A ideologia do género e o medo da destruição

A ideologia do género e o medo da destruição

3 Março, 2025 /
Capa do livro "Quem Tem Medo do Género?", com ilustração de Dayana Lucas

Índice do Artigo:

Excerto do texto introdutório do livro “Quem Tem Medo do Género?”, de Judith Butler, publicado pela Orfeu Negro em 2024, com tradução de Nuno Quintas.

Como discutir uma fantasia psicossocial que agrega tantas ansiedades, que se move em tantos sentidos diferentes, que parece exercer tamanho poder de destruição? E como lhe fazer frente, quando, nas suas formas proteicas e contraditórias, se move tão depressa? 

Quando pergunto quem tem medo do género, pergunto também quem tem medo do quê ao certo e qual a melhor maneira de compreender o medo daí resultante e os seus efeitos políticos. Quem ou o quê exerce ao certo estes poderes destrutivos? Afinal, vivemos num tempo em que uma miríade de actos de cancelamento, patologização, criminalização e deslegitimação procuram destruir as liberdades e os poderes que os movimentos sociais à esquerda há décadas se esforçam por estabelecer. Atacam‑se vidas e subsistências, anula ‑se a identidade trans, as mulheres e as pessoas grávidas regressam aos vãos de escada para conseguir intervenções cirúrgicas essenciais, impugna ‑se, por vezes até se recusa frontalmente, o direito ao casamento ou à parentalidade de pessoas gay e lésbicas, a juventude trans não consegue aceder a cuidados de saúde nem encontrar uma comunidade nos países onde a transfobia se tornou lei ou política pública, cancelam­ ‑se e vilipendiam­‑se as aulas de educação sexual destinadas a jovens, que têm direito a um entendimento informado do género e da sexualidade e a aprender o consentimento e a ética sexual.

À semelhança de outros movimentos contemporâneos de direita, o movimento contra o género apropriou­‑se da linguagem da esquerda, incluindo do próprio termo «ideologia», que pertence a Marx e ao marxismo. Quem faz parte desse movimento não atenta na teoria da ideologia de que faz uso. Mas somos livres de reavaliar esta história para estabelecer distinções mais sólidas que nos ajudariam a entender o movimento contra o género como integrante do fascismo. Consideremos Karl Mannheim, cuja obra Ideologie und Utopie saiu em língua inglesa em 1936, mas cuja edição original, em alemão, foi publicada em 1929, antes de Hitler fundar o seu regime. Nesta obra, ponderava­ ‑se a possibilidade de entendermos o fascismo como ideologia nascida do capitalismo e procurava­ ‑se examinar as origens inconscientes das fixações mentais que negam a verdadeira natureza da sociedade. Se as ideologias de Mannheim preservam as ordens sociais existentes ou a ideia de uma antiga ordem social face a instabilidades, estas ideologias podem ser contrariadas por utopias, que activam certos potenciais na sociedade para alimentar um imaginário colectivo de transformação. O fascismo era uma ideologia por querer restabelecer o nacionalismo e as hierarquias raciais, por partir de ordens sociais mais antigas de maneira a deter e subjugar à força, atacar, matar e expulsar pessoas comunistas, judias, rons, com incapacidades físicas, gays e lésbicas, e doentes. Mannheim defendia que o ataque fascista às ideias ditas perigosas fazia coincidir este perigo com visões de transformação social. 

Os fascistas, dizendo preservar o statu quo ou regressar a um passado idealizado, atacaram os movimentos sociais e políticos que tentavam expandir os nossos compromissos fundamentais com a liberdade e a igualdade. Podemos encontrar este passado idealizado no apelo que o movimento contra a ideologia do género faz à restauração de uma ordem patriarcal da família, do casamento e do parentesco, o que abrange proibições no domínio da liberdade reprodutiva, da autodeterminação do género e dos cuidados de saúde para pessoas LGBTQIA+. Em cada um destes casos, o movimento dá primazia a um passado imaginário à custa de um futuro potencial de maior igualdade e liberdade. Assim, a ideologia faz mira à imaginação radical, identificando­‑a com difusos perigos sociais corrosivos. O ataque às «ideias perigosas» não é, pois, mera resistência aos potenciais da democracia radical que surgem de repente nas piores alturas, é uma tentativa de acabar com a realidade presente para reconstruir e restaurar um passado imaginário em que reina a hierarquia dos géneros. O combate seria sem dúvida mais fácil se a oposição ao género só tivesse interesse em manter o statu quo, mas os projectos de restauração são mais ambiciosos e destrutivos.

