O paradoxo do realismo: como o reality show encena a transparência

29 Outubro, 2025 /
Fotografia de Chris Zhang/ Unsplash
Um reality show com artistas na cidade de Lisboa. É este o cenário de "Os Periquitos Somos Nós", o mais recente livro de Alex Couto. Mas porquê um reality show? O próprio explica.

Muita gente me tem perguntado porque é que escrevi um romance passado num reality show. Fazem-no decerto porque não conseguem ligar para o número de valor acrescentado e votar na minha expulsão. A resposta vem de um lugar de profundo fascínio. Quer nostálgico, quer técnico — poucos fenómenos me parecem tão memoráveis do ponto de vista da degradação ética que moldou a paisagem mediática como o reality show. Ainda assim, impressiona-me sobretudo pela riqueza de paradoxos. 

Um formato predatório, que se alimenta dos nossos olhares mais voyeurísticos, oferece a lente ao outro, num convite discreto à invasão. Num movimento seguro, em que podemos aceder a uma realidade quase sempre alternativa e tantas vezes com regras próprias deturpadas do funcionamento normal da sociedade, um conjunto de pessoas navegam esse sistema de forma a atingirem um prémio e a sobreviverem mediaticamente o máximo de tempo possível. Numa primeira lógica paradoxal, é como se o conforto da visualização fosse amplificado pelo embaraço da participação na mesma. 

Para o participante, é o local certo para se oscilar entre a estratégia de criar uma personagem blindada ou para ser genuíno e apelar à autenticidade total (talvez um misto dos dois), enquanto alguém por detrás das câmaras manipula a vida dos protagonistas para remexer nas emoções da audiência. São paradoxos atrás de paradoxos. 

No livro Cue The Sun! The Invention of Reality TV, a autora Emily Nussbaum consegue captar o efeito hipnótico, por vezes narcótico, deste acesso desmesurado à vida dos outros — “Reality television is cinéma vérité filmmaking that has been cut with commercial contaminants, like a street drug, in order to slash the price and intensify the effect.1

A lógica cultural do capitalismo tardio é o pós-modernismo e pode ser caracterizado por uma diluição da verdade. Numa era de televisão ininterrupta, talvez mantida pela esperança de apanhar as migalhas de consumidores que não se movem para o stream, o formato reality show reflete o universo mediático caótico em que vivemos de forma prístina. O paradoxo torna-se um reflexo óbvio das oscilações constantes da vida dos jogadores. 

Esse balanço desequilibrado entre a nossa vontade de observar e o acesso completo que nos é garantido, mas sempre moldado pela intermediação, é capaz de captar até os obstáculos exigidos à literatura — começando desde logo pela forma como a nossa própria mundividência faz sempre parte da avaliação da realidade contemporânea. 

A encenação da transparência

Parte do apelo do reality show é esta certeza de que nos vamos aproximar da realidade a um nível mais profundo do que numa obra de ficção. A ideia de que estamos a assistir à realidade é sedutora, sobretudo numa era em que existem largas camadas de opacidade a operar em inúmeros aspectos da nossa vida. Da burocracia à política, sem esquecer a finança e a economia, estamos habituados a estar apartados dos meandros onde se tomam decisões e onde se experienciam emoções genuínas. A convocação de um universo fechado que existe para que esta nossa sensação seja tranquilizada tem um efeito calmante, para além de interessante. 

Numa era de enredos, onde o storytelling já foi o sabor do momento no que toca a ferramentas de persuasão comercial, somos desafiados pela total ausência de um enredo — até se tornar aparente que há uma mecânica de fantochada, e subtexto, que como uma gramática própria atravessa estes conteúdos, e onde quase sempre conseguimos sentir a mão invisível da narrativa a surgir entre elementos tão ligeiros como soundbites ou julgamentos de carácter. 

