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Marina Garcés: “Estamos mais conectados que nunca e mais isolados do que nunca”

Marina Garcés (fotografia cortesia de Maria Teresa Slanzi/DR)

Marina Garcés: “Estamos mais conectados que nunca e mais isolados do que nunca”

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Debruçando-se sobre a relação com o espaço e o corpo, a tecnologia e a desmaterialização do capitalismo, o conhecimento e a ignorância, a crítica e o tempo, Marina Garcés mostra-nos a importância de questionar e criticar o que damos por adquirido.

Novo Iluminismo Radical não é o último livro de Marina Garcés, filósofa espanhola. Na verdade, é a quinta entrada na sua lista bibliográfica a contar do presente; apesar disso, a relevância dos temas que trata e a radicalidade das críticas que estabelece conferem-lhe um carácter eminentemente actual.

Como o próprio nome indica, Novo Iluminismo Radical é um livro com uma proposta clara: recuperar a atitude do iluminismo repensando-a radicalmente à luz dos nossos tempos. A autora desafia-nos a resgatar a relação entre o saber e a emancipação mas, para além disso, a repensar a ideia do iluminismo como uma atitude radical longe dos dogmas modernizadores e colonialistas que mancharam o seu projeto inicial. Neste conjunto breve de ensaios, a autora reflete sobre temas que marcam o nosso quotidiano. 

Debruçando-se sobre a relação com o espaço e o corpo, a tecnologia e a desmaterialização do capitalismo, o conhecimento e a ignorância, a crítica e o tempo, Garcés mostra-nos a importância de questionar o que damos por adquirido. E como são essas questões que nos permitem imaginar um futuro, para além do apocalipse que parece dominar a psique ocidental. Em entrevista ao Shifter, a autora revisitou algumas das ideias deste livro, testemunhando a sua actualidade e, com isso, a dissonância entre a durabilidade das ideias aprofundadas – que, pensando na data em que foram escritas, parecem quase premonições – e a efemeridade que marca as nossas vidas quotidianas.  

A filósofa, professora e directora do mestrado em Filosofia para os Desafios Contemporâneos, na Universidade Aberta da Catalunha, autora de livros como Ciutat Princesa (2018), Escola d’aprenents (2020), ou Malas compañías (2022), obras editadas em Catalão, falou-nos ainda sobre a sua obra mais recente O Tempo da Promessa (2023) e a forma como este se relaciona com esta sua primeira obra publicada em português, Novo Iluminismo Radical.

Uma das críticas habituais ao iluminismo tem a ver com a sobreposição entre este e o projecto da modernização colonialista. É preciso reconstruir o iluminismo, como uma atitude permanente, mais do que como uma meta, para que não se percam as suas grandes conquistas e se abra espaço para incluir neste processo novos valores? 

Marina Garcés (M.G.): Para mim é muito importante distinguir o que eu acho que ainda é interessante do Iluminismo, que é o que eu resumo na expressão atitude crítica radical. Uma atitude crítica radical consiste em poder questionar, com argumentos e consequências, os dogmatismos de cada tempo, hoje não os do século XVIII, mas os do século XXI – o que seria um dos projectos de civilização, de mundo, de produção, que surgiu nessa temporalidade histórica, que é o que chamamos de modernidade ou modernização do mundo.

Por isso, para mim, não devemos confundir com a atitude crítica radical iluminista. Podemos fazer uma crítica, precisamente, desse projecto de modernização e das suas consequências sobre o projecto global – o que hoje chamamos de globalização ou capitalismo global – sem renunciar ao legado do pensamento crítico e emancipatório.

Parece-me que há uma espécie de falta de interseccionalidade na visão do iluminismo.

M.G.: Sim, e para mim é perigoso que a crítica à modernização e às consequências se converta numa impugnação, incluído de tudo o que foram ferramentas, histórias e promessas por cumprir das lutas emancipatórias. E torna-se numa espécie de idealização muito acrítica para mim, falsificadora do que seria o mundo pré-capitalista, pré-moderno, ancestral, orgânico, primitivista. Como se antes desse momento houvesse um equilíbrio entre o mundo, a natureza e as sociedades, e não houvesse também a necessidade de investigar as diferentes formas de exercícios de poder, de desequilíbrios entre o humano e o natural, e muitas outras formas de violência acumuladas ao longo da história. Nesse sentido, penso que o olhar crítico tem de se mover no tempo e no espaço, e poder, mais do que julgar umas formas de vida sobre as obras, perceber que alianças são possíveis entre diferentes formas de luta pela emancipação.

