“O meu nome é Nemonte Nenquimo. Sou uma mulher Waorani, mãe e líder de meu povo. A floresta amazónica é a minha casa. Estou a escrever esta carta porque o fogo ainda está forte. Porque há corporações a derramar petróleo nos nossos rios. Porque os mineiros estão a roubar ouro (como fazem há 500 anos) e a deixar para trás poços abertos e toxinas. Porque estão a destruir a floresta primária para que o gado possa pastar, as plantações possam ser cultivadas e o homem branco possa comer. Porque os nossos anciãos estão a morrer de coronavírus, enquanto vocês planeiam os vossos próximos movimentos para cortar as nossas terras para estimular uma economia que nunca nos beneficiou. Porque, como povos indígenas, estamos a lutar para proteger o que amamos – o nosso modo de vida, os nossos rios, os animais, as nossas florestas, a vida na Terra – e é hora de vocês nos ouvirem.”
É assim que começa a carta dirigida aos “prezados Presidentes dos nove países amazónicos e a todos os líderes mundiais com responsabilidade pelo roubo da nossa floresta tropical”, escrita por Nemonte Nenquimo, a primeira mulher líder da organização Waorani da província de Pastaza, no Equador Amazónico, co-fundadora da organização indígena sem fins lucrativos Ceibo Alliance e uma das 100 pessoas mais influentes do mundo para a revista Time.
No texto, publicado no The Guardian, Nemonte parte do exemplo da devastação da Amazónia para chamar a atenção dos líderes mundiais para um “planeta inteiro em apuros, porque vocês não o respeitam”. Num tom emocionado, cheio de significado e ensinamentos, Nemonte começa por explicar como a acção do homem na floresta tropical alterou até o significado da palavra que na sua língua, WaoTededo, usam para se referir ao estrangeiro, “o forasteiro, o estranho”, o destinatário desta carta: “Essa palavra é ‘cowori’. E não precisa de ser um palavrão. Mas vocês transformaram-na. Para nós, a palavra passou a significar (e de uma forma terrível, a vossa sociedade passou a representar): o homem branco que sabe muito pouco pelo poder que exerce e pelos danos que causa.”
Fazendo uso da plataforma que é um dos maiores jornais britânicos e do mundo, Nemonte reflecte que talvez seja a ignorância desse “saber pouco” que faz com que seja tão fácil destruir sem culpa: “Para os povos indígenas é claro: quanto menos se sabe sobre alguma coisa, menos valor essa coisa tem e mais fácil é destruí-la. E por fácil quero dizer: sem culpa, sem remorsos, sentindo até justiça em fazê-lo. E é exatamente isso que vocês estão a fazer connosco, como povos indígenas, com os nossos territórios de floresta tropical e, em última instância, com o clima do nosso planeta.”
“Levámos milhares de anos para conhecer a Amazónia. Para entender os seus caminhos, os seus segredos, para aprender como sobreviver nela e prosperar com ela. E para o meu povo, os Waorani, só vos conhecemos há 70 anos (fomos ‘contactados’ na década de 1950 por missionários evangélicos americanos), mas nós aprendemos rápido e vocês não são tão complexos quanto a floresta tropical.”
Em fevereiro do ano passado, Nemonte Nenquimo foi responsável por uma acção judicial contra o Governo equatoriano em que o acusava de não ter consultado adequadamente os Waorani antes da decisão de disponibilizar o seu território para potencial exploração petrolífera. Nos últimos anos, o Equador dividiu grande parte da sua porção da Amazónia em blocos para arrendar os seus direitos minerais num leilão internacional. Um dos blocos incluía terras Waorani e em 2018, o Governo retirou o território da comunidade do leilão, mas disse que a região continuava sujeita a futuras explorações. Numa decisão judicial histórica, em abril de 2019, o tribunal considerou que o Governo não podia mesmo leiloar as suas terras sem o seu consentimento. Nemonte esteve na frente de um marcha que inundou a cidade de Puyo em jeito de celebração e de reivindicação do direito de autogoverno. Na altura, o veredicto que protegeu a casa ancestral dos Waorani no Equador da destruição imediata trouxe ondas de esperança às comunidades indígenas espalhadas de todo o mundo.
No The Guardian, Nemonte escreve com o tom de quem vive realmente a sua luta, depois de vitórias como essa, mas de derrotas avassaladoras como os piores incêndios de sempre na Amazónia brasileira, como as políticas de Bolsonaro que estão a acelerar a desflorestação local, como o devorar da floresta pela indústria e petrolíferas como que “a fundo perdido“, e como a insegurança de tradições e ancestralidades, comunidades e ecossistemas, criada não só pelas alterações climáticas que assolam o mundo e pela mão industrial humana dos “cowori” mas por uma pandemia que afecta também o mundo no geral, mas as zonas recônditas da floresta tropical em particular.
“Quando vocês dizem que as empresas petrolíferas têm novas tecnologias maravilhosas que podem retirar o petróleo de debaixo das nossas terras como os beija-flores sorvem o néctar de uma flor, sabemos que estão a mentir porque vivemos junto ao rio onde fazem os derrames. Quando dizem que a Amazónia não está a arder, não precisamos de imagens de satélite para provar que estão errados; estamos a sufocar com o fumo das árvores que os nossos antepassados plantaram há séculos. Quando vocês dizem que estão à procura de soluções para a crise climática com urgência, mas continuam a construir uma economia mundial baseada na extração e na poluição, sabemos que estão a mentir porque somos quem está mais próximo da terra e os primeiros a ouvir os seus gritos.”
Tal como no processo de fevereiro de 2019, Nemonte acusa o mundo que “forçou a sua civilização” sobre os povos indígenas de “em todos esses anos de roubar, roubar e roubar das nossas terras” não ter tido “coragem, nem curiosidade, nem respeito para nos conhecer. Para entender como vemos, pensamos e sentimos, e o que sabemos sobre a vida na Terra.”
No final, despede-se dizendo que esta carta tem a ver com “milhares e milhares de anos de amor por esta floresta, por este lugar. Amor no sentido mais profundo, como reverência. Esta floresta ensinou-nos a caminhar com leveza e porque a ouvimos, aprendemos e defendemos, ela deu-nos tudo: água, ar puro, alimentação, abrigo, remédios, felicidade, sentido. E vocês estão a roubar tudo isto, não apenas de nós, mas de todos no planeta e das gerações futuras.”
Nesta sua lição, que reconhece, apesar de tudo, não ser suficiente para ensinar tudo o que o mundo precisa de saber — porque não há professora como a floresta — Nemonte Nenquimo termina com o mais lógico (e falhado) ensinamento de todos. É que se tivéssemos respeitado a Terra, ela não precisaria de ser salva.
“É madrugada na Amazónia, pouco antes do raiar do sol: um momento para partilharmos os nossos sonhos, os nossos pensamentos mais fortes. E é aqui que vos digo: a Terra não espera que vocês a salvem, ela espera que vocês a respeitem. E nós, indígenas, esperamos o mesmo.”
A carta de Nemonte surge na mesma altura em que no New York Times se publica uma série de opinião dedicada à floresta Amazónica, onde se podem encontrar diversos textos, entre os quais um de Sónia Guajajara, entrevistada para o Shifter a meio da pandemia:
Sónia Guajajara: “A ancestralidade sempre ensinou que o sentido da vida é o coletivo”