos média sociais podem representar, e por isso os problemas parecem ter sido ainda mais rapidamente detectados. Este sucesso aparentemente rápido do Clubhouse pode ser, na verdade, o seu grande inimigo. Há vários exemplos das dores de crescimento desta aplicação, que se devem em boa parte a uma ascensão num curto espaço de tempo – e ao facto de a arquitectura da rede social ser centralizada, provocando uma maior possibilidade de colisões entre diferentes comunidades, algo que não acontece por exemplo no Discord. Veja-se, por exemplo, a história do falso Brad Pitt que, durante várias horas, esteve à conversa na aplicação sobre alterações climáticas, enganando inúmeras pessoas, como alegadamente Iva Domingues, que, achando tratar-se do verdadeiro actor, terá tomado um tom sério no seu discurso e agradecido a oportunidade de poder estar ali a debater um assunto que lhe é caro. Como é que o Clubhouse irá garantir que quem fala e participa é a pessoa autêntica e não alguém que quer, para fins lúdicos ou maliciosos, aproveitar-se das fragilidades da plataforma? Porque é que o Clubhouse não ponderou esse problema previamente com um sistema eficiente de verificação de contas de figuras públicas? E este é apenas um pequeno exemplo.

A moderação é outro ponto que vale a pena adereçar. Redes do Facebook ao Twitter mostraram-nos ao longo dos anos mais recentes que os algoritmos não são bons moderadores, que a inteligência artificial não está (ainda?) suficientemente desenvolvida para substituir as pessoas nessa tarefa e que, por isso, são necessárias equipas humanas com resposta rápida e capazes de seguir critérios objectivos e equilibrados. Como é que o Clubhouse conseguirá manter-se um espaço seguro para todos os internautas, sem pornografia, discurso de ódio, teorias da conspiração ou desinformação? Funcionando a aplicação por convite, como é que se impede que comunidades como a dos anti-vacinas se juntem rapidamente à plataforma, através do envio de convites de uns para os outros? Estas são duas questões que têm ganho espaço na imprensa internacional com várias denúncias de que a aplicação criou espaço para uma rápida disseminação de conteúdo falso, nomeadamente sobre as vacinas para a Covid-19. Contudo, aqui interessa também referir um ponto a favor da aplicação – por só permitir áudio em tempo real, a aplicação impede que se reencaminhem mensagens em massa, para vários grupos ao mesmo tempo; nesse sentido a aplicação sujeita os utilizadores às leis da física real, a uma necessidade de estar no tempo e no espaço para propagar determinada mensagem.

A dificuldade de moderação da aplicação tem sobretudo a ver com o seu formato e o tipo de canais em que as comunidades se encontram. Como é que se modera o áudio e como é que se moderam salas que não ficam gravadas nem arquivadas e onde quase não há texto ou outro formato mais facilmente moderado? A moderação do Clubhouse será um problema com que a aplicação terá de aprender a lidar mas que, por agora já criou, algumas questões. Recentemente um utilizador com o nome Marc Cuban (provavelmente tentando fazer-se passar por Mark Cuban) criou uma sala subordinada ao tema Are Black women crap in bed?”, onde se chegaram a juntar mais de quatro mil pessoas. É nesta relação entre a falta de moderação e a arquitectura que promove a centralização dos utilizadores em grandes salas torna o modelo potencialmente mais perverso e perigoso que o de outras apps similares, onde as comunidades se encontram em servidores isolados.