“Se algo é difícil no nosso tempo, é a multiplicidade de escalas para as quais temos de encontrar respostas. E estas escalas são espaciais e temporais.”

Logo no primeiro capítulo do ensaio fala de insustentabilidade, e começa por deixar a definição em aberto — capitalismo, consumismo, o que lhe quisermos chamar. Evitar nomear diretamente o capitalismo pode ser positivo, e uma forma de evitar cair num discurso demasiado auto-referencial sobre o fim do capitalismo? O capitalismo pode bem acabar e ser substituído por algo pior, como um tecno-feudalismo, por exemplo, e por isso é mais importante focar nos processos e não nos rótulos?

M.G.: Temos uma tendência, talvez, porque pensamos e trabalhamos com ferramentas muito rápidas (nas redes sociais, nas formas de ler, de discutir, até mesmo de produzir ideias e análises no âmbito académico) e cada vez mais descontextualizadas, a situar tudo entre um antes e um depois. Antes da modernidade capitalista, e também o fazemos para o futuro, com o depois. Parece que o futuro só pode ser a catástrofe absoluta, o colapso, a extinção ou uma espécie de depois — tecno-utópico ou pós-capitalista, o que for. Acho que é uma redução da complexidade a um simplismo muito dualista e muito básico. Claro que isso pode ter os seus efeitos de tranquilização ou atenuação das nossas angústias e mal estares contemporâneos, mas a história tem mostrado como é um tecido com muitas linhas; se falarmos de interseccionalidade, há que a olhar para o tecido histórico não como uma linha do tempo que vai cortando os acontecimentos num antes e num depois, mas como algo que vai produzindo desvios, encontros, desencontros, pontos de inflexão. Isso é precisamente aquilo com que trabalha o pensamento crítico e a acção política, com toda a multiplicidade de significados, com as quais há que aprender a discriminar, a compreender e também a intervir. Se algo é difícil no nosso tempo, é a multiplicidade de escalas para as quais temos de encontrar respostas. E estas escalas são espaciais e temporais.

Há questões muito urgentes que são consequências de processos de muito longo prazo e, pelo contrário, há questões que não podemos resolver hoje mas que estão a ser causadas no dia-a-dia. E o mesmo acontece com o espaço, há questões muito locais, por exemplo: aqui onde vivo, na Catalunha estamos a passar por um período de seca que é uma questão que nem é comum a todos os territórios da Península Ibérica, mas que obviamente tem a ver com as alterações climáticas globais. Então o que fazemos com toda esta multiplicidade de escala se produzirmos análises tão simples e delimitadas?

E nesse sentido, fazer as nomeações do capitalismo ou de outro adversário único até pode tornar estas lutas menos mobilizadoras. Há uma ideia no livro que me parece que se relaciona com isso, que é “unimo-nos para reagir na emergência e não para experimentar” – é um pouco isso, não é? 

M.G.: Sim, da mesma maneira, cada vez mais funcionamos com grandes abstrações. Mesmo nós nesta conversa utilizamos algumas delas, como capitalismo, globalização, etc. E ao mesmo tempo, com conceitos e noções cada vez mais particularistas, em termos de identidade, violência e vítimas, de localização de determinadas emergências e problemas. E penso que isso não é um erro intelectual, ou conceptual, acho que temos o ver como um sintoma. 

Parece que só conseguimos pensar em grandes abstrações ou em reações e localizações não só particulares, mas particularistas, que partem de uma descrença na capacidade de pensar em colectivo, de responder a problemáticas que vão para além do que afecta a cada um. E é por isso que, para mim, isto é um sintoma, não tanto da tentativa de encontrar explicações únicas – que isso foi feito precisamente por toda essa modernização do conhecimento e do mundo, que hoje devemos não só criticar mas como encontrar resposta para todas as crises que produziu –, mas desta dificuldade de mediar, transitar, veícular, questões que se passam em níveis e contextos muitas vezes sobrepostos, mas distintos. Isso é o mais difícil hoje em dia.

A questão das várias escaladas parece-me muito interessante. No livro cita Gunther Anders e a obsolescência do homem e eu gostava de relacionar isso com esta expansão da nossa vida para o digital, que também altera muito a escala. O facto de esta transição ser muito confortável, na medida em que há uma grande personalização da experiência, também acaba por ser parte da causa desse sintoma? Há muito investimento em nos fazer sentir confortáveis nas redes sociais, na internet. Não há grandes incentivos à mudança, digamos assim. 