É verdade que a teoria de Mannheim é datada. As suas posições foram criticadas pela sua forma própria de idealismo e por sugerir que, para superarmos a ideologia, temos de abdicar de todos os absolutos. E no entanto, hoje parece ser importante ele ter conseguido imaginar uma utopia que combatesse a força da ideologia fascista, que emergia na década de 1930. Para Mannheim, a conceptualização de um futuro que acabasse com a ideologia partia do princípio de que é possível uma certa imaginação, ainda que os seus potenciais não fossem à partida totalmente determináveis. Poderíamos esperar que os movimentos sociais de combate à violência, à desigualdade social e económica e à injustiça regenerassem os ideais «irrealistas», distintos de uma versão lacaniana do imaginário. Esta forma de «irrealismo» demonstra‑se necessária aos movimentos sociais que rejeitam a via da «realpolitik» e que são suficientemente fortes para resistir à acusação de idealismo inerte. De facto, a pergunta de Mannheim permanece a mesma: como poderia um contra­‑imaginário acabar com o domínio da ideologia, exemplificado por quem acusa o próprio género de ser uma ideologia? Este caminho consciente e colectivo é uma convicção necessariamente idealista. Mas pode ele ser um ideal encarnado nos movimentos sociais que confrontam hoje o fascismo emergente?

Avisou Marx:

[N]ão se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou se representam, e também não dos homens narrados, pensados, imaginados, representados, para daí se chegar aos homens em carne e osso; parte­‑se dos homens realmente activos, e com base no seu processo real de vida apresenta­‑se também o desenvolvimento dos reflexos e ecos ideológicos deste processo de vida. Também as fantasmagorias no cérebro dos homens são sublimados necessários do seu processo de vida material […]. 1

Por outras palavras: dizer que o género é ideológico é a sua própria formação ideológica, consistindo no seu conjunto de crenças, abarcando o «ataque» a uma fantasmagoria que essas pessoas presumem real mesmo quando, por assim dizer, apareceu da cabeça delas. A fantasmagoria de Marx alia­‑se assim à noção de Laplanche, por mim declinada, de um «fantasma». Poderíamos dizer que o ataque à família imaginado pela direita justifica o próprio ataque da direita às políticas e leis que combatem a violência de género, aos estudos do género, aos direitos reprodutivos, ao casamento gay e aos direitos trans. Se o ataque é dirigido à direita, então a direita está a defender­‑se, defende os seus valores ou a sua ideia do que deve ser a família, a nação, o homem, a mulher e a civilização. Mas talvez o ataque que a direita vê dirigido a si, ou que invade os seus mundos culturais, já seja uma projecção, carregando o vestígio exacerbado da agressão que sofreu e devolvendo­ ‑lhe o reflexo. Ainda que muitas vezes o género seja injustamente caricaturado como ficção, artifício, notícia falsa, mentira, algo criado na linguagem e que só nela vive, é a crítica da direita que parece nutrir um profundo temor do poder da linguagem. A própria palavra «género» parece lançar um feitiço, sendo preciso dissipar tudo o que se associe à palavra.

Esta obra apresenta alguns argumentos para rebater o movimento contra a ideologia do género, mas este não pode ser o seu principal intuito. Não conseguimos reconstruir inteiramente os argumentos usados por este movimento, pois não obedecem a padrões de consistência ou coerência. O movimento agrega e lança alegações incendiárias de maneira a derrotar, por todos os meios retóricos necessários, o que considera ser «ideologia do género» ou «estudos do género». Não nos cabe só expor­‑lhe o logro recorrendo a competências analíticas mais apuradas, seguindo­ ‑lhes as estratégias e demonstrando que estão erradas. Cabe­‑nos ajudar a fazer nascer um mundo em que nos possamos movimentar, respirar e amar sem receio de violência, com a esperança realista e radical num mundo que já não seja movido pelo sadismo moral disfarçado de moralidade. Por outras palavras, a reacção deve dar origem a uma visão ética e política persuasiva, que exponha a crueldade e a destruição em curso e se lhes oponha. O fantasma do género como força destrutiva quase se torna álibi moral para acabar com todas as pessoas que procuram viver e respirar em liberdade. Assume­‑se uma posição de oposição ao movimento contra o género para podermos respirar e viver sem temer violência. É o começo da visão ética de que hoje precisamos. 

Para nos opormos ao movimento contra a ideologia do género, precisamos de alianças transnacionais que reúnam e mobilizem todas as pessoas visadas pelo movimento. Neste domínio, é preciso converter os combates mutuamente destrutivos em conversas e confrontos produtivos e dinâmicos, por mais difíceis que sejam, num movimento expansivo de igualdade e justiça, para preservar e afirmar as liberdades e poderes sem os quais não podemos viver e a política é injusta. Nunca são fáceis, as alianças. Implicam confrontos hostis e podem ser liquidadas por crueldades mortíferas. 2 Quando os conflitos não são dirimidos, os movimentos ainda conseguem avançar juntos, de olhos postos nas fontes comuns de opressão. As alianças não exigem afecto mútuo: exigem só partilhar a percepção de que é possível derrotar as forças opressoras, agindo em conjunto e avançando com diferenças problemáticas, sem insistir na total resolução destas diferenças. 

