A urgência de controlar a tecnologia para proteger a democracia na era de Trump e das Big Tech

25 Março, 2025 /
Imagem ilustrativa do "stack", onde vemos uma espécie de prédio com os logos das tecnológicas nas laterais.

Índice do Artigo:

Acordamos e pegamos no nosso smartphone — da Apple, Samsung ou Xiaomi. Vemos as notícias no Google News, em sites que fazem embed de tweets ou de vídeos do YouTube. Falamos com os nossos amigos através do WhatsApp e interagimos em comunidades através de redes sociais como o X, o Instagram ou o TikTok. Provavelmente usando o Chrome ou um browser que se baseie na mesma tecnologia. Temos e-mail da Google e aproveitamos a opção de login rápido, associando essa conta a qualquer outra que tenhamos de criar online. Trabalhamos com ferramentas da Microsoft — do Word ao Teams —, noutros casos com software por subscrição da Adobe. Guardamos tudo na Drive… da Google, claro. Fazemos perguntas ao ChatGPT. Ou à Alexa. Assistimos a vídeos no YouTube. Fazemos compras na Amazon. Visitamos sites que controlam todos os acessos através do Google Analytics, vemos a publicidade apresentada pelo Google Adsense. Cedemos dados a mais uma dezena de empresas de quem nem sabemos o nome. Ouvimos música no Spotify, que não falha graças aos serviços de armazenamento da Google ou da Amazon e à gestão de tráfego da Cloudflare.

Hoje passamos grande parte das nossas vidas online. E isso significa quase sempre estar ligado através de serviços norte-americanos, aceder através de um equipamento de uma marca americana ou chinesa, a uma infraestrutura detida por conglomerados tecnológicos da mesma origem. Se fizermos um esquema básico, não só todos os nossos dados fluem para fora da União Europeia (UE), onde nos encontramos, como as relações económicas que sustentam este mundo digital são dominadas pelos EUA ou a China. Como descreve o CEO da Proton, a suite de serviços online suíça que compete com os da Google, “a Europa tornou-se nada mais que uma colónia dos Estados Unidos e da China. E como em todas as colónias, os colonizadores vieram para extrair o recurso natural mais valioso: os dados pessoais”.

A ilusão da escolha: como a Europa se tornou dependente das Big Tech

Como utilizadores comuns não temos grandes alternativas populares aos serviços comerciais das empresas de Silicon Valley. Algumas soluções são simplesmente desconhecidas, porque não investem tanto em marketing e não têm tanto financiamento, outras implicam ainda uma curva de aprendizagem antes da utilização. Mas o problema não termina aí. O padrão repete-se com empresas, indústrias, e até Estados, que dependem de serviços proprietários de empresas norte-americanas.

Se durante muitos anos essa dependência só preocupava internautas com maior literacia digital e preocupação com a privacidade, grupos de defesas dos direitos digitais, ou, ocasionalmente, quando emergia uma onda de receio conspirativo exclusivamente direcionada à China, a crescente imprevisibilidade do aliado histórico e a proximidade entre as Big Tech e o Governo dos EUA tem feito crescer a preocupação. Não só com o que pode acontecer com os dados pessoais (que pode ir desde a partilha indiscriminada com autoridades, até a exploração comercial em sistemas de IA ou de publicidade preditivos). Mas também sobre os modelos de desenvolvimento e governança, e os termos impostos na utilização de um serviço (das práticas anti-concorrenciais até às potenciais distorções dos algoritmos).

A posição de fragilidade da União Europeia também significa uma maior dificuldade em fazer impôr as suas regras – desde a cobrança dos impostos sobre os lucros devidos, até à proteção de dados dos utilizadores e à imposição da necessidade de consentimento para a recolha dos dados. E em parte isso deve-se à imagem que temos do universo tecnológico. O modelo económico que alimentou Silicon Valley, e em parte, criou as sociedades cronicamente online, utilizou a expressão “grátis” como cortina de fumo para as transações em curso. E, por trás das interfaces com que interagimos, muito acontece sem que tomemos consciência. Tome-se como exemplo a Amazon, conhecida por toda a gente como um gigante do retalho online que, ao contrário do que se pensa, faz uma enorme fatia da sua facturação ao providenciar os seus web services e não a vender bugigangas.

