Pergunta lançada para o ar: não sentiram que o Wrapped do Spotify este ano estava… diferente? Em comparação com 2024, o design apresentado foi mais bonito e colorido. Havia novas funcionalidades, e os dados apresentados também pareciam mais fidedignos em comparação com anos anteriores (pelo menos, batiam certo com os valores do last.fm). Se sentiram isso, parabéns: a vossa intuição não está errada. De facto, o Spotify colocou mais esforço no Wrapped 2025 e teve razões para isso.
2025 foi, para dizer o mínimo, um ano conturbado para a empresa sueca. A publicação do livro Mood Machine: The Rise of Spotify and the Costs of the Perfect Playlist, da autoria da jornalista norte-americana Liz Pelly (com quem o Shifter conversou para o número 7 da sua revista física), no primeiro trimestre de 2025, foi apenas a ponta do icebergue. Ao longo do ano, o Spotify foi-se vendo envolvido em múltiplas controvérsias, que precisava que os seus utilizadores esquecessem ao apresentar-lhes um Wrapped bonito e funcional: o investimento em cerca de 600 milhões de euros por parte de Daniel Ek, fundador do Spotify e CEO cessante da empresa (irá assumir o cargo de presidente executivo no final de 2025), na Helsing, uma empresa de software militar; os anúncios de recrutamento à ICE a rodar na aplicação; a promoção de música gerada por inteligência artificial; e claro, os “velhos” dilemas da plataforma de streaming sueca, acusada de não compensar dignamente os músicos nem revelar os contratos que tem com as principais editoras, e de desvalorizar a relação entre ouvintes e artistas
Apesar de tudo isto, o Wrapped 2025 voltou a confirmar que a sua lógica de capitalismo de vigilância disfarçado de marketing funciona. A lavagem de imagem resultou. Numa notícia publicada na Rolling Stone, é revelado que, nas primeiras 24 horas após o lançamento do Wrapped, o Spotify registou um aumento de 19% de interações face a 2024. E apesar de artistas como os King Gizzard & The Lizard Wizard ou os Xiu Xiu terem retirado a sua música desta plataforma de streaming em resposta às atividades da empresa, os valores indicam que esta cresceu em 2025. Se, em 2024 o Spotify deu lucro pela primeira vez, 2025 confirmou a tendência. No final do Q3, o Spotify aumentou em “dois dígitos” o número de planos de assinatura gratuitos e pagos, segundo a Variety. O resultado? Mais lucro que não é redistribuído pelos artistas cuja música alimenta o modelo de negócios da plataforma.
Mas se pensamos que ao abandonar o Spotify em prol de qualquer outra das plataformas de streaming – a Apple Music, o Youtube Music, a Deezer ou o Tidal – estamos a escolher uma opção mais ética… enganamo-nos. Usemos como exemplo a conivência com o genocídio em curso na Palestina. As ligações da Apple e da Google (dona do Youtube Music) a Israel e, por consequência, ao financiamento do genocídio e ocupação na Palestina, são conhecidas. O dono da maior acionista da Deezer, a Access Industries, também é um fervoroso apoiante de Israel. E nem o Tidal parece escapar a isto. Para além disso, sobra o Qobuz, que uns dizem ser a plataforma mais “ética” para ouvir música online, e há o método já clássico de apoiar artistas através da Internet, o Bandcamp— que, por sua vez, envolve outros dilemas.
Se, durante anos, o Bandcamp foi considerado a forma mais simples e eficaz de apoiar artistas independentes, as sucessivas vendas não a fizeram abandonar esse desígnio, mas abalaram a promessa. Lembram-se quando o Bandcamp foi vendido em anos consecutivos? Primeiro, em 2022, quando foi adquirido pela Epic Games, e depois em 2023 quando a Epic Games largou o Bandcamp à Songtradr. Ligaram-se os alarmes de que vinha aí o fim do Bandcamp.