Mas determinar a melhor maneira de abordar o movimento contra a ideologia do género apresenta uma dificuldade de outra ordem. É difícil discutir o género como fantasma temível e destrutivo. Quando se posicionam a favor ou contra o género, as pessoas costumam pôr de lado a questão de saber o que é de facto o género ou que significados deve abranger. Mas não deveríamos saber o que estamos a discutir? À direita, os debates de oposição ao género centram­‑se umas vezes na identidade de género, outras na igualdade dos géneros, outras ainda na violência de género. Quando o género é apresentado como identidade que ultrapassa o comum binário ou é estabelecido na identificação do eu, os ânimos tendem a exaltar­‑se. Há quem goste de pensar no seu próprio género como natural e simultaneamente universal: eu sou homem da mesma maneira que toda a gente é, assim o dita a Natureza. Independentemente da designação do género à nascença ou de assumirmos com o tempo um género, as pessoas podem mesmo gostar de ser o género que têm e rejeitar tudo o que incomode este prazer. Tentam exibi­‑lo e celebrá­‑lo, expressando e comunicando a realidade de quem são. Ninguém lhes deve tirar esta alegria, desde que não insistam ser a única possível. Não deixa de ser importante muitas pessoas serem vítimas de sofrimento, ambivalência e desorientação nas categorias existentes, sobretudo na designada à nascença. Podem ser genderqueer, trans ou outra coisa, e procuram viver a vida no corpo que lhes faz sentido e lhes dá a possibilidade de viver a vida, e até de a viver com alegria. Por vezes, vivem nos interstícios que se abrem entre as categorias designadas e os modos vividos de corporização. 3  Também este espaço deve ser protegido e afirmado. Seja qual for o significado do género, para algumas pessoas nomeia certamente um corpo sentido nas suas superfícies e profundidades, a sensação vivida de se ser um corpo assim no mundo. Podemos ser alvo de críticas ou de elogios devido à aparência do nosso género, ou podemos ir parar à prisão, ser alvo de rejeição ou de institucionalização psiquiátrica. Podemos mostrar o género na rua celebrando com as outras pessoas o corpo que habitamos, ou descobrir que as outras pessoas nos designaram um género antes sequer de termos aparecido. Habitar o género é viver uma certa complexidade histórica que hoje é possível nas vidas que vivemos. Por mais que alguém se queira agarrar a uma ideia única do que é ser mulher ou homem, a realidade histórica frustra‑a, e tudo piora quando insistimos em géneros que sempre superaram as alternativas binárias. Com o género vem a vulnerabilidade, a penetrabilidade, a agência, a dependência, a doença, o reconhecimento social, as exigências básicas, a vergonha, a paixão, a sexualidade e condições variáveis de vida e de sentirmos a vida. Assim, é importantíssimo como vivemos esta complexidade e como deixamos que as outras pessoas a vivam.

  1. Karl Marx e Frederick Engels, The German Ideology, Part One, ed. C.J. Arthur (Nova Iorque: International Publishers, 1970), 47 [A Ideologia Alemã (1.º Capítulo), trad. port. José Barata-Moura, 2ª ed. (Lisboa: Edições Avante!, 2020), 23] ↩︎
  2. Bernice Johnson Reagon, “Coalition Politics: Turning the Century”, em Home Girls: A Black Feminist Anthology, ed. Barbara Smith (Nova Iorque: Kitchen Table: Women of Color Press, 1983), 356-60 ↩︎
  3. Cf. Leticia Sabsay, “Body Matters: From Autonomy to Reality”, em The Political Imaginary of Sexual Freedom: Subjectivity and Power in the New Sexual Democratic Turn (Londres: Palgrave Macmillan, 2016), 165-212 ↩︎

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Autor:
3 Março, 2025

Judith Butler lecciona na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e é das principais figuras teóricas contemporâneas do feminismo e da teoria queer. Escreveu obras pioneiras como Problemas de Género: Feminismo e Subversão da Identidade e Corpos Que Contam: Os Limites Discursivos do «Sexo» (publicadas na Orfeu Negro), e tem contribuído amplamente para a renovação dos estudos de género. É também das vozes mais activas no debate actual de questões éticas e políticas, e as suas reflexões filosóficas são indissociáveis de uma postura activista, designadamente no que diz respeito à defesa da causa palestiniana e ao movimento Occupy Wall Street. Em livros mais recentes, Butler tem-se centrado numa ética da não-violência no contexto de colectivos políticos e de movimentos de transformação social. (Ilustração de Mariana Malhão)

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