O mundo das cripto, com as suas numerosas comunidades em rápida expansão, pode ser muito difícil de navegar, quanto mais de perceber. Por toda a sua insistência em reabilitar o Homo Oeconomicus através de contratos e transações económicas permanentes, muitas destas comunidades estão cheias das suas próprias práticas ritualísticas e celebrações quase religiosas, o que poderia manter muitos antropólogos ocupados.
Por isso, decidimos recorrer a uma dessas antropólogas, Inês Faria, para falar sobre o seu trabalho etnográfico em várias comunidades criptográficas nos últimos anos. A Inês é autora de uma série de artigos esclarecedores 1,2,3,4, onde se baseia em teorias de religião, mito, fé e ritual, para aumentar a nossa compreensão sobre o que faz com que as comunidades cripto funcionem — e do papel que a blockchain desempenha, como ela e os seus co-autores dizem, “revigorando o encantamento e o romantismo material em relação às finanças e à tecnologia”.
EM: Foi co-autora de um artigo interessante (baseado num estudo etnográfico), que documenta o “romantismo quase religioso da cripto-comunidade em relação às tecnologias de blockchain”. Aparentemente, neste mundo, encontra-se muito mito, fé, carisma, e ritual. Vários membros (proeminentes) desta comunidade foram consagrados como “Jesus da Bitcoin”, certamente reconhecendo algum do seu proselitismo. Pode dar-nos alguns exemplos concretos de como alguns destes fenómenos se manifestam no mundo cripto, e comentar o papel que assumem? Se alguns deles são, como argumenta, uma forma de reencantamento moderno, o que acha que o está a induzir? O que pode o estudo das comunidades cripto dizer-nos do papel da religião, da magia e do ritual no mundo actual?
IF: No artigo, nós (eu, Sandra Faustino e Rafael Marques) demos alguns exemplos dessas manifestações exploradas com maior detalhe. Mas, brevemente, alguns desses exemplos são celebrações cíclicas, como o Bitcoin Halving e o Bitcoin Pizza Day, mas também momentos de encontros, que incluem reuniões e eventos de networking com a função de consolidar e expandir a comunidade cripto.
Um dos exemplos que demos no artigo foi a Bitcoin Wednesday em Amsterdão. Na altura (2016/17), já havia alguma admiração colectiva em torno das criptomoedas e da blockchain que nesses eventos era quase palpável. Numa, em específico, Andreas Antonopoulos, um dito evangelista da Bitcoin, estava a falar — num tom claramente reverencial e com um misto de curiosidade e admiração em torno do seu carácter. Nós ouvimos a sua palestra, e foi praticamente um pitch — um pitch que estava a beneficiar do carisma do próprio orador, e do misticismo que envolve o hype em torno da Bitcoin e do software de Blockchain — algo que as pessoas queriam entender e em que queriam apostar, depositando a sua fé no poder de contornar intermediários financeiros e torná-los obsoletos. Este último argumento foi central no discurso de Antonopoulos.
A mestria técnica é, desde há muito, uma componente da admiração espiritual e religiosa, bem como um meio de criar ou fortalecer relações de poder – podemos ver isto, por exemplo, nas filas de canoas dos Trobriandeses, exploradas por Alfred Gell, ou mesmo nas características arquitectónicas e decorativas de algumas igrejas. A Bitcoin e toda a aura que envolve a sua criação tem as mesmas características, criando um grande apelo pela novidade, pela mudança, pelas proezas tecnológicas, e pelo seu poder para resolver problemas sociais, económicos e políticos. Um apelo que muitas vezes atrai pessoas vindas de posicionamentos económicos e políticos diferentes (e muitas vezes em conflito).