Outro ponto que tem sido amplamente divulgado como promoção da app é o facto de ter conseguido, durante algumas horas escapar ao poder da Grande Firewall da China, estando por diversas horas disponível livremente para todos os utilizadores do grande país asiático. A permissão terá levado cerca de sete mil pessoas a juntarem-se em conversas sobre o regime chinês, mas, mais uma vez é preciso perceber em que isto se traduz de facto num contexto mais amplo. O Clubhouse esteve disponível na China durante horas antes de ser bloqueado, não porque tenha desenvolvido esforços para que ultrapassar a barreira da internet chinesa. Olhando para o trabalho levado a cabo por outras apps percebe-se como este destaque acaba por resultar do mesmo entusiasmo inicial. Estima-se que o Telegram tenha 2,7 milhões de utilizadores na China e a própria aplicação de jogos, Steam, tenha mais de 30 milhões de utilizadores, mantendo-se livre da censura do Governo chinês – exemplos que permitem aos internautas chineses manter-se ligados ao mundo exterior mais do que por uma mera questão temporal. O caso da Steam tem sido particularmente interessante de acompanhar pela forma como a app criou uma versão local na China que, ao contrário de outras, não submete o seu conteúdo à censura chinesa. Mas também o caso do Telegram é interessante, uma vez que a app tem feito do contorno às restrições impostas por estados uma das suas bandeiras, a chamada “Resistência Digital”, promovendo diversas formas de contornar os bloqueios, como o recurso a servidores proxy e outras formas de esconder o tráfego que impeçam os bloqueios.

Inovador?

Por fim, o Clubhouse não é inovador do ponto de vista tecnológico, mas antes um caso de sucesso de marketing e design explorando as potencialidades do momento. O advento dos directos e da voz nas redes sociais já se vinha pronunciar como um movimento de fundo – veja-se, por exemplo, as iniciativas do Twitter para o implementar, o sucesso do Discord ou até mesmo da Twitch. O que a aplicação fez de forma única foi criar um produto em que essa interação parece natural, apetecível, potencializando o trunfo da voz, numa altura em que globalmente muitos continuamos confinados, com pouco a preencher as nossas agendas e vontade de estar com o outro, com bastante dinheiro para permitir o desenvolvimento e a promoção. O sucesso do Clubhouse é mais do que uma questão tecnológica, um fenómeno análogo ao Instagram – uma aplicação que se destaca pela forma como integra as tecnologias no seu produto mais do que explora novas tecnologias; recordemos que, por exemplo, as Stories são uma adaptação de um produto desenvolvido pelo Snapchat.

Em abono da verdade, e de uma perspectiva crítica mais inclusiva da tecnologia, é importante que se diga que o que não faltam são aplicações que permitem debates à distância e por via de áudio – do Discord, com servidores comunitários, ao Telegram, com a mesma lógica de drop-in audio, até aplicações mais simples como o Teamspeak ou o Mumble. O sucesso do Clubhouse não deve ser visto contra si mesmo, mas a aceitação social da app a este ritmo tem muito que se lhe diga, especialmente em função do que não se diz sobre as demais aplicações tecnológicas. O triunfo da reputação de uma aplicação sobre a dimensão do seu mérito do ponto de vista tecnológico ou do seu compromisso com determinados valores (como a inclusão, por exemplo, onde o Clubhouse escolheu escalar deixando de fora utilizadores de outros sistemas operativos que não o iOS) são importantes lições sobre a forma como enquanto sociedade avaliamos, e decidimos sobre tecnologia. Um exemplo que contraste de uma forma paradigmática é o da FaceApp. Se o Clubhouse mereceu todos os elogios e uma aceitação rapidíssima, mesmo que o regulador italiano tenha revelado dúvidas sobre a sua gestão de dados, a aplicação associada a um programador russo foi alvo de um cepticismo e desconfiança iniciais em nada comparável a mais esta criação de Sillicon Valley – isto numa altura em que a própria União Europeia procura estratégias de dissolução desta concentração de poder tecnológico neste pequeno lugar norte-americano.

Com cerca de 8 milhões de utilizadores à data, poderá ser o Clubhouse apenas uma moda passageira enquanto vivemos a braços com esta pandemia e, por isso, mais distantes socialmente? Poderá o Clubhouse não aguentar uma cópia ou aquisição por parte de Zuckerberg? Poderá o formato de áudio em directo tornar-se padrão nas redes sociais que hoje utilizamos (exemplo do Twitter Spaces) como aconteceu com as Stories?

João Gabriel Ribeiro contribuiu para este artigo

Autor:
19 Fevereiro, 2021

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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