Ao longos dos milénios sobre os quais há registos da civilização, a história da Humanidade e a evolução das suas formas de organização passaram quase sempre pelas bibliotecas. Na Grécia antiga, a biblioteca de Alexandria foi um ponto nevrálgico de desenvolvimento social. Dedicada à preservação do conhecimento, desempenhou um papel fundamental não só na centralização e conservação física de milhares de documentos escritos à época, como difundiu novas perspectivas sobre a importância do conhecimento. Durante séculos, a importância dada à palavra escrita e a dedicação à actividade intelectual fizeram com que a biblioteca se tornasse num ponto de paragem para intelectuais, estudiosos e investigadores, ganhando com isso a importância simbólica de que hoje continua a gozar.
Não tendo sido a primeira do género, num tempo em que já era relativamente comum a existência de bibliotecas, foi a forma como a biblioteca de Alexandria se interligou com o tecido social que lhe conferiu a importância que é reconhecida por muitos. Entre estes, sublinhe-se o cientista e divulgador científico Carl Sagan, que, num dos seus mais famosos livros, Cosmos, se debruça amiúde sobre este símbolo da antiguidade. Sagan relata a lenda de que Alexandre, O Grande, seria um respeitador das diferentes culturas, de diferentes deuses e criaturas, e que quisera fazer da sua cidade o centro da cultura e da aprendizagem no mundo, ordenando por isso a construção da prodigiosa biblioteca. Mais à frente, questiona o leitor sobre como seria o mundo se vinte e três séculos depois do fim desse espaço não existissem registos físicos do conhecimento. Sagan sugere que muito pouco saberíamos sobre o passado se dependêssemos da informação oral e conclui este raciocínio com uma profecia: a sanidade das civilizações, a profundidade do seu conhecimento sobre o passado e sobre o futuro, depende do apoio dado às bibliotecas.
Volvidos mais de 40 anos desde a sua redação – quase tantos como do cunho do conceito ‘Sociedade da Informação’ –, é interessante recuperar esta afirmação e questioná-la em contexto. Segundo o Inquérito às Práticas Culturais, realizado em 2020 pelo Instituto de Ciências Sociais, 80% dos portugueses afirma não ter visitado qualquer biblioteca – na sua maioria, alegando encontrar a mesma informação noutras fontes. Anos antes, Bruno Eiras, da Direção-Geral do Livro, Arquivos e Bibliotecas (DGLAB), dizia numa entrevista que os portugueses não sabem exactamente para que servem as bibliotecas. Numa conversa recente com o Shifter, a investigadora Tatiana Sanches, da Associação Portuguesa de Bibliotecários, Arquivistas, Profissionais da Informação e Documentação, resumia a sensação numa expressão inequívoca: “As bibliotecas tornaram-se transparentes”. Assim, surge a questão sobre qual será o seu futuro e como podem contribuir para a sanidade da sociedade?
Não há dúvida de que as bibliotecas atravessam uma fase verdadeiramente transformadora. No caso português, particularmente, depois de terem tido bastante impacto no princípio do processo de alfabetização que se seguiu ao 25 de Abril, estes espaços parecem ter caído no esquecimento. Ou, por outro lado, ter-se perdido à sombra do preconceito de que são espaços ultrapassados e redundantes face ao manancial de informação de que dispomos online ou à falta de ligação dos portugueses aos livros – esses pequenos objectos que habitualmente simbolizam o trabalho das bibliotecas, mas que pouco dizem sobre a sua transformação.
Com maiores ou menores investimentos, nos últimos anos o papel das bibliotecas tem-se transformado por completo. Como afirma Tatiana Sanches, “independentemente de trabalhar com conhecimento e informação, as bibliotecas trabalham com pessoas e para pessoas”; e é esse desígnio que lhes permite perceber o caminho que traçam em paralelo com as sociedades. Se outrora foram fulcrais a ensinar uma população a ler, hoje os desafios divergem mas o devir social mantém-se, apostando noutras dimensões fundamentais como a literacia digital. Para as bibliotecas, formatos são só formatos, mas a informação neles não é só informação; é também o potencial de formar pessoas, e é nesse cruzamento que se vislumbra o seu futuro.