Isto aumentou a visão romantizada da tecnologia, tornando-a muito apelativa — como uma ferramenta, como um meio para a mudança radical ou como um veículo para a especulação e fazer dinheiro rápido. Nós jogámos um pouco com esse apelo, e com a ideia de re-encantamento, ao mesmo tempo que considerámos que isto é realmente impulsionado por vários factores: a situação pós-crise, claro; mas também, como outros autores apontam, a necessidade de algo que permita a redenção das instituições financeiras e das práticas de jogo financeiro.
EM: Nesse artigo que co-autorou, também realça o significado do mito de Satoshi Nakamoto para a repercussão quase-religiosa mais ampla de que goza a fundação da Bitcoin. Qual é a forma correta de interpretar essa lenda? O que a levou exatamente a compará-la com a lenda do Rei Artur? Em que medida acha que as acções particulares de Satoshi — a anonimidade, a recusa em aparecer em público, a decisão de deixar uma enorme quantidade de bitcoins por gastar, etc — contribuíram para a mística que impulsionou as comunidades cripto?
IF: Não penso que haja uma forma certa ou errada de interpretar essa lenda, ou o paralelo que estabelecemos com a lenda do Rei Artur. Nós lemo-la de uma maneira particular — o que também explica porque estabelecemos esse paralelo — como a lenda do ‘nobre altruista’, que encontra a solução para um problema recorrendo a ferramentas misteriosas e que é visto como o salvador da crise e da centralização despótica do poder.
A lenda do rei Artur relaciona-se com a ideia de uma proeza que as pessoas não entendem realmente, mas cujos resultados podem experienciar, e projecta a expectativa de fazer as coisas bem num personagem. Tal como com o Satoshi, há mistério em torno do Rei Artur, e as lendas românticas contadas sobre este personagem são muitas vezes mais romantizadas e mitológicas do que históricas. Seja como for, os eventos históricos que levaram ao crescimento dessa lenda foram bem reais: o medo em torno das invasões saxónicas e um herói que as combateu dando às pessoas esperança.
A ideia do Satoshi como um nobre altruísta propondo uma solução para contornar o poder centralizado também responde a ansiedades sistémicas: sobre o poder e a finança centralizada no período pós-crise 2008, algo com eco em pessoas provenientes de várias facções ideológicas. Isto é feito através da criação de uma narrativa forte em torno da potencialidade de descentralização da Bitcoin e da blockchain, e da consequente libertação dos intermediários financeiros associados à crise financeira.
A posição desinteressada de Satoshi, a sua anonimidade, e as bitcoins por gastar alimentam o imaginário do altruísmo e do puro génio tecnológico, que parece permitir a moralização do personagem como bom, e uma identificação da moral de alguns projectos com essa capacidade de fazer as coisas bem. Então, como forma de raciocínio e fé, isto não é novo, mas parece, quando aplicado a uma tecnologia particular e à comunidade cripto.
EM: Como antropóloga, conseguiu descobrir camadas de significado dentro de objectos e práticas que podem parecer mundanas à própria comunidade cripto. Por exemplo, enfatizou o papel cultural e social desempenhado pelos whitepapers. Que outro tipo de função — para além da explicação sobre os processos técnicos — desempenham estes whitepapers para as comunidades cripto. E de que forma são semelhantes a ‘textos sagrados’, como se alude num dos artigos que co-autoras?
IF: Penso que os whitepapers são elementos importantes para qualquer projecto, e cuidadosamente preparados. O Whitepaper da Bitcoin foi primordial e particularmente técnico, ao mesmo tempo que lançou as base para tudo o que veio depois — há muito mais funções para estes whitepapers para além de serem recursos técnicos.
De um ponto de vista mais pragmático, o whitepaper pareceu-nos mais ou menos como um sinal de vida de um projecto, e as equipas e os projectos que encontrámos também os consideram como tal: tens de ter um, e tem de ser bom. São também o sítio e o guião onde a matriz moral e o posicionamento ideológico estão impressos, e uma peça chave na disseminação do potencial do projeto e das ações futuras. Por fim, mas igualmente importante, são também um cartão de visita. Ao explicar os aspectos técnicos mais obscuros incorporados no plano de execução da narrativa do projecto, mostram originalidade técnica e atraem investimento.
