Fora do meu bairro, sou alienígena

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Fora do meu bairro, sou alienígena

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“Fosse na rua, fosse em espaços de entretenimento, fosse em sala de aula, havia um número reduzido de pessoas com as quais me pudesse identificar. Fora do meu bairro, tudo era alienígena – eu era alienígena.”

Deve ser a primeira vez em muito tempo que escrevo na primeira pessoa. Uma sensação estranha e um medo de qualquer julgamento levam-me a várias hesitações. O receio está em escolher a forma como me sinto, mais do que em escolher as palavras para escrever o que sinto; por achar que os meus sentimentos não serão validados.

Isto acontece desde sempre, mas só agora, que me tornei adulto o suficiente, em mente e corpo, para perceber onde cheguei, onde estou, posso olhar para trás e, a partir do registo que me ficou na memória, analisar e retirar algumas conclusões quanto ao que possa ter desenvolvido um certo desconforto e, ao mesmo tempo, uma conformidade face às situações do passado.

Fosse na rua, fosse em espaços de entretenimento, fosse em sala de aula, havia um número reduzido de pessoas com as quais me pudesse identificar. Fora do meu bairro, tudo era alienígena – eu era alienígena. Se fosse a uma festa, entrava de barriga vazia e saía de barriga cheia de vácuo. Quando me aproximava da mesa dos doces, tinha de dosear bem as quantidades e as palavras, e só me servia se alguém insistisse muito. ‘Estou bem. Comi há pouco’, seria algo muito provável de sair da minha boca, mesmo com o estômago a queixar-se à minha voz. Lá insistiam, ‘prova este doce, fui eu que fiz’. Eu provava. Fosse bom ou mau, o estômago agradecia; e eu agradecia a hospitalidade. 

No final, queria apenas brincar, mas os meus amigos brincavam entre eles e só por vezes me incluía num jogo ou outro, sempre à espera de ser posto de parte. Pouco faltava para acontecer, sentia-o.

Fora do meu bairro, eu era alienígena. Por sorte ou por azar, fui parar a uma das piores escolas do país. Ali, tinha, sim, muitas pessoas com as quais me podia identificar, mas tinham um comportamento que eu reprovava. Por que reprovava eu o comportamento deles?               

Falavam-me, mas passava-me ao lado. Sempre me passou ao lado, porque nunca me senti afectado por isso. Falavam em racismo e discriminação. Eu acreditava que estava do lado do “bem” e do belo. Nascido do resultado da colonização, parece estranho aceitar, com tanta leveza, esta realidade que aqui transcrevo. Podem até nem vir a acreditar. Também gostava de desacreditar e achar que tudo isto é uma invenção da minha cabeça, um produto da minha experiência percepcionada. Fizeram-me acreditar que eu até nem era como os outros. Quais outros? O que eu era por fora, não o demonstrava ser por dentro

Chamaram-me tudo menos o meu nome: Oreo; café-com-leite; preto por fora, branco por dentro. Enfim, uma panóplia de substantivos adjectivados ou não.

Hoje, posso afirmar, com toda a convicção: sou mestiço, resultado do processo de colonização. Se me posso identificar com negros e caucasianos, posso. Se me posso identificar com qualquer etnia tanto do ocidente como do oriente, posso. Porque, antes de ser um número numa comunidade de uma certa etnia, sou um ser humano.       

Então, de onde vem este sentimento, afinal?           

Confesso que me sinto inferior. Este sentimento foi-se desenvolvendo aos poucos e, ultimamente, tem crescido. De que forma, não tenho nem ideia. Apesar de todos os meus amigos terem histórias para contar acerca de relações amorosas e sexuais, notei que, grande parte, era contada pela fatia caucasiana dos círculos de amigos onde estava inserido. Mesmo na escola, muitas vezes testemunhei namoricos entre os caucasianos, nas turmas a que pertenci.   

Cresci a sentir-me feio, sub-conscientemente, acompanhado pelos heróis dos meus cartoons favoritos, as séries televisivas, cujos protagonistas, de tez clara, sobreviviam às mais incríveis acrobacias. Acompanhado, também, pela famosa frase, ‘os pretos são sempre os primeiros a morrer’.   