Numa altura em que muitas vezes se vende a promessa de uma internet com conteúdo infinito, e onde podemos encontrar tudo, são muitos os sinais da fraca qualidade do conhecimento que por lá se gera. Byung-Chul Han, filósofo alemão, dizia numa entrevista recente que a informação hoje em dia é veiculada de forma aditiva e que, na ausência de narrativas que a contextualizem, perde o seu sentido. Na mesma entrevista, refere que as redes são, dessa perspectiva, anti-sociais e que o caminho que levamos conduzirá à desintegração das comunidades. “A informatização da realidade leva à sua atomização – a esferas separadas do que é visto como verdade”, refere.
A mediação da informação por algoritmos desconhecidos do público, o consumo passivo sob a forma de sugestões que nos chegam aos feeds ou resultados a uma pesquisa rápida, ou os filtros de bolha em que toda a gente parece pensar como nós, são fenómenos próprios dos tempos e símbolos de uma relação com a informação cada vez mais individualizada. Um contraste completo com a sociabilidade que fez da Biblioteca de Alexandria um mito.
A tecnologia enquanto ferramenta de conhecimento
Estudos publicados recentemente, como “Information without knowledge: the effects of Internet search on learning”, sugerem que a relação das pessoas com a informação online pode ser mais inconsequente. Nas conclusões desse artigo escrito por dois investigadores norte-americanos da área do marketing e um da psicologia, continua a reconhecer-se o potencial inegável da internet e outras tecnologias de informação, mas os resultados da experiência sugerem que perante tanta informação se pode tornar complicado o processo de decidir o que conservar na memória, e que simultaneamente há uma certa propensão para se achar que se sabe mais do que realmente se sabe. Numa reportagem publicada em 2021, a revista digital The Verge dava conta de que estudantes do ensino superior tinham perdido o hábito de organizar os seus documentos por pastas, optando por guardar tudo no ambiente de trabalho e usar ferramentas de pesquisa depois.
Estes dois exemplos, embora distantes e apenas aqui coincidentes, mostram uma tendência para delegar o controlo da informação a meios tecnológicos, e indiciam as consequências que isso pode ter de um ponto de vista social. E se estas alterações são praticamente tentativas de sobrevivência, numa altura em que produzimos informação a um ritmo verdadeiramente estonteante – em 2018, calculou-se que entre 2016 e aquele ano se produzira 90% da quantidade de informação existente até então e que a tendência era de crescimento contínuo –, o potencial da tecnologia neste domínio não pode ser desprezado.
Utilizada como ferramenta de processamento e organização ao serviço de pessoal dedicado e empenhado em dar sentido aos dados. E não como um terminal para consumo passivo. As mais sofisticadas tecnologias — do OCR aos modelos de Inteligência Artificial — podem ser aliadas poderosas na criação de sentido e valor a partir da informação. No aumento geral do nível de educação das sociedades.
Em 2016, a OCDE considerou a Finlândia o país mais letrado do mundo, num extenso relatório que avaliou critérios desde os jornais existentes, disponibilidade de computadores nas escolas até à proliferação das bibliotecas. No país, o desenvolvimento das bibliotecas tem sido notório, resultado de um investimento público concreto. Estima-se que em 2018 se tenha investido 50 € por habitante na rede de bibliotecas, e a relação das pessoas com o conhecimento parece tirar proveitos dessa priorização. Não é por acaso que quando pesquisamos por bibliotecas do futuro no Google um dos resultados seja “Oodi”, uma das principais bibliotecas da capital, construída como um símbolo da dedicação à causa da educação.
Sem descurar a importante presença dos livros, a biblioteca de Oodi tem auditórios, telas de cinema, espaços de trabalho, salas de reuniões e outros espaços com diferentes ergonomias que convidam à leitura, estúdios de gravação, cozinha, impressoras 3D e outros materiais de construção, assim como um salão de jogos. Apresenta-se não como mais do que o espaço austero e conservador dedicado ao armazenamento que pode surgir na imaginação de quem não entra numa biblioteca há décadas, mas como um espaço vivo e criativo ao serviço da comunidade.