“Projectos, moedas, e propostas de transformação são melhor preparadas com e para sociedades e espaços em particular, e não vendidas como soluções para os seus problemas depois.”
EM: Situa o crescente interesse do público geral na tecnologia de blockchain num contexto de crescente suspeita sobre a indústria financeira, que foi salva após a crise financeira de 2008. Enquanto o sistema financeiro tomou algumas medidas proativas para melhorar a sua imagem, por todas as vias de discursos éticos e o seu compromisso com projecto vagos como o ‘capitalismo de stakholders’, a comunidade cripto (se é que podemos generalizar assim) não parece comprar esta viragem ética, tendo, em vez disso, esperança de instalar um novo regime de verdade ‘algorítimica’ e de autoridade medida pela blockchain. Pode falar-nos destas dinâmicas? Fez um extenso trabalho etnográfico entre várias comunidades de blockchain, talvez possa refletir sobre atitudes em relação à finança tradicional, e à crise de 2008 em particular, que tenha observado.
IF: Observei vários posicionamentos – por vezes sobrepostos e ambíguos – em relação às práticas financeiras subjacentes à crise de 2008 e às políticas de resgate que lhe seguiram. Muitos deles, misturados com outros, mais pessoais, organizacionais, e com motivações ideológicas, tiveram um papel no desenvolvimento dos casos que observei e segui durante a minha investigação. Se, por um lado, a Bitcoin apareceu como uma possibilidade de começar do zero num ambiente de crescente desconfiança em relação às finanças e às práticas de financeirização – como podemos ver no genesis block – com muitos a anunciar que os dias das instituições financeiras incumbentes já tinham chegado ao fim. Por outro, o funcionamento real das criptomoedas atraiu uma multidão muito mais diversa e com vários interesses.
Entre esta variedade mais ou menos de usos mais ou menos pragmáticos de critpo havia projectos abertamente politizados, procurando alternativas ao status quo financeiro, mas também laboratórios de inovação de instituições financeiras onde uma miríade de processos de experimentação tiveram lugar. Estes laboratórios não estavam a lutar por uma mudança radical, mas sim à procura de lucrar com as possibilidades do software para melhorar as ferramentas de organização digital e a dinamização burocrática — incluindo negociação e liquidação, identificação digital, ou serviços de pagamento, entre outros.Contudo, a fronteiras entre a finança dominante e os projetos mais radicais de blockchain parece menos permeável na teoria do que é na prática
No geral, parecia haver uma certa crença no poder correctivo da tecnologia blockchain. Isto foi sentido de parte de instituições financeiras e projectos procurando alternativas à finança tradicional através de propostas descentralizadas — muitos autores depararam-se com narrativas semelhantes, e agora generalizadas, onde a ênfase está em como as características técnicas e de segurança do sistema que permitiriam uma melhor supervisão financeira e a segurança das operações financeiras. E foi sentido de parte de muitos projectos cripto que se desenvolveram, que viam na blockchain e nas criptomoedas, espaço para criar economias onde se pensava que o viés humano e a corrupção podia ser evitada através de mediação e gestão algorítmica.
Com o passar do tempo, contudo, e com a presença de instituições financeiras mainstream nos círculos de experimentação e investimento, pareceu haver uma tendência para a prevalência de abordagens mais tecnocráticas, mais em linha com o melhoramento de dimensões funcionais, e menos com o desenvolvimento de plataformas mais politizadas ou radicais, com um discurso público claro em relação à financeirização, capitalismo ou à crise financeira em si.
