A vida a preto e branco. Rosa e azul. Com homens e mulheres. Eles e elas. Onde tudo é ou certo ou errado. É pelo fim do sistema binário que Pri Bertucci, artista social, educador e diretor de documentários, luta há vários anos. “O mundo não precisa ser binário” é o nome de uma comunicação pública que fez em abril de 2021, e é também o mote da sua visão do mundo — não do futuro, mas do presente. E que, na verdade, vai beber ao passado.
Pri é um dos poucos CEO trans do Brasil. É CEO da [DIVERSITY BBOX], uma empresa de consultoria especializada em diversidade, na qual se encontra disponível o Dossiê de Linguagem Neutra e Inclusiva que preparou durante dez anos, e fundador do [SSEX BBOX], projeto pioneiro no tema de justiça social que atua em San Francisco, São Paulo, Berlim e Barcelona. É também o responsável pela criação do sistema de linguagem neutra e inclusiva ILE, que resultou de dez anos de pesquisa e um trabalho conjunto com linguistas — e no qual se encontrou com Judith Butler e Noam Chomsky para pensar em conjunto. Acredita na linguagem como um ponto de partida da revolução no pensamento que, por sua vez, poderá desencadear a mudança nas formas de agir.
No final de setembro de 2021, Pri Bertucci esteve em Portugal para apresentar o Dossiê de Linguagem Neutra e Inclusiva, um livro que resume esses sete anos de trabalho e que enquadra e introduz outras formas de comunicar para uma sociedade mais justa. Viaja até outros períodos na História para mostrar como as identidades não binárias não são “novas” ou “uma moda”. Regressa ao presente para identificar as resistências na integração do sistema ILE. Fala diretamente com o leitor para lhe explicar como pode incluir todas as pessoas na forma de comunicar, não deixando ninguém para trás. Mais tarde, conversou com o Shifter a partir do Brasil.
Essa conversa é recuperada agora, por altura da 5.ª Marcha do Orgulho Trans da Cidade de São Paulo e da 1ª Feira Trans [Empreendedorismo, Inovação e Empregabilidade] de SP, da qual é idealizador e produtor executivo. Por lá, continuou a pensar em conjunto sobre as possibilidades que existem na criação de novos mundos dentro do mundo, e apresentou a última edição do Dossiê de Linguagem Neutra e Inclusiva. O seu grande objetivo é que este sistema possa ser reconhecido e integrado na língua portuguesa de forma natural.
Talvez faça sentido começarmos por uma citação sua na carta de editore, que nos mostra, desde logo, uma das premissas da sua proposta: “A linguagem neutra e inclusiva não é apenas uma neolinguagem, mas sim uma recuperação de linguagem”. Há uma perspetiva decolonial nesta recuperação de algo que já existe, não vai ser inventado agora?
Pri Bertucci (P.B.): Essa perspetiva decolonial no processo dessa recuperação da linguagem é justamente pelo facto de que muitas nações indígenas, antes do processo de colonização, reconheciam pessoas que não se encaixavam no que se acreditava ser o feminino ou masculino, ou mulher ou homem, e também existiam pronomes de género neutros. Os Two Spirit, por exemplo. Você tem uma grande gama de nações indígenas de vários países nas Américas — que é o território em que mais pesquiso — que usavam uma linguagem que reconhecia neutralidade de género e reconhecia um terceiro género também. Em Two Spirit você tinha um nome específico para dizer quando era uma pessoa trans que transicionava de feminino para masculino, ou de masculino para feminino, e também para a não-binariedade. Se esses nomes existiam naquela época, o que é que aconteceu? A visão eurocêntrica do mundo apagou as nossas existências da História, no processo de colonização. E hoje as pessoas se chocam: “meu Deus, existem pessoas trans e não binárias agora?!”, “Existe linguagem neutra agora?!” Sem saber que isso já existia no passado e que existiu um processo de apagamento das nossas existências. Todas essas destruições que estamos vendo — agressões em relação a pessoas LGBTQIA+, mulheres, pessoas negras, a destruição da Amazónia — estão acontecendo por essa masculinidade desequilibrada que tomou conta da nossa civilização por muitos anos. Mas não foi sempre assim. E acho que a gente está a começar a entender e a equalizar esses sistemas — percebendo que não é abusando da Terra, das mulheres, discriminando qualquer coisa que tenha mais sensibilidade.