Quem são estes pretos?   

Esta é outra parte em que tenho imenso medo do julgamento, mas vou-me jogar à frente, ignorando o meu medo. Pouca ou nenhuma importância dou quando me chamam preto. Chamar preto não veicula a mesma mensagem que sentir-se preto. É quase um sentir-se azul (do Blues), mas mais na sombra, de forma subtil. Enquanto a escravatura era feita à vista de todos, o sentir-se preto acontece sem ninguém dar por isso – a própria vítima sente-se normal.

Quando me sinto preto, sinto-me posto de parte. Para ser visto, tenho de ser incrivelmente melhor do que a comunidade dos caucasianos ou dos de pele mais clara do que a minha. A primeira impressão que sinto ter nas outras pessoas é a de ser preto. Olham-me com suspeita, repugnância. É preciso que eu abra a boca, deixe sair a minha pessoa em forma de vibração pelas minhas cordas vocais, mostre como o meu corpo foi disciplinado numa mistura de orientações de base da geração dos avós, com senso comum e empatia e a disciplina asiática. Se calhar, o meu código foi tão aperfeiçoado durante o meu crescimento que, hoje, preciso de pouco tempo até eliminar qualquer hostilidade.

A própria vítima sente-se normal. Dever-se-á normalizar um sentimento em detrimento de outro anormal?

Se uma pessoa sente desconforto, quando se sente preta, por que terá esta de se sentir normal, como eu não me senti? Se eu me sinto preto, não é pelo meu tom de pele ser mais escuro, mas por ter algo à minha volta a puxar-me para esse buraco de segregação. Ao escrever este texto, sinto-me preto. Sinto a sujidade a escorrer pela ponta dos meus dedos. Sinto-me preto, por saber que quem ler este texto se vai sentir na necessidade de me julgar pela minha cor. Muitos até irão dizer que ando a viver dos impostos deles, como preto que sou. Os impostos desses ditos, também eu os pago. Também eu, sozinho, paguei a minha formação, com uma bolsa que me foi rejeitada. Paguei e estou a pagar a minha formação por inteiro. 

Quando terminei o primeiro ciclo de estudos, as oportunidades na minha área de formação aproximaram-se do zero. Não era pior do que muitos dos meus colegas. Diziam-me para não ter pensamentos negativos, para não atrair coisas negativas, mas sentir-se preto não é ter pensamentos negativos, é estar preso ao meu tom de pele porque um mundo assim se quis construir, com base numa hierarquização de estrutura fraca.               

Hoje, sinto-me mais feio do que nunca.               

A minha pele tem o brilho esverdeado do lixo tóxico, quando me vejo ao espelho. A minha pele é oleosa e sinto-me ainda mais preto. Sinto que preciso, cada vez mais, de me esforçar acima de todos os caucasianos, para poder receber uma mísera esmola pelo meu trabalho. Continuo a limpar o lixo dos outros, mas não me posso dar ao luxo de falhar. Se sou apanhado com o lixo dos outros na pá que seguro, ninguém irá tomar o meu partido. Sinto-me cada vez mais preto.   

Senti-me preto, das vezes que me tentei aproximar de alguém e fui rejeitado, ao contrário do caucasiano ao meu lado. Sinto-me preto, quando me torno invisível na presença de um ariano.O meu objectivo não é ter os olhos postos em mim. Não quero ser o centro do mundo. Quero deixar de me sentir preto. Por isso, procuro saber mais e mais. Mas não me sinto branco. Quanto mais sei, mais preto me sinto. O peso começa a notar-se nas minhas costas.

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  • Fábio Moniz

    Licenciado em Ciências da Linguagem e mestrando em Estudos Comparatistas. Devorador de livros e amante do conhecimento. Escritor não publicado e tutor. Procuro aperfeiçoar-me constantemente. O melhor está na educação das crianças e nos adultos, principalmente, daqueles que não puderam ter acesso ao ensino mais cedo; por isso, aceitei o desafio de ensinar Escrita Criativa na Universidade Sénior de Agualva-Cacém e de ensinar Ciências Experimentais a alunos da escola básica.

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