EM: Há um estranho fascínio das nações com uma comunidade cripto mais vasta que talvez explique porque vemos tanta actividade relacionada com as cripto e a blockchain no Pacifíco e nas Caraíbas, com muitos estados insulares, mais pequenos, a envolverem-se em acções com cripto (o mais emblemático de tais esforços é, evidentemente, o recente vídeo da Cryptoland, que se tornou viral). Estudou uma das primeiras iniciativas para uma nação virtual — um projeto chamado Bitnation. Poderia dizer mais sobre o que foi, que tipo de agenda seguia e com que motivação, e por que razão acabou por ficar sem força? Que tipo de assunções sobre governança, soberania e nação sustentam o pensamento das pessoas por detrás do projecto? Pode falar um pouco mais a cerca das influências intelectuais/ideológicas dos fundadores dos projectos?
IF: O projecto Pangea da Bitnation propunha uma plataforma de mercado (DAO) anarco-capitalista/inspirada na escola austríaca para jurisdições digitais e serviços correspondentes. Todos os serviços são privados, por isso as nações digitais podem ser livremente criadas. A motivação para este projecto era a desilusão dos fundadores com a democracia e o papel dos estados, incluindo os conflitos e as fronteiras, por exemplo.
Subjacente à plataforma Pangea está um sistema de reputação monetizado onde as pessoas podem ser avaliadas de acordo com o seu ‘bom’ comportamento em acções específicas mediadas por smart contracts. A monetização é feita através da avaliação dos utilizadores feita por um bot — Lucy — que converte pontos de bom comportamento em tokens da plataforma (o whitepaper do projecto explica-o com muito mais detalhe técnico). O funcionamento da plataforma está ligado à ideia prevalente na comunidade cripto de que o dinheiro pode ser criado em blockchains, e de que mudando o dinheiro, como e por quem é emitido, se pode mudar um/o mundo.
A Bitnation e o projecto Pangea assume que uma organização social descentralizada e baseada na competição é melhor do que as formas de governança existentes. A plataforma pretende assegurar o controlo sem um Estado. através do sistema de reputação monetizado e gerido por algoritmos que funcionam como um mecanismo de inclusão/exclusão suave e um esquema de incentivos. Esta é uma codificação quase literal das teorias do dinheiro privado de Hayek, somada à visão mais ampla da escola austríaca sobre a sociedade (Mises, Rothbard, Friedman) e cruzando-se com as promessas de descentralização da blockchain
No âmbito do funcionamento muito aberto da organização mais ampla do projecto, atravessado pelo chamado “inverno das cripto” de 2018 e pela falta dos resultados esperados no ICO, o projecto reconfigurou-se e a sua comunidade de seguidores aparentemente vida dissipou-se.
De um modo geral, sem uma comunidade sólida que confie e precise, nenhum projecto ou proposta de novo dinheiro parece prevalecer facilmente. A BitNation e a Pangea apareceramm como tentativas de provocar uma mudança económica, relacional e transacional sem uma comunidade consolidada que quisesse essas mudanças. Isto mostra um pouco sobre como projectos, moedas, e propostas de transformação são melhor preparadas com e para sociedades e espaços em particular, e não vendidas como soluções para os seus problemas depois.
“Acredito que estarmos sensíveis aos problemas dos sistemas de reputação em geral, e aos sistemas monetizados e abertamente exclusionários em particular, é uma das razões porque não passámos o ponto de não retorno.”
EM: Enquanto muitos dos debates recentes sobre mecanismos de governança de projectos baseados em blockchain se focam na tokenização, o seu trabalho vai uns passos à frente ligando os tokens a novas formas de criação e gestão de reputação. O que acha que há de novo em tais sistemas reputacionais baseados em tokens? E como podemos situá-los num contexto histórico e político mais abrangente? Por exemplo, vendo-os, digamos, a partir de uma perspectiva Foucaldiana?