M.G.: Esse é o grande paradoxo das vidas digitais. É que, por um lado, parecia que eram a promessa de um acesso livre e igualitária a uma multiplicidade não hierárquica de conteúdos, de contactos, de relações, e também de produção, de conhecimento, de informação e, em troca, o que estamos a fazer é articular mundos auto-referenciais. E esses mundos auto-referenciais são construídos, muitas vezes, à defensiva, ou à ofensiva – que são duas faces da mesma moeda – , e retroalimentam-se em vez de se contagiar. Todos os imaginários deviam contagiar-se, hibridizar-se; devia haver contacto entre mundos desconjuntados, entre idades, entre modos de vida, e tudo isso parece virado do avesso. Constroem-se cada vez mais mecanismos de imunidade, que promovem a retroalimentação. Por isso estamos mais conectados que nunca e mais fechados do que nunca. É um paradoxo tremendo desta experiência do mundo digital. Porque, para além disso, não temos essa percepção. Pensamos que é ao contrário, que estamos abertos a tudo, que o nosso telemóvel no bolso é uma janela para o mundo. 

Se tivéssemos a experiência de privação da liberdade – que ainda hoje existe – em que não pudessemos aceder a determinados conhecimentos, a determinada educação, não pudéssemos ir a determinados sítios, provavelmente acabaríamos por nos revoltar contra essas formas de encerramento. Mas a sensação digital não é de clausura, é de abertura, a sensação é a de livre acesso a um mundo aberto quando o que estamos a fazer é todo o contrário. Neste caso penso que falta muita educação, mas não no sentido prescritivo de dizer como fazer as coisas, mas num sentido crítico, aprender a perceber a perceber o que realmente se está a passar quando acreditamos que estamos a fazer uso da nossa liberdade ou dos nossos desejos no ambiente digital.

“Se tivéssemos a experiência de privação da liberdade – que ainda hoje existe – em que não pudessemos aceder a determinados conhecimentos, a determinada educação, não pudéssemos ir a determinados sítios, provavelmente acabaríamos por nos revoltar contra essas formas de encerramento. Mas a sensação digital não é de clausura, é de abertura”

E há outra questão que se relaciona com o que falávamos há pouco, sobre a  seca. É que nós não associamos o digital à seca, o digital parece limpo e termos com cloud contribuem para esse imaginário. Parece que o mundo digital tapa o real de certa forma. 

M.G.: Sim, esse é o outro paradoxo. Não só o mundo digital a nível estético parece limpo, luminoso e leve, como também muitas das primeiras análises – algumas até vindas da esquerda e de um pensamento crítico – se relacionavam com o conceito de capitalismo imaterial. Havia uma certa ingenuidade histórica nisso. Nem sabíamos tão bem como se produzia e sustentava um mundo de dados. Não só a nível tecnológico mas também a nível humano, laboral, planetário. Por isso, hoje compete-nos devolver essa materialidade aos dados. Não só tecnológica, não só energética, mas também humana. Quem limpa os dados feios das nossas redes são pessoas, cérebros, corpos que estão sujeitos a certas condições laborais e certas condições de vida. Tudo isso também são elementos que teríamos de incluir, não só na análise teórica e crítica dessas realidades, mas também no nosso dia a dia, nas nossas vidas como consumidores e cidadãos, devíamos procurar entender para poder encontrar outro tipo de perspectivas e usos.

Outro conceito fundamental no livro é o da condição póstuma. Eu associo isto a uma espécie de contraste com um certo hiper-realismo das redes sociais – estamos a ver guerras em directo, efeitos da crise climática, etc. Parece que estamos a ver a vida a passar-nos à frente, o que nos gera ansiedades e empurra para essa tal condição póstuma. 

M.G.: Esta é uma noção que, quando o livro saiu em Espanha, há 5 anos, talvez parecesse mais exagerada do que agora. De certa forma, parecia um pouco uma retórica catastrófica, ainda que esteja introduzida no ensaio como uma ferramenta crítica contra o que o que no ensaio se chama o dogma apocalíptico – dar por inquestionável a ideia de que algo essencial do nosso mundo acabou. 

