Conta-me Como Foi: uma bonita história familiar com os anos 80 no fundo

Conta-me Como Foi: uma bonita história familiar com os anos 80 no fundo

1 Maio, 2020 /
Conta-me Como Foi (foto via RTP)

Índice do Artigo:

A 6ª temporada de Conta-me Como Foi terminou no sábado passado. Série volta em Outubro e até lá fica no RTP Play. Fazemos uma crítica sem spoilers.

A RTP gravou 52 novos episódios de Conta-me Como Foi e decidiu dividi-los em várias temporadas. A 1ª delas – a 6ª se contarmos as anteriores – terminou no último sábado de Abril. O episódio era centrado no casamento de Isabel e Inácio. Sim, parece cliché um casamento para o final de temporada, mas este episódio – que não vamos detalhar para não criarmos spoilers – reuniu todos os ingredientes que fazem de Conta-me Como Foi uma das melhores séries familiares de sempre.

Conta-me Como Foi voltou. A série que começou por retratar a vivência social nos anos 1960 e 1970, durante a ditadura de Salazar, situa-se agora em 1984. Para esta nova temporada (a primeira de três), a RTP conseguiu a proeza o elenco original (incluindo dois dos melhores actores da nossa praça, Miguel Guilherme e Rita Blanco) – o elenco está mais velho, acompanhando o envelhecimento natural das personagens que interpretam.

Comecei a ver Conta-me Como Foi em serões em família, depois do jantar. Eu curioso por conhecer como era aquele Portugal de Salazar e de Marcelo Caetano; os meus pais empolgados por recordarem os tempos de infância. Conta-me Como Foi é uma série que consegue captar toda a atenção numa casa, por diferentes motivos e, independentemente do motivo pelo qual a série nos puxa, há uma ou outra personagem com a qual nos relacionamos mais. Para o meu pai, seria Carlitos, que tinha na série a mesma idade que ele teria nos anos 1960; se calhar, a minha mãe revia-se mais nas personagens femininas e nas suas temáticas.

Já eu relacionava-me também com as histórias de Carlitos, um miúdo de 8 anos traquina, intrometido mas ainda muito inocente. Imaginava-me, não a rever a minha infância, mas a viver uma infância que teria sido tão mais difícil que a minha. Os comentários dos meus pais enquanto assistíamos à série iam alimentado esse imaginário, bem mais real para eles. Mais de dez anos depois, tenho eu 27 e Carlos tem 24. Crescemos os dois e, apesar de não nos termos acompanhado nesse crescimento, foi bom revê-lo e rever toda a família Lopes. Carlos (Luís Ganito) já não vive em casa dos pais e está a dar os primeiros passos no estabelecimento da sua carreira e vida familiar. Tem um pequeno apartamento no Bairro Alto, em Lisboa, trabalha como freelancer numa agência de publicidade e experimentou jornalismo através de uma rádio e de crónicas num jornal. Tem dúvidas e medos normais de quem está a começar uma vida adulta.

São receios que um jovem adulto em Portugal de 2020 também sente e com os quais se identifica: o futuro incerto, as decisões que começam a ser decisivas, as crises que tornam ainda mais difícil o que já é difícil e agora a independência no verdadeiro significado da palavra atrasada. Assim, Conta-me Como Foi até poder ser terapêutico: olhamos para os nossos problemas e colocamo-los em perspectiva com os problemas das personagens numa outra época, relativizando-os com a ajuda das “lições de vida” que o narrador da série (Carlos) nos vai dando.

Uma série familiar com história

A série recomeça na passagem de ano para 1984. Passa pela crise económica que avassalou Portugal naquele ano e trouxe o FMI, pela problemática da heroína que deixou vários jovens dependentes, pelas mortes de Joaquim Agostinho e António Variações, pela promessa da CEE (hoje União Europeia), pelo esquema da Dona Branca e por outros temas que marcaram aquele ano. Contudo, o contexto histórico é apenas o pano de fundo da série. Conta-me Como Foi não é uma série histórica ou um registo documental de uma determinada época. Apesar do contexto temporal em que se desenrola, é acima de tudo uma série familiar, centrada na família Lopes. E nisto é do melhor que há.