Realidade nasce do latim realistas, que expressa a condição de algo ser real, de onde vem realis, que para além de determinar algo como verdadeiro, era também relativo às coisas que existem. A raiz de res, por outro lado, determinava o objeto ou assunto, coisa ou matéria. É absolutamente fascinante como ao reality show compete obliterar todos os sentidos que o trouxeram até aqui — nem é real, porque quanto muito é uma simulação da realidade a tentar apresentar-se como real (por muito que seja real para tanta gente), nem é verdadeiro (é inventado e operado apenas com o propósito de nos parecer real e um intuito comercial). A sua própria matéria é uma erosão, numa meta-criação que nos volta a atirar para os caminhos deixados pelo popularizar do pós-modernismo.

Mergulhamos através de ferramentas que nos prometem aproximarmo-nos de forma mais profunda da realidade — conceitos como o confessionário para quebrar a quarta dimensão entre o participante e a audiência final, onde é perfeitamente possível martelar uma narrativa macro que pode até escapar ao participante de tão mergulhado que vive nela. Através de uma ideia de votação não-mediada, podemos decidir os destinos destes programas. E quanto mais acreditamos naquilo que vemos, mais nos afastamos de qualquer contacto com a realidade e nos envolvemos com um enredo pré-formatado.

Este foi precisamente um dos factores que reforçou a minha certeza pelos efeitos duradouros que um reality show podia provocar na sua audiência. Quando me questionava acerca da possibilidade de desenvolver um sistema ficcional que captasse esta ideia de memorabilidade, sabia que estava a jogar em mais um campo de paradoxo provocado pelo reality. Se, por um lado, não me consigo lembrar da grande maioria dos participantes da primeira edição do Big Brother em Portugal, por outro tenho a certeza absoluta que nunca na minha vida me vou esquecer da vitória do Zé Maria, celebrada por Portugal inteiro pela sua humildade de Barrancos, do estilo do Bruno Savate, ou do rol de concorrentes que se tornaram comentadores (Fanny, penso em ti) e, progressivamente, assumem o taticismo da presença no reality show: a célebre imagem do jogo.

Memória colectiva, memória afectiva

Apesar de Emily Nussbaum duvidar do efeito memorável deste tipo de programas, a verdade é que há a possibilidade de um reality se imiscuir de uma era maior do que se adivinhava retratar. Ainda hoje sinto uma alegria prima quando me cruzo com outros entusiastas do reality show ‘The Jersey Shore’. Numa revisão acelerada do programa através de uma síntese de YouTube, descobri uma secção de comentários que viveu o mesmo momento cultural que eu, onde uma certa esperança pré-2008 se desencantou pelo futuro com quase tanta força quanto a Sammi pelo Ronnie.

A subversão provocado pelo programa ‘Último a Sair’, da autoria de Bruno Nogueira e Frederico Pombares, também aponta para este último nível de pastiche e paranóia, duas características que o pós-modernismo impusera sobre as obras afectadas pelo seu impacto estilístico. Se, por um lado, temos autênticas perversões dos estereótipos dos arquétipos presentes nos reality shows (o convencido, o violento, o clichê), por outro lado tornou bastante evidente a gramática de concepção própria deste tipo de programas, ainda antes da omnipresença do conceito de “dar canal”.

Esta expressão parece cristalizar uma certa ideia de linguagem associada à lógica interna do Reality Show, algo que me fascinou particularmente. Surgiu como uma crítica aos participantes que tinham atitudes particularmente chamativas, de forma a que as câmaras incidissem mais neles do que no resto dos seus pares. No meu novo romance, escrevo que “todos os reality shows são programas de sobrevivência, nem que seja de sobrevivência ao próprio reality show.” Esta necessidade de encontrar o ângulo ou a persona certa para navegar um determinado tipo de programa ou de desafios, parece ser capaz de determinar quem são os concorrentes favoritos e quem é capaz de chegar a vencedor.

Animada por uma ideia de que a visualização de reality tv é um programa embaraçoso e possível de ser considerado um guilty pleasure, surgiu também uma certa erotização a pairar sobre o conceito. Parece um paradoxo evidente, fruto dos fenómenos Netflix que servem para animar gerações desencantadas pelo sexo, decerto fruto da obrigatoriedade de nos levar para um plano de presença física numa era de tão grande conforto digital. 