O apocalipse não é só uma questão literal, de extinção, ou de catástrofe, mas também de revelação de um final, que é o que realmente significa o termo. A pergunta mais importante é: porque é que aceitámos este final e o que é que isso quer dizer? A questão não é se os mundos acabam, porque isso já vimos; vimos como a humanidade destruiu muitos mundos ao longo da sua história e de formas recorrentes, umas vezes por colapso interno, como mostraram estudos fantásticos de historiadores e antropólogos em estudos sobre determinadas civilizações, mas também por destruição, por invasão de uns sobre outros. A questão é: o que estamos nós a fazer a respeito desta história? O que fazemos nós, habitantes do mundo atual, e especialmente das sociedades mais ricas, em relação ao que chamamos mundo – seja o planeta ou uma determinada concepção própria? E de algum modo parece que o damos por acabado. 

Alguns, desta condição póstuma do nosso presente, extraem imaginários de futuro noutros mundos, seja num sentido planetário (todos esses milionários a imaginar novas colónias em Marte) mas também noutros mundos imaginários. E daí também surgem muitas fantasias utópicas da nossa indústria cultural, ou fantasias psíquicas. Algo tem de acabar para que se comece de novo

Eu penso que parte da nossa ansiedade contemporânea, se não pudermos ir a Marte e não acreditarmos no transhumanismo, é que temos esta ideia de que algo tem de se partir, acabar de todo, para que algo de novo possa começar. Mas estes imaginários têm um susbtrato muito religioso, que não tem de passar diretamente pela fé mas por uma influência cultural muito ligada a essa ideia de morte e renascimento, de condenação e salvação, de acabar para começar. E eu não acho que as histórias humanas, em toda a sua multiplicidade, funcionem assim. Embora perceba que talvez às vezes precisemos de pensar assim para nos tranquilizar, porque no fundo há algo consolador em pensar que podemos morrer e renascer.

Mas bem, de qualquer modo acabamos por colocar-nos nas mãos dos deuses e que façam o que quiserem. E não sei se é assim que funcionam as sociedades e que evolui a história da humanidade, sobretudo tendo em vista o que, para mim, é um compromisso necessário com a justiça possível e a dignidade radical do que pode ser a vida.

Acha que essas condições também ajudam a explicar a extinção da extrema-direita.  Porque se propõe a ser simplistas, figuras autoritárias, o retorno à ordem, há aqui algumas ideias comuns. 

M.G.: Sim, totalmente. Há esta relação de aceitação de que algo que damos por adquirido não poder ser recuperado e, por outro lado, uma ideia de que só se nos colocarmos nas mãos de algo ou de alguém é que nos podemos salvar. Hoje, esse é o alimento perfeito de todas as tentações reacionárias de muitos tipos, político, religioso, mas também de tipos escatológicos. Mas, sobretudo, para a resposta política encontrada pela extrema-direita, e pela direita não tão extrema. 

Face à impotência que causa tanto mal estar, poder delegar a solução, poder atribuir a algo ou a alguém que pode saber decidir e actuar num contexto em que não sabemos o que fazer, até mesmo sabendo que isso não é totalmente certo, tem consequências. E isso é algo que está a acontecer em todos os nossos países. Mas também temos de perceber até onde é que esse desejo é sustentável, porque depois a acção política não provoca as mudanças nem as soluções mágicas, nem a maneiras de realmente nos salvar. E aí, parece-me que começam outros conflitos e se dá a perpetuação do conflito, sem um deslocamento real transformador e/ou criativo que seria importante.

Uma ideia a que dá muita importância no livro, é a ideia de ‘crítica’. O que é que acha que fez com que a crítica acabasse com tão má fama? Parece que hoje em dia achamos que criticar é uma coisa má, quando na verdade criticar pode ser uma forma de valorização, até. 

M.G.: Sim, é curioso porque em poucos anos a palavra “crítica”, quer como adjectivo quer como substantivo, tornou-se muito incómoda, porque facilmente entendemos que não é o momento para começar a questionar seja o que for. Há a ideia de que agora estamos numa emergência, num momento de excepcionalidade e que a crítica é algo que vai tornar a resposta mais lenta. Que é um obstáculo para encontrar aquilo a que chamamos de ‘a solução’. E de que agora é um momento das soluções e não das perguntas. Mas é claro que é a crítica e o pensamento crítico que nos levam até às boas perguntas. E só a partir de boas perguntas se encontram boas respostas. Mas, hoje em dia, isto é algo que soa retórico, redundante e até problemático.