A sociedade se transformou numa coisa que não tem sentimentos. Eu fico pensando nesses cinemas que você vai hoje, que são supersónicos, em que a cadeira treme, que tem óculos de realidade virtual, que a tela é muito grande, que o som é super surrounding; as pessoas estão tão dessensibilizadas que você precisa de muitos estímulos para conseguir mexer.
Por ser uma sociedade com a masculinidade desequilibrada, a gente perdeu a nossa saúde emocional. O sagrado masculino e o sagrado feminino são arquétipos da própria natureza, e se prestar atenção vê que a gente está só a usar um lado e não está a usar o outro. Perdemos a noção do que é o sagrado feminino. As pessoas hoje buscam isso, querendo achar o que é a mulher no sagrado feminino — mas não é por você ser mulher que você vive isso necessariamente.
“Pensando que na França já era utilizado o pronome ILLE como neutro — que é uma mistura do pronome masculino (Il) e feminino (Elle) —, pensámos que em português faria sentido usarmos algo que fosse na mesma linha de raciocínio.”
Pri diz que estamos desligades desse lado, mas ao mesmo tempo parece que estamos perante um momento de viragem. São duas coisas que estão a acontecer em paralelo, uma precisa da outra?
P.B. Exato. Talvez se esses governos fascistas, como o de Bolsonaro, ou como o que aconteceu nos Estados Unidos com Trump, não tivessem existido, o levantar dessa consciência em relação a esses problemas que existem faz muitos anos não tivesse surgido da mesma forma. Em alguns países, ou mais concretamente em algumas cidades, esse progresso já está acontecendo mais rápido, e noutros está acontecendo muito devagar e a conversa ainda nem começou.
Em Portugal, apenas em 2019 o Conselho de Ministros aprovou uma proposta de lei que determinava o uso da expressão “direitos humanos” em detrimento de “direitos do Homem”. Em que medida é que a linguagem que utilizamos molda a forma como nos relacionamos com as outras pessoas, mas também a percepção que temos de nós mesmes?
P.B.: Eu acredito que se a gente muda a forma de falar, a gente vai mudar o jeito de pensar, e se mudamos o jeito de pensar mudamos o jeito de agir e, consequentemente, podemos influenciar a sociedade de uma forma mais equilibrada e consciente. Esse manual de linguagem inclusiva da União Europeia faz dois anos que saiu, e eu acho que ele é extremamente importante, mas está levando em consideração a linguagem inclusiva apenas. Você tentar escrever sem marcar o género é linguagem inclusiva e não sexista, isso já vem sendo discutido pelo feminismo há décadas. Simone de Beauvoir já questionava essa generalização do género gramatical em algumas línguas originadas do latim, que sempre generalizam o género masculino como superior ao feminino. Quando a gente fala de linguagem neutra, aí sim é uma outra questão. A linguagem neutra surge para representar a existência de pessoas não binárias. E aí, a linguagem neutra seria a linguagem não binária. Acho que muita gente ainda confunde o que é a linguagem neutra e o que é linguagem inclusiva, é importante isso ficar muito nítido.
Criar um sistema de linguagem neutra, ELI, foi um trabalho de anos. Como é que foi este processo?
P.B.: Foram sete anos de pesquisa para construir esse dossier. Garimpando as informações e conversando com pessoas, absorvendo e trocando, inclusive com vários países que usam já a linguagem neutra. Eu moro parte do tempo em São Francisco, na Califórnia, e lá a linguagem neutra já é uma realidade no sentido em que raramente você vai num encontro de um grupo social, do bairro, ou você vai num evento considerado político, e não se tem em consideração a linguagem neutra. O inglês é mais fácil, mas a gente encontra, por exemplo, pessoas usando um adesivo com o pronome de género. Foi em 2014 que eu resolvi parar de achar desculpas. Comecei a incentivar as pessoas a fazer a pergunta [sobre que pronomes é que cada pessoa utilizava], nos eventos do SSex Box, e na altura fazer a pergunta era meio estranho — havia quem ficasse “o que é que você está falando?” — e quando eu mencionava o pronome neutro, dizia que em português não tinha e que estava há anos pensando qual seria uma opção. Toda a vez eu ficava dando uma desculpa, e falava “They/Them”. Comecei uma pesquisa mais profunda com a Andrea Zanella, que é uma amiga que é linguista e psicóloga, e vasculhámos a internet para procurar alguma coisa em português. Naquela época, não existia nada. E daí, a gente falou: se não tem, vamos inventar. Começámos a ler alguns textos em latim, porque no latim existia o pronome neutro, e pensando na versão do masculino do latim e fazendo uma mistura, pensando que na França já era utilizado o pronome ILLE como neutro — que é uma mistura do pronome masculino (Il) e feminino (Elle) —, pensámos que em português faria sentido usarmos algo que fosse na mesma linha de raciocínio.