Ainda mais pornográfico do que essa sexualização, está uma certa transferência emocional que o reality show permite enquanto formato. Numa era de carência de afectos onde se formam novos vocábulos como incel, em que a sociedade encontra novas formas de alcançar a intimidade, o reality garante um acesso aparentemente sem filtro à intimidade dos outros, permitindo colmatar ausências através da gratuitidade e do acesso aos sentimentos. Não mediada pela ideia de ficção, esta intimidade parece ainda mais real. 

A partir da posição de millenial da qual vos escrevo, é deveras evidente que um conjunto de programas focados numa certa malandragem são capazes de animar vidas deveras baunilha. Falo de ‘Ex on the Beach’, ‘Too Hot Too Handle’ e, claro, ‘Love Island’. Apesar de uma grande variedade temática e conceptual para os seus programas do género (como bolos, outras comidas, artes e combates), é bastante evidente que o ganha pão da gigante do streaming Netflix continua a ser a dança de acasalamento entre pessoas que oscilam do gostoso ao cringe mais rápido do que um fundão nas ilhas paradisíacas onde os metem. 

O elemento dominante é côncavo e convexo em simultâneo — a lente que capta e o ecrã que serve, uma protuberância de ego e de absorção do mesmo, que muitas vezes faz do casting de participantes um reflexo do povo que os admira e desse mesmo povo um barómetro moral para a prestação dentro do concurso. Há algo na condição de participante de reality show que eleva o aproveitamento mórbido do outro que é a condição clássica do capitalismo. Partir da busca de fama, de protagonismo ou de sobrevivência mediática, para humilhar, denegrir ou, de forma igualmente brutal, mas aparentemente mais leve, desmontar as expectativas do participante um bocadinho de cada vez até à desilusão total. 

Todos os reality shows se servem dos seus participantes, porque os participantes já entram dispostos a servirem-se do reality show também. Esta lógica de mercado está ancorada no funcionamento capitalista da sociedade em que vivemos. Infelizmente, esta ideia de simbiose torna-se rapidamente um símbolo parasitário, uma prova do profundo desequilíbrio de poderes que existe entre a network (que tem à sua disposição a edição e o contorno dado pelas narrativas) e o participante (que para além das regras e dos colegas de programa, ainda pode dever a sua sobrevivência à audiência, um juiz cruel que assiste a uma montagem da sua vida por terceiros). 

A fama do reality show é efémera, mas o meme é para sempre — é o preço a pagar para ocupar um pedacinho da memória de todos, estar disposto a ser o palhaço em prol de um director de estação que não quis fazer o esforço da ficção para guiar o mundo no sentido da luz. Esta dualidade entre não ser realmente memorável e ser capaz de cristalizar nas memórias colectivas parece ser uma característica do reality em si mesmo. 

Acredito que exista uma tensão maior em servir um elemento estrutural reconhecível, de arquitectá-lo e construí-lo com atenção ao detalhe, apenas para subverter os seus tropos num truque espectacular de mágica. Parece-me que vai haver um sobressalto maior da parte da audiência se existir um trabalho de bastidores sobre como é que o vamos embrulhar na familiaridade apenas para servir algo original. E uma lógica de reality pode subverter as expectativas com uma frescura que a literatura procura desde que Barthes determinou que a forma é parte do conteúdo.

Reality enquanto universo para literatura

A complexidade de edição que é utilizada por um reality show é uma das melhores formas de provar a sua falência enquanto tentativa de captura da realidade. Por cada sequência de lazer acompanhada em directo, encontramos edições altamente propositadas, onde determinados detalhes são exagerados com o objectivo de provocar um impacto artificial na audiência. Para este tipo de truques podem entrar também ferramentas de difusão de verdade, como locuções que não dizem respeito às imagens, efeitos de som que provocam efeitos cómicos, até cortes cómicos para reações das personagens ao que acontecem, quase sempre com o objectivo de sugerirem qual a reação que devemos ter em relação a alguma novidade. 