Conta-me Como Foi consegue escapar-se aos clichés e consegue não cair na novela fácil. As histórias que se criam entre as personagens não são rebuscadas mas há uma qualquer energia ou naturalidade que os actores imprimem que faz com que, por um lado, os laços entre irmãos, familiares e amigos pareçam muito fortes e, por outro, toda a narrativa faça sentido. Não há aquele drama espalhafatoso a soar a falso, e somos capazes de ver as melhores relações entre irmãos, pai e filho, mãe e filha… da televisão portuguesa. É uma série que nos ensina muito sobre a família e sobre as nossas próprias relações.

Toni (Fernando Pires) já casado, divorciado e com um filho chamado Simão, depois de ter imigrado para Berlim e de ter regressado ao país. Isabel (Rita Brutt) encontrou em Inácio o seu amor depois de Victor, o padre com quem se casara, ter falecido. Enquanto o irmão mais velho se tornou jornalista, a mais velha continua a perseguir o sonho de ser actriz, agora ao lado de um magnata daqueles tempos. Já António (Miguel Guilherme) e Margarida (Rita Blanco) adoptaram uma miúda de 13 anos, Susana – era preciso uma mais nova na série com dois ou três amigos para criar narrativa. E a avó Hermínia (Catarina Avelar) continua a viver lá em casa, olhando agora por Susana. A família Lopes mudou de bairro e, com essa gincana, ‘despachou-se’ as personagens secundárias da antiga temporada. Há agora o café do Zé, um primo de António regressado de França, e da Amparo, a mercearia do Caetano e outras novas presenças habituais na série, que vão aparecendo de vez em quando para dar vida ao bairro.

Há outros regressos interessantes a par do elenco principal, como Emídio, o grande amigo de infância de Carlitos, interpretado por Tiago Delfino, que prosseguiu a carreira de actor; e a rival de Nônô, a primeira namorada de Carlitos, interpretada por Filipa Louceiro.

Outro ponto muito forte são os cenários. Este novo Conta-me Como Foi é muito bonito. Não é fácil recriar um enredo que se passa há quarenta anos atrás numa Lisboa entretanto desenvolvida com o comércio e o turismo, especialmente com um orçamento baixo – cada episódio custa à RTP entre 80 e 100 mil euros, 10x menos que um episódio do original, Cuéntame… Como Pasó, ainda no ar e já com 20 temporadas. Se nas temporadas anteriores se optou por construir tudo em estúdio – o bairro e as ruas foram criados no estúdios da Edipim, na Zona Industrial da Abrunheira, em Sintra –, nestas novas temporadas só os interiores são em estúdio. Os exteriores foram filmados em zonas de Marvila, Ajuda e Benfica com a ajuda de planos fechados e objectos em primeiro plano, como automóveis, a esconder o que não se quer que se veja.

Deverão existir falhas que quem viveu em 1984 provavelmente vai detectar melhor que nós. Para nós, que até temos um olhar bastante atento a estas coisas, só encontrámos um erro num dos episódios que poderia ter sido evitado: numa cena filmada na zona da Bela Vista, em Lisboa, para fazer de conta que era a 2ª Circular mostra-nos carros que não existiam em 1984.

Inicialmente anunciada como uma única temporada de 52 episódios, o regresso de Conta-me Como Foi vão ser, afinal, três temporadas, com a primeira a ter terminado com 19 episódios. A família Lopes só vai regressar ao ecrã em Outubro, permanecendo em streaming na RTP Play. Os novos episódios de Conta-me Como Foi começam no primeiro dia de 1984 e só vão terminar em 1986, o ano de Cavaco Silva e da sua maioria absoluta. As primeiras cinco temporadas seguiram a família Lopes entre 1968 e 1974, tendo sido exibidas entre Abril de 2007 e Abril 2011. A produção pertence à SP Televisão, que também assegurou anteriores temporadas de Conta-me Como Foi.

Autor:
1 Maio, 2020

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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