Isso é preocupante porque não poder perceber em conjunto, em todos os âmbitos da sociedade, quais são os nossos problemas comuns, faz com que quem controla a agenda no nosso tempo seja quem, na realidade, esteve a dirigir e a definir as soluções possíveis até aqui. Então qual é a agenda? Aqui falo não no sentido empresarial, mas de problemáticas onde devemos focar toda a inteligência, todo o desejo, todo o conhecimento, a coragem, a criatividade, para realmente encontrar boas soluções. É claro que precisamos de soluções para muitas coisas, mas, como dissemos antes, é preciso perceber a que nível e para quem. E quem pode participar nelas? Que modos de vida? Que saberes? A partir de que epistemologia? De que expectativas? Hoje existe uma espécie de entidade abstracta que pensa por nós, e quanto muito podemos dar pequenos inputs, mas a crítica é muito penalizada e reprimida.

“É claro que precisamos de soluções para muitas coisas, mas, como dissemos antes, é preciso perceber a que nível e para quem. E quem pode participar nelas? Que modos de vida? Que saberes? A partir de que epistemologia? De que expectativas? Hoje existe uma espécie de entidade abstracta que pensa por nós, e quanto muito podemos dar pequenos inputs, mas a crítica é muito penalizada e reprimida.”

Essa ideia de que a crítica vai atrasar o progresso tem sido muito comum nas discussões em torno da Inteligência Artificial, precisamente com esse argumento de “isso só vai atrasar o progresso porque a inteligência artificial vai nos entregar um progresso fantástico”. Esta reação que estabelecemos, por exemplo, com a IA, acaba por ser um pouco também a mesma que fazemos com os políticos populistas. Não sabemos se vão resolver algum problema, mas depositamos muita fé.

M.G.: Mencionas uma coisa interessante que é como no âmbito da tecnologia e da ciência qualquer crítica é diretamente apelidada de negacionismo. Negacionismo com todas as consequências: de primitivismo, de negação do progresso, de estar contra as melhorias colectivas de vida. Estamos a vê-lo com a Inteligência Artificial e essas tecnologias, mas também o vimos durante a pandemia, com a questão das vacinas e de toda a ciência médica implicada na resolução do problema. Claro que precisávamos de respostas, e aí sim estávamos numa situação em que precisávamos de encontrar respostas muito rápidas, mas isso não quer dizer que não pudesse haver múltiplas maneiras de nos aproximarmos dessa solução ou soluções. Porquê uma só? E porquê de forma inquestionável, em todos os seus pressupostos, em todas as suas maneiras de funcionar, com todas as questões que implica? Nessa altura vimos claramente que qualquer pergunta era diretamente atacada com esse estigma do negacionismo. Mas perguntar não é negar.

Já que tocámos no da tema Inteligência Artificial, gostava de falar do corpo, que também tem espaço nas suas reflexões. Este reencontro com o iluminismo também pode passar por este resgate do corpo? 

M.G.: Sim, se entendermos o Iluminismo, como dizíamos no início, como uma atitude crítica radical que nos permite questionar os dogmas de cada tempo, estamos muito longe de uma ideia de Iluminismo como racionalismo ou como uma filosofia baseada somente na intelectualização do mundo. Essas são outras questões e outras correntes que hoje encontramos em algumas perspectivas da neurociência e que daí derivam para a tecnologia, de que somos como espécie de grande cérebro cognitivo, que é um pouco a actualização deste intelectualismo. Mas eu penso que se existe alguma coisa nesta atitude crítica radical, é algo que noutros tempos se chamou a arte dos limites. A crítica tem a ver com isso, com fazer emergir os limites que estão implícitos em cada visão do mundo, em cada visão de nós mesmos como seres humanos relacionados com outros tipos de corporalidade, de experiências do mundo, de vidas.