Esta riqueza de recursos revelou-se uma oportunidade interessante no papel de autor a mergulhar sobre os fenómenos do reality show. A hipótese de um genérico televisivo com detalhes da personalidade dos participantes foi uma fonte de ideias. A possibilidade de desenvolver um território de design gráfico para toda a inserção de palavras que é necessária para guiar a audiência acerca do que se está a passar no programa. 

Em quantas conversas sussurradas foram inseridas legendas? O quarto recebeu iluminação nocturna para percebermos quem está a performar a paixão para as câmaras? Quando deste cuidado por nos revelar a totalidade não é em simultâneo uma forma de controlar a nossa percepção?

Sou um leitor apaixonado por sequências de agência — no meu primeiro romance até caí na cilada de achar que tinha conseguido desprover totalmente os meus personagens dela, até me ter apercebido que a sua luta contra o contexto onde se inseriam era precisamente uma forma aguerrida de o recuperarem. Este tipo de tensão entre o que é deter e não deter agência fascina-me particularmente neste ambiente — um participante pode oscilar entre ser capaz de fazer o que pode e ao mesmo tempo infringir as regras do reality

O que é o pontapé do Marco para além de um exemplo da banalização da violência contra as mulheres no início do século na sociedade portuguesa? É também uma forma de percebermos de forma dramática como a frequência de realidade provocada pela produção do programa pode ser quebrada pelo laboratório de emoções humanas que estava a ser mantido de forma artificial. Um momento como este relembra-nos a complexidade de operação que estava a ocorrer para o tentar evitar. 

Esta ideia de frequência de realidade fascina-me porque opera em diferentes aspectos da nossa vida. Certas citações dos nossos chefes ou clientes não sobreviviam numa frequência de realidade fora daquela que opera no mundo corporativo. Não será o reality show um autêntico abanão no que toca a estas quebras de frequência, por nos relembrar que a realidade é, no fundo, o que perfura a bolha? 

Outro elemento que me interessa na criação do reality show como um elemento de artifício literário é a possibilidade de me permitir um dos temas que mais gosto de explorar na ficção — o confronto interclasse. Quer seja entre o participante e o apresentador, entre a produção e os participantes, mas também na dificuldade de mediação moderna que é controlar um programa que para além do consumo televisivo, vai encontrar toda uma internet à espera de o transformar em meme

Como se viu bem este verão pelo meme da corrida de Montoya, é inevitável que uma era de expansão de algoritmo não vá celebrar o apelo mainstream do reality show. Esse exemplo acaba por se tornar paradigmático, porque junta no mesmo clipe tudo aquilo que falei nesta secção deste texto — uma vontade aparente de controlar a realidade quebrada por um impulso humano, até nos deixar com a desconfortável sensação de que o impulso humano tinha sido calculado até ao limite, de forma a conseguirmos captar precisamente o momento em que quebra. 

Relembro-me de uma citação de Paul Virilio: “Quando inventamos o navio, também inventamos o naufrágio.” Parece uma reflexão de importância adicional quando o navio são pessoas a viver as suas vidas, mas o naufrágio retrata a erosão das mesmas para nosso entretenimento. Na dúvida sobre os limites morais e cómicos deste produto mediático que tão bem encapsula a era, fica a certeza de que pelo menos a literatura nos pode ajudar a mergulhar dentro dos seus caminhos pantanosos.

  1. “A televisão do reality show é um cinéma vérité cortado com contaminantes comerciais, como uma droga de rua, a fim de reduzir o preço e intensificar o efeito.” [tradução de Alex Couto] ↩︎
Autor:
29 Outubro, 2025
Picture of Alex Couto

Alex Couto

O Alexandre Couto foi Editor do Shifter, trabalha actualmente como publicitário e colabora com diversas publicações.

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