Promovendo experiências, conferências, debates, unindo a comunidade em torno de informação com valor, as bibliotecas podem ser o ponto de novos começos e desenvolvimento participativo. E a tecnologia pode ter o seu papel nestas bibliotecas do futuro; na mesma biblioteca, “Oodi”, o Obotti é o chatbot que complementa o serviço humano permitindo aos utilizadores aceder a sugestões de conteúdos nos seus dispositivos. Esta aplicação faz parte de uma aposta global da cidade de Helsínquia em desenvolver Inteligência Artificial com impacto social concreto e em que as pessoas podem ter uma palavra a dizer. Pela proximidade das instituições que desenvolvem os algoritmos e o interesse destas em recolher as opiniões dos utilizadores e desenvolver em nome do bem comum, mostra-nos como a partir da biblioteca se podem gerar outras formas de interação com o mundo digital. E até diferentes modelos de desenvolvimento tecnológico.
Numa altura em que os modelos de Inteligência Artificial generativos assombram a sociedade, sobretudo fruto de um desconhecimento do que é de facto esta tecnologia, e de uma dificuldade em acompanhar os desenvolvimentos com espírito crítico, não é demais sublinhar esta segunda dimensão. Num outro relatório feito pela consultora Oxford Insights, a Finlândia surge como o 4º país do mundo mais preparado para a área da Inteligência Artificial — Portugal surge em 25º. Este posicionamento não é acaso, mas, mais uma vez, parte de uma estratégia. Em 2017, o governo finlandês lançou o projecto Tekoälyaika, cujo objectivo era que pelo menos 1% da população tivesse acesso a educação sobre Inteligência Artificial. Esse esforço deu lugar ao mundialmente disponível curso “Elements of A.I.” , mas não só; despertou o país para importantes questões, como a necessidade de uma visão política articulada para tirar proveito máximo das tecnologias.
Teemu Roos, um dos cientistas de computação responsável por este projecto, dizia, já em 2019, numa entrevista ao Media Hub de Ciência do Parlamento Europeu: “As questões mais importantes não são propriamente tecnológicas – são políticas. Para moldar democraticamente estas decisões, são necessários amplos debates públicos. Se algumas populações estiverem mal representadas, este debate não será possível.”
Usando o espaço de forma criativa, adaptada às necessidades emergentes e explorando tendências inovadoras que as tornem mais apelativas, as bibliotecas podem ter um papel centralizador no complexo mundo da informação – o seu papel não tem de ser apenas passivo. Para além de tornarem o conhecimento concreto, dando-lhe uma dimensão física, podem também ser o grande espaço de promoção da activação social. São espaços fáceis de situar na geografia da informação e podem a partir desse lugar criar constantes ensaios do que é o espaço público, como pensado por Habermas. Um lugar social no qual indivíduos, independentemente do seu género ou credo, podem discutir racionalmente os mais diversos assuntos.
Para Habermas dois dos critérios fundamentais deste processo seriam a sua abertura à sociedade e o acesso à informação; dificilmente nos dias que correm conseguimos imaginar outro lugar que lhes corresponda tão bem como uma biblioteca. É nesse sentido que o futuro destes espaços depende menos da aplicação desenfreada de novas tecnologias e um embarque no tecno-solucionismo, e mais de um foco na comunidade, que gere interesse das pessoas pelo conhecimento, tornando-o realmente empoderador e libertador.
O futuro das bibliotecas não é no metaverso. É num universo onde estas sejam cada vez mais visíveis e a sua acção seja cada vez mais participativa. Na sociedade da informação, as bibliotecas podem ser o verdadeiro espaço do conhecimento.
Texto originalmente publicado no Goethe-Institut Lisboa no Dossiê de Futuro.
O Shifter participa no dia 11 de Maio no evento Memórias Digitais, inserido no ciclo Futuro do Conhecimento, organizado pelo Goethe-Institut Lisboa.
“Será que a memória digital torna as nossas memórias obsoletas? O passado só vive se nos lembrarmos dele. Mas como funciona a interação da consciência com o esquecimento e a memória, numa época em que quase tudo é armazenado digitalmente? A digitalização é uma oportunidade ou um perigo para a “memória cultural” da nossa identidade cultural? E como reagem os profissionais da cultura, os meios de comunicação social e, em especial, a nossa sociedade?”
Sabe mais sobre o evento e o ciclo através aqui, através do site do Goethe-Institut Lisboa ou do evento no Facebook.