IF: acredito que a novidade neste tipo de sistemas de reputação, quando comparados com outras práticas de medida e numeração, é o facto de propositadamente tentar substituir meios mais fluídos, ou fléxiveis, de relações de confiança e reputação social, e adicionar uma lógica fixa, quantificável e monetizada a essas componentes das relações sociais humanas. Eu acredito que isto constitui um novo processo de avaliação que recompensa o que os programadores, ou os fundadores dos projectos, consideram ser um “bom” ou “mau” humano ou comportamento. Isto acontece em sistemas onde as pessoas, voluntariamente, se envolvem numa constante vigilância colectiva.
Se já há inúmeros trabalhos preocupados com o governo pelo números, a avaliação, os rankings e a reatividade, este tipo de moedas de reputação e de pontuações públicas e fixas traz consigo novas preocupações. Por baixo de narrativas onde a liberdade e o voluntarismo são enfatizadas, sistemas de reputação mediados por algoritmos em DAOs são como uma espécie de panóptico distribuído – onde se é sempre visível, parcialmente escrutinável, e recompensado por se comportar de acordo com a norma, e a codificação, do que é considerado como “bom”. Isto é uma forma de determinismo tecnológico e um mecanismo de triagem perigoso que fixa e torna rigída a plasticidade da vida social.
Assim, de facto, em sistemas de triagem e reputação similares, os indivíduos tornam-se voluntariamente sujeitos a estruturas de poder ideológicas, com novas formas de capilaridade das normas sociais. Estas têm o poder de afectar drasticamente a vida das pessoas, se não forem desconstruídas e debatidas.
Chamar à atenção para isto é, a meu ver, justificado, à medida que mecanismos de pontuação de reputação e de incentivos quantificados baseados nos nossos dados se tornam ubíquos na nossa vida digital e nas nossas interações, mas também se tornam muito reais na dimensão económica e sociopolítica da vida – vejamos por exemplo, os anúncios direcionados, a pontuação e perfilagem para acesso a crédito, a relação dos social media e da política, as câmaras de eco dos meios sociais, ou os projectos piloto para criação de sistemas de crédito social – e afectam e influenciam como as pessoas interagem umas com as outras e com o mundo.
EM: Ainda em relação a isso, num dos seus artigos, discute a Pangea, uma espécie de DAO libertária com a sua própria criptomoeda, o Pangea Arbitration Token (XPAT). No artigo, faz uma observação passageira mas muito interessante, comparando o sistema de reputação descentralizado e tokenizado da Pangea com o sistema centralizado de crédito social da China: ambos tratam a reputação como um recurso para articular ambições de ordem sócio-económica. Já passámos o ponto de não retorno, com a reputação a ser uma nova matéria prima a partir da qual novos mecanismos de governo serão construídos? Porque acha que esta facção libertária da comunidade cripto está tão entusiasmada com a possibilidade de recorrer a mecanismos de reputação para fins de governação?
IF: Penso que já havia uma tendência para isto a um nível mais amplo, com a maximização de modelos de governação com valor para os accionistas, o capitalismo financeiro em geral, o perfilamento e a pontuação na concessão de crédito… A ubiquidade digital de interações de mercado no quotidiano das pessoas expandiu esta tendência. Não acho que tenhamos passado de um ponto de não retorno, e acredito que estarmos sensíveis aos problemas dos sistemas de reputação em geral, e aos sistemas monetizados e abertamente exclusionários em particular, é uma das razões porque não passámos o ponto de não retorno. Acredito que há muito para além disso, e que as pessoas encontram sempre forma de fazer ou não fazer as coisas e de contornar as limitações.
Seja como for, de um ponto de vista político e mais institucionalizado, acho que estes sistemas de reputação podem ser mais problemáticos. Suponho que estas comunidades cripto com uma inclinação ‘libertária’ os acham atraentes porque parecem uma solução simples para uma governança descentralizada baseada no mercado, encaixando no discurso do laissez-faire e da monetização, sem que realmente o façam na prática, dado que, quem quer que programe o sistema de reputação e idealize a plataforma tem um grau considerável de poder.