Mais do que um sector de serviços digitais, licenças de propriedade intelectual, estruturas, protocolos e standards de conexão, em causa está o entrelaçado que se foi criando ao longo das últimas décadas com todos estes elementos, dando origem ao universo digital. Uma espécie de edificado sobre todo o planeta, a que o filósofo norte-americano Benjamin Bratton chama stack – “camadas modulares que desempenham papeis específicos, e em que cada um é simultaneamente dependente e interdependente dos outros”, como explica numa entrevista ao portal neerlandês Nieuwe Instituut, no ano de 2015, o mesmo em que lançara o livro The Stack: On Software and Sovereignty.

“O facto de ter chegado de forma não intencional não significa que a forma como temos de lhe responder tenha de ser igualmente acidental. Além disso, o Stack não caiu simplesmente de Marte, mas resultou de um conjunto de iniciativas que parecem talvez um pouco mais coordenadas do que prevíamos. Abordá-la como um todo permite-nos ser um pouco mais deliberados sobre o seu futuro”, dizia Bratton nessa mesma entrevista, refletindo sobre o caráter político do stack e a importância de pensar estrategicamente sobre a computação.

Desde então, os avisos e as promessas não têm faltado. Mas, no entretanto, o manancial de tecnologias norte-americano, e a exposição dos utilizadores europeus, não parou de aumentar à boleia de novos produtos – como o GPT – ou como solução para momentos de crise – como aconteceu durante o Covid com a dependência no Teams ou a criação de uma aplicação – sem que aumentasse a sua compreensão.

O debate em torno da soberania tecnológica não é novo, mas tem pouca expressão e não faz capas de jornais nem ganha eleições. Apesar de todas as partes interessadas reconhecerem a sua importância, esta dimensão parece ser globalmente menosprezada quando comparada com as promessas de cada novo lançamento comercial: o chat que pensa, o telemóvel que envia mensagens por ti, ou o aparelho que te permite controlar todos os electrodomésticos com a voz.

Não só o interface esconde essas relações estruturais, como toda a cultura em torno do digital, das notícias à arte digital mainstream, contribuem para uma percepção da tecnologia como algo superficial. Quando na verdade, o stack é uma nova forma de entender a governação do mundo, em que empresas têm tanto ou mais poder do que estados. E cada interação podia ser o pretexto para traçar uma linha que vai desde a exploração de lítio no Congo, à produção de microchips no Tawain, atravessando por cabos submarinos, datacenters misteriosos, e satélites em órbita, obedecendo a regras definidas em escritórios em Silicon Valey ou em Pequim, de empresas provavelmente financiadas por capital vindo de um fundo soberano como o saudita ou o norueguês.

Reimaginar o stack

Como diz a sabedoria popular, há imagens que valem mais que mil palavras. Registos singulares de um momento que captam toda a essência de uma determinada era. Uma dessas imagens surgiu recentemente, registando o momento em que os CEOs das grandes tecnológicas norte-americanas, Mark Zuckerberg (Meta), Jeff Bezos (Amazon) e Sundar Pichai (Google) se alinharam com Musk para assistir ao discurso de tomada de posse de Donald Trump – na primeira fila de uma plateia onde também não faltava Sergey Brin (Google) e Tim Cook (Apple).

Se durante o primeiro mandato de Trump as grandes tecnológicas pareciam querer manter alguma distância em relação à agenda do presidente, desta vez quiseram estar presentes desde o primeiro minuto sinalizando uma mudança na relação. E não demoraram muito até dar sinais públicos de que o compromisso não era só para a fotografia. Para dar alguns exemplos: foi anunciada uma nova era na Meta com uma visão à Musk das redes sociais e da regulação; a Google tirou do seu site o compromisso para não desenvolver IA para fins militares e fez a vontade a Trump, mudando o nome do Golfo do México para Golfo da América no Google Maps. E quase todas deixaram cair os compromissos com políticas de diversidade, inclusão e equidade.

Individualmente, cada um destes momentos não gerou mais do que pequenas ondas de indignação – especialmente propagadas nas plataformas detidas por estas mesmas empresas. Mas a sua combinação fez efervescer a discussão sobre quem detém e governa a tecnologia que usamos todos os dias. Andando pelas redes sociais é fácil encontrar utilizadores que documentam o seu processo de mudança, partilham sites como o europeanalternatives e criam a enésima thread no reddit ao estilo WhAtS a GMaiL aLTernATiVe??”. Mas, da mesma forma que percebemos que de facto existe uma alternativa para toda a suite que usamos, percebemos o muito que há por fazer. Não só porque alguns dos serviços são mais limitados mas também porque dada a estrutura de interdependências, alguns desdes serviços acabam num ponto ou outro a depender de recursos, redes ou serviços que fogem do controlo.