Como escreveu Shawn Reynaldo na sua newsletter First Floor, a plataforma não só ainda está de pé e a funcionar, como também se consolidou ainda mais como a plataforma online “por defeito para a música independente”. Porém, como escreve o jornalista norte-americano baseado em Barcelona, nestes dois últimos anos as conversas sobre o Bandcamp passaram de “entusiastas” para pessimistas. E a ideia de criar uma “alternativa” ao Bandcamp tem sido levantada e, às vezes, até testada. Plataformas como a Nina Protocol, AmpWall ou Mirlo têm vindo à baila e ganho popularidade entre melómanos e músicos independentes. Contudo, em 2025, por meio de isto tudo, nenhuma plataforma ganhou tanta popularidade como a Subvert.
O que é a Subvert?
Iniciado em 2024, a Subvert é o projeto para uma plataforma que pretende ser uma alternativa/sucessora ao Bandcamp. Com uma nota: a Subvert irá funcionar como uma “cooperativa”, onde os apoiantes da plataforma – que incluem artistas e editoras – são também os donos desta e estarão envolvidos nas suas operações e decisões. Para Austin Robey, fundador, isto faz com que, na Subvert, quem tem o poder sejam as “pessoas” e não os “dólares”.
“Há decisões importantes em que todos os membros da cooperativa têm um voto”, conta Austin Robey, em entrevista ao Shifter por videochamada. Na prática, como explica, isto aplica-se desde a eleição do conselho administrativo da Subvert, do qual fazem parte artistas, editoras e ouvintes, até à aprovação de propostas especiais e de alterações à “constituição” da plataforma. Na prática, se os membros da cooperativa não gostarem do conselho de administração, têm o poder de o “despedir”, afirma Austin. Se houver a chance de vender a Subvert, os membros terão voto na matéria, e o mesmo aplica-se a oportunidades de financiamento. E assim sucessivamente, num misto de ideal anarquista com um toque de democracia representativa.
“A educação é um dos pilares de qualquer cooperativa e a Subvert tem a responsabilidade de educar os seus membros sobre o que significa os trabalhadores e os músicos serem donos dos seus meios de produção”
Para Catarina Miranda, mais conhecida como emmy curl, a Subvert é uma “luz ao fundo do túnel” para artistas independentes. Seduzida pelo modelo de cooperativa empregue pela plataforma, a autora de Pastoral tornou-se cooperante da Subvert durante a segunda metade de 2025. Estava desapontada com as plataformas de streaming como o Spotify, e desolada com as trocas e baldrocas que envolviam o Bandcamp. Na Subvert, encontrou um cantinho “excitante” onde podia escolher as pessoas que a “representam” de forma cautelosa. “Coletivamente, como artistas, devíamos poder fazer isso”, afirma Catarina.
Essa luz ao fundo do túnel foi notada por artistas e melómanos. A cooperativa termina o ano de 2025 com mais de 16 000 membros, com mais de 650 mil dólares arrecadados através das contribuições desses membros e mais de 150 mil dólares recolhidos a partir da venda de zines. Valores interessantes, especialmente tendo em conta o valor da adesão: 100 dólares (cerca de 89 euros) para membros-fundadores.
Para artistas e editoras, a adesão é gratuita — “mas 40% das editoras e artistas que se juntaram a nós, decidiram pagar”, indica Austin. Além disso, a Subvert já recebeu apoio financeiro de algumas bolsas e organizações sem fins lucrativos, e também já recusou financiamento, quando este não aceitava os termos da cooperativa. “Somos transparentes a nível financeiro”, relata Austin.
“A adesão foi muito fácil”, explica emmy curl. Para Austin Robey, esse é um dos principais pilares da Subvert: “Queremos que a plataforma seja fácil de utilizar conforme o nível de participação.” Quando o fundador fala de nível de participação, existem duas possibilidades: participativa no sentido em que o membro da cooperativa está envolvido desde os fóruns até às votações, nas várias matérias do dia-a-dia da Subvert, e passiva, quando apoia apenas monetariamente a plataforma. Para dinamizar tudo isso, existe um trabalho contínuo de educação e aprendizagem mútua dentro da cooperativa. “A educação é um dos pilares de qualquer cooperativa e a Subvert tem a responsabilidade de educar os seus membros sobre o que significa os trabalhadores e os músicos serem donos dos seus meios de produção”, afirma Austin Robey.