Aí está um trabalho muito minucioso da crítica que não é um juízo de uma mente que se sobrepõe à nossa corporalidade e sensorialidade, mas pelo contrário. Descobrir a partir daí como se vinculam as diferentes dimensões da nossa experiência, quais são as suas condições de possibilidade, como se transformam. Todas estas questões surgem. E por isso neste momento em que estamos a dizer que o mais imaterial é cada vez mais material, que o mais distante é o que está mais próximo, em que um mundo de dados nos chega sem saber de onde interage de forma dolorosa e bastante concreta sobre as nossas formas de amar, de sentir, de nos vermos – porque afinal de contas agora nos vemos através de um pequeno quadrado, como tu e eu nesta conversa de Zoom – tudo isso está a modificar os nossos sentidos. Mas não está a anulá-los; está a transformá-los e a conduzi-los a um lugar onde também precisamos de estéticas políticas. De fazer um trabalho a partir do concreto, com toda a materialidade e carnalidade. Mas não a partir de um lugar nostálgico ou de uma ideia de que estamos a perder o nosso corpo. Como explica o Foucault com as heterotopias, o corpo humano sempre esteve deslocado, desde a máscara até ao desenho de uma mão numa caverna, sempre deslocámos a nossa corporalidade em muitas instâncias, e isso faz parte da cultura – no sentido de perceber que efeitos tem, que danos produz, que mal estar desperta; mas também que formas de experiência e desejo se tornam possíveis.

“Quem somos em relação com as nossas proximidades e as nossas distâncias? Quem somos nós, quem são os nossos, quem são os outros? Dão-se formas muito violentas de afastamento do que está mais próximo. E isto pode passar-se no departamento universitário, nas escadas entre vizinhos, no bairro, em qualquer sítio.”

Quando se fala de corpo é inevitável falar de espaço, o espaço onde está esse corpo e que serve tantas relações – entre elas políticas. Concorda com a ideia de que a digitalização se tornou também numa espécie de colapso do espaço e que é preciso politizar esta relação com o nosso redor? Há uma citação do livro que me parece espelhar bem esta ideia, quando diz que colegas de gabinete de uma Universidade mal conhecem os trabalhos uns dos outros.

M.G.: Sim, a questão do espaço público é um dos elementos de continuidade que mostram como se transformaram as sociedades modernas a partir do momento em que a urbanização da vida cruzou muitas experiências do mundo em tempo real, modos de trabalhar, de circular, de trabalhar, de consumir, de se reproduzir. E, por outro lado, também temos de olhar para o desenvolvimento, agora exponencial e historicamente sempre muito intenso, da esfera pública, entendido no sentido cultural. A esfera pública, que era a República das Letras num determinado momento, era algo muito restrito a determinadas classes sociais e modos de acesso à cultura, e hoje é um magma interminável – tanto de meios de comunicação, de redes sociais, de formas de consumo, de encontros, até ao infinito. E quem somos nós no meio disto tudo? Quem é cada um? 

Nessa esfera pública que é um quase como um fractal de mundos desconexos, ao ponto de não conhecermos o que está próximo e podermos estar, simultaneamente, numa relação quotidiana com mundos totalmente distantes, há uma questão de subjectivação complicada. Quem somos em relação com as nossas proximidades e as nossas distâncias? Quem somos nós, quem são os nossos, quem são os outros? Dão-se formas muito violentas de afastamento do que está mais próximo. E isto pode passar-se no departamento universitário, nas escadas entre vizinhos, no bairro, em qualquer sítio. Quem vive, trabalha ou pensa perto de nós é quem nos parece mais alheio, ao ponto da rejeição, da violência e da negação do outro. E em sentido inverso, há formas de afastamento que nunca teriam estado próximas e que se transformam em alianças. Então, como se sustentam essas alianças? De que maneira interagem e nos transformam?

Visto que falamos em esfera pública e no digital, há uma componente fundamental de abordar, os algoritmos. Parece que hoje em dia a nossa presença pública tem de se acomodar aos algoritmos que desconhecemos mas acabam por ter um papel fundamental na governança do espaço público…

M.G.: Completamente, e também há outro paradoxo. Herdámos um imaginário da ciência como sendo neutra. Quase que uma oposição aos humanos que são emocionais e parciais, que nos enganamos e nos aborrecemos. A máquina é fria, é racional; tem aquilo que não temos. E isto não vale para nenhuma tecnologia, muito menos para os algoritmos. São um elemento de interação constante com os dados, que constantemente produz desvios nas formas de olhar aquilo que processa. 

Com isso também tem haver uma educação para a compreensão de algo em que não podemos tocar. Porque não podemos tocar nos algoritmos, mas temos de começar a compreendê-los. Porque se não o fizermos acabamos por atribuir características que não tem como esta ideia de omnivisão e de neutralidade.