A procura por tecnologia made in eu não é tanto uma questão de europeísmo militante — veja-se o caso da app de mensagens Signal, americana, amplamente elogiada pelo compromisso com a privacidade, ou o Proton, concorrente do gmail, que é suiço —, mas a crença de que a regulação que tem sido implementada pode ser uma garantia de mínimos de qualidade. A consciência de que para desenvolver tecnologia sem fins lucrativos o investimento dos estados e das instituições públicas pode ser determinante. E, em última instância, dado o que há por fazer, é onde ainda resiste a esperança de que possa ser feito de acordo com princípios fundamentais de abertura, transparência, governança democrática e sustentabilidade.

Um dos projectos que explora de forma mais compreensiva aquilo de que falamos é o projecto Eurostack elaborado por Francesca Bria, Fausto Gernone e Paul Timmers. O relatório não só oferece uma descrição da magnitude do desafio – que culmina na proposta da criação de um fundo soberano para investimento em tech com uma dotação orçamental inicia de 10 mil milhões de euros. Também descreve as diferentes camadas do stack: 1) Recursos, 2) chips, 3) redes, 4) aparelhos conectados e Internet das coisas, 5) Infraestrutura Cloud, 6) software de plataformas, aplicações e algoritmos, 7) data e inteligência artificial. E quais os princípios de governança que devem balizar toda a iniciativa: a democracia em toda a linha do processo, a governança inclusiva, infraestruturas descentralizadas e soberanas, os dados vistos como um bem público, o foco em tecnologias eficientes energeticamente, uma exigência de desapropriação da tech, uma defesa da interoperabilidade (pensa no e-mail que podes usar em várias apps diferentes) e da privacidade por defeito.

Gráfico ilustrativo dos principais princípios do projecto Eurostack
via Eurostack

O desenvolvimento tecnológico na Europa é visto com bons olhos até nos EUA. Numa altura em que as o modelo das tecnológicas atinge um de ponto de saturação, a ideia de criar tecnologia que se sujeite a valores pensados à priori, não parta coisas para avançar rapidamente, e não imponha a lei do mais forte, é vista fundamentalmente como um bom serviço aos utilizadores. E que até do ponto de vista do mercado pode ser positiva, ao aumentar a concorrência e obrigar as empresas que agora são monopólios a manter a qualidade dos seus serviços e a evitar o caminho da merdificação, característico dos serviços digitais sem concorrentes.

Mas para um projecto desta envergadura entrar em vigor, é preciso mais do que um relatório — mesmo que este tenha surgido de uma iniciativa multipartidária do Parlamento Europeu. Como mostra o próprio documento, mas também o recente manifesto subscrito por empresas europeias que surge em sequência deste, a transformação proposta implica uma grande convergência de esforços e uma federação das capacidades que já existem nos diferentes pontos da União Europeia. E todos já testemunhámos como a coordenação não é o forte deste bloco político, tão susceptível quanto outros a derivas autoritárias anti-privacidade (como o caso do ChatControl) ou a embarcar em hypes de curto prazo, como em alguns desenvolvimentos de IA. Para além disso, nada se faz sem grandes somas de capital, e nesse aspecto, não é certo que a entrada de investidores privados e de capital de risco, não possa, naturalmente, desvirtuar parte da componente pelo bem comum do projecto, preferindo modelos de desenvolvimento correntes, tendo em vista ao lucro, objectivo último do seu trabalho.

Furar a bolha das big tech

Como em qualquer outra área das nossas vidas, pensar no político e no que podemos fazer leva-nos ao mesmo dilema de sempre sobre o poder das acções individuais versus as colectivas. É certo que o desafio que temos pela frente não está ao alcance de 2 ou 3 nerds na garagem dos pais, nem se resolve por umas centenas de pessoas deixarem de utilizar a suite da Google ou qualquer outro serviço de uma multinacional norte-americana. Contudo, há outro aspecto desta mudança que me parece que não deve ser negligenciado: o potencial de contágio.