O ILE nasce levando em consideração todo esse raciocínio linguístico e o que fazia sentido em português, porque não basta terminar com “e”. O “i” no começo faz toda a diferença na neutralidade, porque “ele” já tem o “e” no final. Nessa transformação, se você pensar algumas palavras no plural terminam com “e” e são consideradas neutras, mas a gente sabe que realmente não são — como “professores”. A gente ficou pensando em todas essas flexões no final e como é que a gente ia usar isso, como é que ia sair na escrita, e entendemos que para ser neutro teria de ficar “professories” quando é plural, e no singular ficaria “professore”. Esse foi o sistema ILE, que vem com “e” no final das palavras e “i” no começo.
Muitas pessoas utilizam o sistema ELU, mas esse sistema tem algumas confusões. A primeira acho que é que usar o “u” no final do pronome até que é ok, mas se você quer usar o “u” no final das palavras, para deixá-las neutras, acho bastante complicado porque o “u” tem som de “o”. “Professoru”, “todus”.
Tenho a certeza absoluta que fui a primeira pessoa que falou “todes” num palco do Brasil porque ninguém sabia disso. Tinha um evento para começar, o Ocupação SSex Box, em São Paulo, e aí eu achei que devia começar falando “boa tarde a todas, todos e todes”. Eu lembro até hoje que estava na cama, meio acordando, e pensei que faria sentido usar os três pronomes na introdução. Aí todo o mundo começou a falar “todes” e com o passar dos anos, você vê que hoje está mais popular e já chegou até na Europa. O próprio presidente do Brasil, Bolsonaro, está tentando proibir o uso dessa linguagem neutra em 14 Estados. E isso é de domínio público, as pessoas quase nunca sabem que fui eu que criei e que teve todo esse histórico, e tem essa questão de eu ser uma pessoa trans, negra, que geralmente já sofre apagamento social. É um pouco frustrante. Eu fiz para o mundo, não fiz para mim, mas o dossier vem contar um pouco essa história. Confesso que na edição do Brasil vamos ter três capítulos a mais, contando toda a narrativa histórica dos eventos. A Jaqueline Gomes de Jesus, que é uma professora da Universidade do Rio de Janeiro, foi uma das que mais acompanhou a criação desse pronome na época e até hoje, ela vai escrever um artigo científico e a gente vai usá-lo nessa edição do dossier, em que também convidei a Paula, que é uma linguista também amiga nossa, que vai explicar porque é que a gente chegou à conclusão de que o ILE funciona mais.
Algumas pessoas da academia acabam tirando um pouco de crédito de muita gente do movimento, porque tem muita gente que se aventura a falar de linguagem neutra misturando tudo, que é aquilo a que chamo de Torre de Babel LGBTQIA+, porque virou tudo uma bagunça. As pessoas estão confusas. O dossier pretende acabar com alguma confusão e mostrar porque é que o sistema ILE faz sentido. Na escrita da linguagem neutra, tem de haver algum consenso, e faz muito mais sentido com o “e” no final do que com o “u”.
“Eu acho que quanto mais as pessoas começarem a usar a linguagem neutra, mais começará a ser disseminada, e não tem como um decreto impedir que ela seja utilizada, porque a linguagem vai tornar-se parte das pessoas.”