Essa aprendizagem também se aplica ao próprio fundador. No passado, uma ideia sua, a Ampled, procurou distinguir-se das outras plataformas ligadas à indústria musical através da estrutura de cooperativa que agora é aplicada à Subvert. Na altura, foi complicado encontrar recursos financeiros para tornar a ideia viável e muito do trabalho feito pelos seus trabalhadores acabou por ser voluntário. Poucas pessoas foram recompensadas e houve muito burn out envolvido. A Ampled falhou, mas a sua essência não morreu. Muitas das aprendizagens da Ampled são agora aplicadas à Subvert, que Austin garante ter garantido financiamento suficiente para remunerar os trabalhadores da cooperativa.
“A Ampled permitiu a algumas pessoas sonharem com a coletivização das plataformas digitais”, reflete Austin. Essa idealização através da experimentação também paira sobre a Subvert. Para emmy curl, o surgimento desta plataforma pode servir como inspiração para voltarmos a “comandar a nossa própria tribo”. Para a artista natural de Vila Real, as possibilidades que a Subvert ensaia podem inspirar as pessoas a criarem estruturas como a Subvert a nível local: “Imagina existir uma Subvert no Porto e outra em Lisboa e entenderes quantos músicos te rodeiam”.
Para Austin, a Subvert pretende mostrar que é possível criar um cantinho da Internet que é controlado (pelo menos parcialmente – já lá vamos) pelos seus utilizadores. “Temos de começar por algum lado, não é?”, atira o fundador.
No passado dia 4 de novembro, a experiência da Subvert ganhou outra camada com a disponibilização da sua plataforma digital aos cooperantes. Ao longo dos próximos meses, esperam-se mais novidades e a disponibilização ao grande público da plataforma. O design é algo retro futurista e relembra a Internet de outros tempos. Uma Internet virgem e onde as possibilidades pareciam infinitas. E as funcionalidades, essas, são semelhantes ao Bandcamp. Pode-se escutar música e pode-se comprar música e merch a artistas, e a editoras, presentes na plataforma. Uma das grandes diferenças, é que na Subvert todo o dinheiro utilizado em compras poderá chegar até ao artista, pois é o utilizador que decide se alguma percentagem da sua compra é direcionada para apoiar a plataforma.
Raio de luz ou utopia inalcançável?
Fait attention. Este artigo começa a falar dos problemas envolvendo o Spotify e outras plataformas de streaming semelhantes, mas acaba a apresentar a Subvert como uma alternativa ao Bandcamp. Todavia, foi a partir dos problemas ligados às plataformas de streaming que a Subvert ganhou notoriedade ao longo de 2025. Publicidade enganosa? Nada disso.
Para Austin Robey, a Subvert não é uma “panaceia”, ou seja, não é uma plataforma que almeja curar todos os males da indústria da música. O seu objetivo enquanto cooperativa é mostrar que existem práticas que podem ser alternativas viáveis ao capitalismo que se infiltrou em todas as facetas da nossa vida – incluindo em todo o circuito da música independente. O Bandcamp é um bom exemplo dessa infiltração e dependência. A compra e venda da plataforma mostram como a consolidação que acaba por ser a “derradeira conclusão” para o capitalismo de plataformas (platform capitalism), como assume Austin.
“O Bandcamp não é nada diferente das outras empresas. É um planeta com o seu próprio eixo de rotação à sua volta”, refere Robey. “Quanto mais pessoas usarem um serviço, mais utilidade tem, e é isso a cola que o mantém relevante”, indica, lembrando que, para além da estrutura de financiamento, as pessoas também são atraídas pela conveniência e pela oferta. No caso do Bandcamp, esta afirmação é particularmente verdadeira. O Bandcamp tornou-se praticamente a única plataforma onde músicos e editoras independentes podem fazer transações. A sua funcionalidade tornou-se exclusivamente essa. Apesar do pessimismo que domina os discursos sobre o Bandcamp, existe uma relação de dependência entre o circuito de música independente e a plataforma.
