“E se parássemos de sobreviver?” Foi com esta questão que André Barata iniciou o que viria a ser um tríptico de pequenos mas provocadores e incisivos livros em que se debruça sem pruridos nem preconceitos sobre a forma de viver nas sociedades contemporâneas.
E se parássemos de sobreviver? — Pequeno livro para pensar e agir contra a ditadura do tempo (Documenta, 2018); O Desligamento do mundo e a questão do humano (Documenta, 2020); Para viver em qualquer mundo — Nós, os lugares e as coisas (Documenta, 2022).
Nas primeiras páginas desse primeiro número, titulado com a pergunta de início do texto, a motivação para a trilogia torna-se clara: “uma organização sócio-económica que nos coloca sempre na posição sobrevivencial, justificando a mobilização de todos para um processo de crescimento que nada tem que ver com o amadurecimento e a emancipação que se espera de pessoas crescidas, mas com algo semelhante a uma doença cancerígena”.
Sem medo de definir o seu alvo, por muito amplo que este seja, o filósofo português aponta baterias ao sistema de organização sócio-económico que, com o passar do tempo, tem descoberto e redescoberto novas formas de, capilarmente, penetrar todas as esferas da vida contemporânea. Mas não o faz de forma gratuita ou propagandista, atirando ao desbarato contra o capitalismo ou neoliberalismo. Em vez disso, Barata envereda por um processo de desconstrução do todo – esse sistema cada vez mais totalizante e totalitário – em partes. O tempo, o espaço e as relações materiais ou espirituais são as componentes com que construímos o real, sobre as quais André Barata propõe um questionamento radical ou, se quisermos, uma politização crítica.
Contra uma certa neutralidade e apatia – uma tentação ortodoxa, na linha do que Mark Fisher chamaria de Realismo Capitalista –, André Barata traz para o campo de debate dimensões, critérios, processos que damos por adquiridos e inquestionáveis. E fá-lo com a assertividade de quem pugna por uma mudança de paradigma mais do que por ajustes ao sistema que continuem a perpetuar as desigualdades estruturais em que ele assenta.
É a partir deste lugar de pensamento e indagação por algo tão vago como um mundo melhor que Barata ensaia as suas heterotopias – “[É] uma heterotopia em vez de uma utopia, porque não se trata de um futuro ou um outro lugar desejados, mais ou menos realisticamente, mas de fazer e habitar um lugar aqui, espaço-tempo presente (…)”, diz-nos na página 72 de O Desligamento do Mundo. Não sob uma toada prescritiva e paternalista, mas com uma atitude crítica de quem inspira a questionar todas as verdades pré-estabelecidas, e uma partilha de exemplos ilustrativos mas tantas vezes ofuscados pelo ruído da contemporaneidade – como o caso do skate, a quem dedica um capítulo (também publicado no Shifter).
Recuperando para a discussão nomes como o da conhecida intelectual Donna J. Haraway – uma referência nos estudos transdisciplinares, que só recentemente viu a sua principal obra editada em Portugal –, Barata procura despertar uma capacidade auto-reflexiva, do indivíduo e da sociedade, nem sempre fácil de invocar. Para isso, alterna entre visões e abordagens alargadas sobre fenómenos de criação humana e potencial transformador, como a internet, aludindo à necessidade de saírem dos seus domínios de especialidade e das suas dinâmicas próprias de auto-regulação, e outros de uma escala mais individual como o questionamento das identidades ou a relação com o imaterial e/ou espiritual.
É assim que os três livros somam ao importante papel de análise a que se prestam uma outra função: a de promover o debate, e incitar uma certa audácia transgressora, que rejeite a compartimentação do mundo e a sua ultra-simplificação em formatos ao gosto do algoritmos, ao criar as condições e o contexto para juntos mergulharmos na complexidade que é a realidade que nos envolve. Sem a ansiedade ou a angústia de quem procura uma resposta definitiva, com o sorriso e a esperança de quem percebe que no caminho descobrirá um novo mundo. Uma nova heterotopia.
É a partir das leituras das obras de André Barata, e na sequência de uma primeira conversa com o autor durante as primeiras semanas de confinamentos provocadas pela pandemia, que agora voltamos a encontrar-nos. Para, seguindo o principio de questionamento do livro, falarmos sobre capitalismo e saúde mental, não para apontar uma relação de sentido único e directo, mas para complexificar o nosso entendimento das duas áreas e das formas como se relacionam. Desde a programação da nossa relação com o tempo, à perpetuação do trabalho como nova centralidade da vida, ou ao desligamento material do mundo por que parecemos todos atravessar, procuraremos ao longo da conversa perceber como a doença do mundo, se faz sentir em cada um de nós.
P.S.: Decidimos juntar estes dois temas fundamentais, que ao longo dos últimos anos temos trabalhado, e um autor de referência, que internamente valorizamos, no mesmo dia em que celebramos o nosso aniversário porque, tal como diz o nome do ciclo de Eventos, queremos que cada Encontro tenha o seu impacto. Assim, nada fazia mais sentido que reforçar o significado deste último momento do ano para fecharmos um ciclo e darmos o mote ao próximo.
Para assistir ao evento ao vivo, regista-te aqui: https://www.eventbrite.pt/e/bilhetes-encontros-com-impacto-56-capitalismo-e-saude-mental-445112131367.