Pri falava há pouco de São Francisco e lembrava-me do cinema de Monika Treut, que nos mostra como quando existe um grupo a lutar em prol do mesmo objetivo, a mudança acaba por surgir. Tem havido muita resistência em Portugal, e não só, no que toca à implementação da linguagem neutra — talvez porque não há um único sistema que seja adoptado por todes, também. Por que será que há sempre tanta resistência no que toca a mudanças na língua, como se estivéssemos já no fim da História?
P.B. – Antigamente se falava “vossemecê”, hoje não é mais usado, e se fala português do mesmo jeito. A língua muda, e é natural. O que eu preciso dizer é que o uso da linguagem é soberano e ele se impõe ao que a academia vai ditar como regra. O próprio termo “a gente” não se utilizava, mas hoje em dia já foi absorvido e é usado. Eu acho que quanto mais as pessoas começarem a usar a linguagem neutra, mais começará a ser disseminada, e não tem como um decreto impedir que ela seja utilizada, porque a linguagem vai tornar-se parte das pessoas. Se você pensar, hoje no Brasil a gente já tem isso mais trabalhado com o Instituto SSex Box, que criei há 10 anos. Nós criámos uma área que tem um outro nome que é o Diversity Box, através do qual a gente presta consultoria para empresas que querem trabalhar a questão LGBTQIA+. Muita gente não sabe sequer o que significa o Q, o A, o I. Até o P, de Pansexual. Há uma década atrás já trouxemos essa sigla extendida para o Brasil, ensinando as empresas sobre isso. A gente começa a ver a Netflix, que é também cliente nossa, usando nas legendas dos filmes em português o ILE, a linguagem neutra. Tem um desenho infantil já usando a linguagem neutra e também tem um personagem não binário. É incrível.
Tem uma marca de suco que também está já dizendo na caixa “Suco para Todes”, o Burger King também usou num comercial que fez no ano passado para o Pride. Quanto mais as marcas usarem, com propriedade — tem gente que está usando x ou @ até hoje, e a gente sabe que não é legal porque não é inclusivo com pessoas com deficiência visual —, mais rápido se vai popularizar e esse uso vai ser soberano às resistências que o governo possa ter. Seja no Brasil, seja em Portugal, ou em qualquer outro país onde a linguagem neutra já está sendo usada, desafiando esse sistema binário.
Como é que se garante que a inclusão é efetiva e não se cai em rainbow washing, nem acontece como no caso da Netflix que teve uma série de protestos com pessoas trabalhadoras trans a propósito de um espetáculo do Dave Chappelle?
P.B.: É um grande desafio. Aqui no Brasil, a gente está trabalhando com a Netflix num núcleo muito específico, de vez em quando a gente faz alguma sugestão de filme, de linguagem, etc. O que o Dave Chapelle fez foi péssimo, a atitude da Netflix foi pior ainda. Dá para perceber que a corporação como um todo não está incorporando o sentido real da inclusão e da equidade. Os desafios são inúmeros; a gente dá cinco passos para a frente e dez para trás. E esse movimento está acontecendo em todas as empresas, posso dar alguns exemplos. Há uma marca de bebidas que é nossa cliente, com a qual fizemos um trabalho profundo de democracia, de se pensar uma transformação sistémica na empresa no Brasil, fizemos viagens para todos os estados em que a empresa estava, formação para todas as pessoas que trabalham lá. Foi um trabalho de dois anos. Aí saiu a pessoa de Recursos Humanos, o CEO, porque mudaram de empresa, e ninguém sabia mais o que era diversidade. Como se todo o trabalho que estava para trás fosse jogado fora. A empresa tinha tantos gatilhos de preconceito que duas coisas aconteceram: eliminaram os programas de diversidade, os funcionários todos da empresa mudaram. Pior ainda, houve um dia em que eu e meu companheire estávamos dentro do prédio da empresa em São Paulo desmontando o evento que a gente fez lá e demos um beijo; o diretor do espaço passou e viu esse beijo, e fez um escândalo. Disse que era um absurdo, que podia ter sido uma criança a ver aquele beijo. Como é que aquilo podia acontecer naquele espaço público?! Ficou muito nítido que não adianta você ter um programa robusto e ter pessoas que invistam, se você ainda tem pessoas com cargos altos que não entendem nada e têm preconceito interno. Não adianta investir milhões e anos de trabalho se você tem pessoas-chave extremamente preconceituosas.