“Quando estás a construir algo online, é muito complicado não tocares em algumas destas grandes empresas tecnológicas”
De acordo com Austin, a Subvert tem uma missão que se distancia de ser a tal “panaceia” ou de criar uma aplicação com uma funcionalidade específica. “Isso já existe”, refere o fundador. Para este, o que não existe são estruturas com resiliência que ofereçam a confiança aos utilizadores de que estas plataformas não serão vendidas ou desbarato, receber financiamento “do mal”, ou acrescentem funcionalidades que só merdifiquem a plataforma. No fundo, mostrar que outro modelo de desenvolvimento tecnológico é possível.
Ainda assim, outros desafios continuam a marcar o percurso da Subvert. Quando falamos de cooperativas digitais, uma questão que muitas vezes passa despercebida é: quão efetivamente somos donos desta? Se a cooperativa Subvert nos permite sermos donos dos seus meios de produção, então seremos totalmente donos da plataforma, correto? Bem… mais ou menos.
Eis o principal desafio para a Subvert ou para qualquer projeto que se inspire nesta. A partir do momento em esta começa a ser construída, rapidamente damos de caras com o principal entrave que nos impede de sermos totalmente donos de uma cooperativa digital como a Subvert. Montar uma plataforma com as funcionalidades e a envergadura que a Subvert pretende alcançar, não é fácil nem barato sem recorrer a estruturas como, por exemplo, a Amazon Web Services. Fazer tudo a partir do zero, para a Subvert, não é possível. Nessa dependência de terceiros o papel dos cooperantes acaba por se ver limitado à escolha do menos mau entre os fornecedores.
“A solução para a precariedade dos músicos não é uma solução tecnológica, mas social e económica. Não é uma nova tecnologia que vai resolver os problemas que os músicos enfrentam; o que precisa de ser tido em conta são as estruturas de poder e dinheiro que estão em torno dessa tecnologia.”
“Quando estás a construir algo online, é muito complicado não tocares em algumas destas grandes empresas tecnológicas”, conta Austin. “Queremos perceber como podemos mudar a nossa infraestrutura técnica no futuro, mas sabemos que temos muitos desafios estruturais contra nós e temos de saber que lutas escolher para já”, reflete. “Neste momento, aquilo que queremos priorizar são os benefícios materiais para os artistas e para os nossos trabalhadores”, conclui.
Estes dilemas remetem para algo que Liz Pelly enuncia em Mood Machine: “A solução para a precariedade dos músicos não é uma solução tecnológica, mas social e económica. Não é uma nova tecnologia que vai resolver os problemas que os músicos enfrentam; o que precisa de ser tido em conta são as estruturas de poder e dinheiro que estão em torno dessa tecnologia.”
Por muito entusiasmo que a Subvert possa levantar, é preciso ter em conta que não será esta plataforma a resolver os problemas que enfrentam os artistas – particularmente os independentes – no mundo real, longe do digital. Sim, a Subvert pode permitir estímulos para outro tipo de iniciativas, mas quaisquer iniciativas que surjam no futuro – e isto inclui a própria Subvert – não substituem debates importantes sobre a proteção legal dos artistas, do financiamento público, a sindicalização, a solidariedade internacional ou sobre a criação de cooperativas fora do espaço digital, que sirvam para espaços de ensaio ou organizar espetáculos ao vivo. O lembrete que Liz Pelly refere no seu livro, necessita de estar em cima da mesa para qualquer discussão envolvendo plataformas como a Subvert, para que não se passe a olhar para toda a indústria musical reduzida a esta dimensão. Esta pode ser uma semente para algo maior, sem dúvida, mas, para o ser, muitas coisas têm de ser tidas em conta. Para já, existe esperança neste “raio de luz”. É um começo.