EM: O que achei muito esclarecedor no vosso trabalho é a forma como empregam os conceitos de plasticidade/rigidez para mostrar que enquanto o mundo digital é, em teoria, muito plástico, a camada baseada na reputação que está a emergir da blockchain/smart contracts recria rigidez. Este esforço pela rigidez não é, contudo, muito surpreendente, dado que a dialéctica mais ampla de estabilidade/disrupção está provavelmente inscrita no próprio sistema capitalista. É apenas um pouco difícil conciliar esta insistência em “governar pela reputação” com a parte anarquista do cripto-anarquismo, a ideologia mais ampla que informa alguns dos projectos que estudou. Como é que os agentes que observou conciliaram esta necessidade de colocar as pessoas em sistemas rígidos de reputação com a sua perspectiva anarquista geral?
IF: Acho que há várias respostas possíveis para essa questão… Acho que a argumentação dos projectos que propõem sistemas de reputação difere de uns para outros, mesmo dentro do espectro cripto-anarquista. Contudo, em relação às pessoas com quem falei, não havia muito esforço ou tensão na reconciliação, pelo menos de uma perspectiva de discurso público, dado que, mais uma vez, a reputação era remetida para um nível mais técnico de planeamento e execução das coisas. A parte mais anarquista era projecta na narrativa mais abrangente do projecto, relativa à base voluntária da participação e, no caso Bitnation/Pangea, à possibilidade de adaptar regras de funcionamento específicas, adquirir serviços, e interagir online com a mediação de contratos inteligentes. Para este caso, a parte mercantil/capitalista deste anarquismo enquadra-se no sistema de reputação monetizado incorporado no mercado de jurisdição. Neste sentido, a rigidez de tudo isto parecia ser uma tentativa de substituir uma reputação social e uma dinâmica de confiança muito mais maleável.
Também fez alguns trabalhos do outro lado da vedação, por assim dizer, estudando como instituições tradicionais — como bancos centrais e reguladores — navegam neste domínio das cripto. Escrevendo sobre o caso dos Países Baixos, enfatiza a importância que os responsáveis públicos do país atribuem à ideia da “caixa de areia regulamentar”. Pode falar-nos das suposições feitas pelos responsáveis que estudou sobre a inevitabilidade das blockchain/criptomoedas como uma nova força com que se têm de se confrontar? Que tipo de imaginários moldam a sua imaginação sobre o futuro?
IF: Quer os agentes do sector quer os supervisores financeiros tinham um posicionamento e imaginário semelhantes sobre a eventual inevitabilidade da blockchain e das criptomoedas como uma nova força — provavelmente devido à sua co-dependência na criação de mercados. Na altura era sobretudo de dúvida, cuidado e interesse. Os meus interlocutores de investigação em diferentes instituições estavam a lidar com a tecnologia como lidam com outras, criando e fazendo parte de hubs de inovação e experimentação; testando e avaliando a utilidade; pondo-se a par e conectando-se com outros, incluindo, principalmente, com startups, para que não ficassem para trás se a tecnologia se tornasse mainstream. E os supervisores faziam o mesmo, com interesse na tecnologia para fins monetários e de supervisão/regulamentação. As sandboxes regulatórias apareceram como um espaço de experimentação seguro, supervisionado, e este ethos de colaboração serviu vários propósitos, incluindo a própria colaboração, mas também uma procura de legitimação a dois níveis.
O primeiro era legitimar a tecnologia da blockchain dentro de um universo cripto impregnado por lavagem de dinheiro, comércio informal e ilegal, e aqueles cujas finanças “não devem ser vistas”. Mas o segundo era a legitimação dos projectos de fintech que utilizam tecnologia blockchain — a ideia de ter o regulador envolvido era importante, tal como as narrativas sobre transparência e segurança, mas também sobre prudência em relação à tecnologia.