No livro estabelece a diferença entre o ‘saber que’ e ‘saber como’. Parece-me que é um desses casos, sabemos que os algoritmos existem, mas não sabemos como funcionam. Também a tal referencialidade do capitalismo expressa o mesmo, sabemos que é o capitalismo mas não sabemos como influencia os fenómenos. É importante essa transição? Tentar saber mais como para além do que? 

M.G.: Sim, a partir daí é importante analisar que formas de ignorância cria cada forma de conhecimento. Isto é algo que se tem estudado cada vez mais. Porque temos uma ideia muito acumulativa do conhecimento, quanto mais conhecimento, menos ignorância, mas o que acontece é que cada novo conhecimento ou novo tipo de conhecimento provoca formas de ignorância correspondentes. E actualmente temos uma tão grande quantidade de informação, um acesso tão grande a conhecimento, que o que nos está a tornar muito ignorantes é podermo-nos relacionar com tudo isso. Como nos relacionamos com tudo o que sabemos? Como nos relacionamos com tudo o que está nas nossas mãos, que não sabemos como funciona, mas influencia constantemente a nossa forma de ver o mundo? Há uma caixa negra. Na filosofia da ciência crítica-se desde sempre esta ideia de caixa negra, e hoje temo-la nas nossas mãos. Como a abrirmos, e geramos a partir daí uma visão mais crítica. É o que no livro chamo de analfabetismo ilustrado [em espanhol ilustrado relaciona-se com ilustracion, iluminismo]. Por um lado somos ilustrados, porque podemos aceder a todo o tipo de conhecimento, mas por outro há um novo analfabetismo, o de sermos impotentes perante esses conhecimentos, saberes, e ferramentas que temos nas nossas mãos. Não sabemos o que fazer com eles. É como ter o alfabeto e não saber escrever. Hoje temos uma situação semelhante.

“E actualmente temos uma quantidade tão grande de informação, um acesso tão grande a conhecimento, que o que nos está a tornar muito ignorantes é podermo-nos relacionar com tudo isso. Como nos relacionamos com tudo o que sabemos?”

Diz-nos a certo ponto que as humanidades estarem em crise significa uma disputa pelo sentido do humano. O que pergunto é se não estamos a atingir uma espécie de limite, com o humano reduzido a um enquadramento produtivista. Uma espécie de último update do capitalismo imaterial em que o produto somos nós e a nossa constante conversão para o mundo dos dados. 

M.G.: Sim, é como se o capitalismo atual desse uma volta sobre si mesmo. Já não há exterioridade, somos nós mesmos um produto constantemente e, para além disso, sempre acabado; algo que tem de gerar mais e mais valor, até quando falha. Talvez aquilo a que chamamos crise seja esta falha constante da visão de nós mesmos como produto, cada um com as suas crises psicológicas, os seus mal-estares, mas também como sociedades e no conjunto como humanidade. Em vez de parar e pensar – não num sentido contemplativo , mas no sentido de termos tempo para nos desviarmos dessas lógicas – acabamos por seguir na mesma direção. E também se dá essa volta solucionista dentro do próprio capitalismo. Quando não se pode continuar a produzir determinada coisa, temos de produzir as soluções para os danos que acabámos de criar. Por isso, acho que há necessidade de interromper este ciclo, tanto através da acção como do pensamento, estas lógicas que muitas vezes não vemos como produtivistas mas também o são.

S: Por último, gostaria que nos falasse um pouco sobre o seu último livro O tempo da promessa e como se relaciona com este — ainda que já tenha publicado outros dois pelo meio. 

M.G.: O livro retoma e continua de forma muito clara a pergunta que surge no Novo Iluminismo Radical sobre o tempo partido, sobre este tempo póstumo, a nossa incapacidade de nos relacionarmos não só com um futuro imaginável, mas também com uma experiência da própria temporalidade da vida. Isto é enquadrado em relação à capacidade, ou não, de prometer, hoje, ou de viver no mal estar provocado por promessas não cumpridas, ou traídas, ao longo da história recente e atual do mundo e das nossas sociedades. A partir daí percorro também o papel que promessa tem como palavra de poder: por um lado Deus, Estado, Capitalismo são poderes construídos sobre a potência de promessas soberanas. E por outro, sobre o papel da promessa nas lutas de emancipação, pela transformação e pelas justiça social; são promessas feitas a partir de outro lugar, de outro tipo de relação com a palavra e com o tempo. Depois faço uma incursão sobre como pensar o tempo do presente, tão acidental e tão catastrófico.


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  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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