Se há 30 anos nos dissessem que a nossa experiência na internet ia ser praticamente restrita a um punhado de empresas norte-americanas, provavelmente o cenário parecia tão improvável como hoje parece o contrário. A verdade é que, para além de toda a dimensão infraestrutural da internet, que, de facto, não mudará simplesmente por iniciativa individual, uma grande parte do que hoje utilizamos ganhou o seu valor com a sua socialização – o que faz da nossa presença individual uma espécie de argumento de venda. Não se trata portanto da mesma lógica que está por detrás da opção por palhinhas de cartão em vez de palhinhas de plástico; em que as opções individuais têm pouco mais do que o seu sentido literal, mas antes de um tipo de acção com potencial de contágio. Não só por transmitir o sinal de que é possível fazê-lo, alargando o imaginário tecnológico para além do que é dominado pelas gigantes multinacionais, mas também, porque só com o gerar de massa crítica – em forma de procura comercial ou de discurso político – sinalizamos as instituições que nos ultrapassam da nossa vontade de algo diferente.

Pegando no exemplo na ordem do dia, o Twitter/ X; é óbvio que instituições e políticos deviam ser os primeiros a procurar formas de comunicação alternativa, mas é fácil perceber porque continuam lá: porque apesar das críticas circunstanciais que se faz à plataforma, a presença lá não se revestiu de uma forte politização, não causa mácula eleitoral. Muito porque a imagem das redes sociais mainstream ainda se baseia no nosso imaginário utópico de uma praça digital central a toda a humanidade, e não na sua compreensão como o que são de facto: plataformas proprietárias com regras definidas por um grupo bastante restrito, que fazem do sequestro dos utilizadores o seu único valor. E que condicionam o discurso público, político e social com algoritmos que vão mudando ao longo do tempo, e que impedem até a disseminação de informação sobre os seus problemas ou sobre alternativas.

Esta situação é um exemplo paradigmático de como o modelo de desenvolvimento de tecnologia comercial se tornou perverso e predatório, explorando os nossos instintos e os nossos padrões de comportamento, criando estratégias aditivas, mais do que convidando a decisões racionais sobre o tipo de tecnologia que queremos a intermediar a nossa sociedade. É claro que cabe, em parte, aos reguladores a tarefa de moderar as plataformas e garantir que cumprem mínimos. Mas deixando toda a regulação à política profissional corremos o risco de ver aplicada uma tecnocracia altamente influenciada pela capacidade de lobby das mesmas empresas que se pretende regular.

Re-imaginar o stack também é, ou pode ser, re-imaginar a forma como nos relacionamos com tecnologia, como subscrevemos serviços, como escolhemos provedores. Se a tecnologia comercial domina o discurso mainstream, com anúncios e press-releases a terem honras de telejornal e a poluírem os segmentos informativos, a tecnologia popular encontra o seu espaço junto das comunidades. Como um pouco por todo o mundo vão mostrando as comunidades de instalação de software livre, de reparação de componentes tecnológicos, de defesas dos direitos digitais.

Trocar o Gmail pelo Tutanota ou o Proton; o Windows ou o MacOS por uma distro de Ubuntu; o Twitter pelo Mastodon; o Drive pela NextCloud, o Photoshop pelo Gimp ou o ChatGPT pelo Mistral é mais do que uma acção individual, é um gesto que mostra que há alternativas fora da bolha tecnológica imposta pelas gigantes tecnológicas. E que se ganhar peso no espaço público, pode condicionar agendas eleitorais e obrigar políticos à tomada de acções. Até lá, enquanto preferimos o cómodo, por muito que este seja perverso, é pouco provável que sejam os políticos a levantar o problema da tech, especialmente porque não têm uma solução mágica para oferecer, nem dividendos políticos para colher.

Autor:
25 Março, 2025
Picture of João Gabriel Ribeiro

João Gabriel Ribeiro

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

Outros artigos do autor
Picture of João Gabriel Ribeiro

João Gabriel Ribeiro

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

Outros artigos do autor

Apoia-nos para mais artigos como este

Subscreve a partir de 2€/mês, recebe uma newsletter exclusiva, acesso a descontos e passatempos, e contribui para mais textos como este.

Partilha este artigo:
Recebe os conteúdos do Shifter, semanalmente no teu e-mail.
Partilha este artigo:

Outros artigos de que podes gostar:

Estamos a preparar a 7ª edição mas não queremos que a 6ª fique em falta na tua coleção. Compra já antes que esgote.