Acredito que os tipos de imaginários aqui presentes estavam relacionados com filosofias de valor acrescentado (relacionadas com a maximização do valor accionista da governação empresarial), digitalização, e interoperabilidade tecnológica. Neste sentido, penso que foram imaginários pragmáticos e tecnocráticos, mais do que propostas revolucionárias. A imaginação sobre o futuro era a de inovar, colaborar, criar ecossistemas e competitividade (como jurisdição e entre empresas), mas mantendo o status quo, sob uma narrativa diferente.
Quando li o artigo sobre o ecossistema de blockchain dos Países Baixos, fiquei espantado pela falta de processos formais de democracia ou de participação cidadã na definição das políticas mais amplas das cripto. Houve, claro, algumas reuniões entre responsáveis públicos e empreendedores, muitas delas informais. Mas fica-se com a sensação de que os responsáveis tratam as cripto como algo que veio da fica para e que precisa de ser explorado e desenvolvido de forma a tornar os Países Baixos mais atractivos para os cripto-empreendedores. No seu trabalho etnográfico, notou algum esforço dos burocratas que estudou para envolver, de facto, um público para além da comunidade cripto. Por exemplo, perguntando a sua opinião sobre os imensos custos energéticos das cripto, ou sobre outro dos aspectos controversos? Do mesmo modo, notou aqueles que trabalham dentro destas comunidades criptográficas expressando algumas dúvidas ou preocupações sobre as potenciais consequências políticas e democráticas das suas actividades económicas?
IF: Na altura da minha investigação nos Países Baixos, esses esforços para criar o ecossistema de blockchain holandês estavam nos primeiros dias e pareciam muito mais direcionados para o lado do negócio e da infraestrutura do que focados em criar uma abordagem participativa na sua definição. Havia, contudo, alguns eventos, sessões e palestras, não oficiais, e um conjunto de projetos com que me cruzei que estavam preocupados em propor uma abordagem mais participativa à cripto, que mais tarde fizeram parcerias com municípios, por exemplo.
Cruzei-me com pessoas na comunidade cripto com abordagens mais críticas — e preocupações sobre a sustentabilidade depois do entusiasmo, com a lavagem de dinheiro e os custos energéticos — mas a maioria não estava ligada a grandes agentes financeiros mas mais a projectos independentes. Dentro deste lado mais empreendedor, parecia haver um discurso de pitch dominante em torno da tecnologia, enquanto muitos projectos, maiores e mais pequenos, apareciam. Para esses, no geral, a maioria das preocupações não eram sobre as consequências da tecnologia em actividades políticas, democráticas ou económicas no geral, mas sobretudo avançar e ser competitivo na área. As consequências eram geralmente analisadas como parte de uma abordagem tecnocrática, em laboratórios de inovação, startups, ou os ambientes de sandbox regulatória. Da parte dos supervisores financeiros havia, claro, a preocupação sobre o risco sistémico.
Manteve-se atenta às comunidades cripto desde meio dos anos 2010. Viu muitas mudanças em termos da perspectiva ideológica e das crenças políticas? As atitudes anti-sistémicas são mais ou menos prevalecentes hoje em dia?
IF: Eu acho que as atitudes anti-sistémicas eram maiores no princípio. A este ponto, pode ver-se alguns projectos mais subversivos, nos seus esforços por exemplo por implementação ou sobrevivência. Parece haver uma necessidade para suavizar o discurso político e as atitudes anti-sistémicas para que os projetos funcionem e sejam financiados, cumpram os enquadramentos regulatórios e sejam capazes de operar em jurisdições reais. Observei que os discursos radicais tendem a desaparecer e a tornar-se mais ao estilo empreendedor, de modo a que os projetos continuem. Nem sempre é assim, mas acontece muitas vezes. Também me cruzei com projectos mais pequenos, mais participativos, em forma de pilotos circunscritos aos territórios urbanos particulares.
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