Se é só para fazer um evento no meio do mês Pride ou colocar arco-íris na sua garrafa, na sua marca de roupa, e falar que está fazendo alguma coisa, com essas empresas que já estão fazendo aquilo a que chamamos de rainbow washing ou diversity washing, eu prefiro não trabalhar.
“Tem pessoas trans que são altamente cis-normativas, então não adianta só colocar pessoa porque é negra ou trans em cargos específicos se a mentalidade da pessoa segue padrões do patriarcado e da branquitude.”
Em todo o seu trabalho, Pri fala de como o mundo é cis-centrado e branco. O livro Invisible Women, de Caroline Criado Perez, mostra como o desenho do mundo ocidental é patriarcal. A chave para a verdadeira revolução está em pensarmos que além de ser patriarcal, está assente num sistema binário, e como é preciso mudar o topo das pirâmides? Para que existam mais CEO trans, como é o seu caso.
P.B. – Eu sou dos únicos CEO trans do Brasil, são pouquíssimos. A Forbes fez uma matéria comigo e, de acordo com a pesquisa deles, sou o único CEO não binário na América Latina. Isso diz alguma coisa. Realmente poucas pessoas estão a ter acesso, e não é que eu tenha nascido numa família rica; muito pelo contrário. Eu nasci em família pobre, morei na favela até aos 15 anos de idade, minha família ainda passa por dificuldades financeiras. E não é que eu esteja super rico com um iate e uma mansão, porque não é esse o meu objetivo, e também não tenho esse acesso, mas consigo sobreviver do meu trabalho e ter uma projeção internacional, fazendo trabalho na América Latina, fazendo trabalho na Europa, nos Estados Unidos. São poucas pessoas trans que conseguem essa projeção porque o sistema bloqueia — ainda mais se for uma pessoa trans negra, que é o meu caso. Há muitas pessoas que têm poder e que têm esses marcadores identitários que eu carrego. Portanto, quando as pessoas pensam em incluir pessoas nas equipas de diversidade, precisam de pensar também na liderança. Essas lideranças precisam ter pessoas diversas e com profissionalismo. E não adianta você colocar qualquer pessoa negra no cargo de chefia, esse é o maior erro das empresas. Primeiro, vocês estereotipa as pessoas, e as pessoas quase nunca fazem parte dos quadros executivos. Você olha os números das 500 maiores empresas do Brasil e a percentagem de mulheres negras é muito reduzida. Enquanto este sistema não mudar, nós, pessoas de grupos menorizados, vamos fazer sempre parte da base da pirâmide.
Aqui no Brasil houve um sujeito negro que foi eleito pelo Bolsonaro para liderar a Fundação Cultural Palmares, que é uma fundação histórica no Brasil que luta pelos direitos das pessoas negras e pardas, e ele é altamente preconceituoso. Ele é um homem negro, mas é racista. E tem pessoas trans que são altamente cis-normativas, então não adianta só colocar pessoa porque é negra ou trans em cargos específicos se a mentalidade da pessoa segue padrões do patriarcado e da branquitude. É bem complicado, não é só colocar as pessoas em lugares. Essas peculiaridades precisam ser muito bem analisadas.
Falámos sobre a linguagem, mas gostava de trazer também para a conversa a cultura visual. Quão importa é a representatividade de pessoas trans e/ou não binárias nas séries e filmes? Essa representatividade passa por essas pessoas fazerem o papel de si mesmas?
P.B. – Eu acho que precisa de representatividade em todos os veículos de comunicação. No cinema, nas artes visuais, no teatro, em revistas, comerciais de televisão. Você não tem corpos negros, corpos trans, corpos gordos. Você só tem aquele exemplo da infância, de há décadas atrás, da princesa à procura do príncipe encantado. E me chateia muito a própria comunidade trans se encaixando nesse sistema para pertencer. Aconteceu um concurso de beleza aqui no Brasil que foi muito polémico, que se chamava Mister Trans. Aí colocaram homens trans todos fortes, magros, musculosos, e óbvio que o que ganhou foi um homem branco, com barba, com músculos, o estereótipo do homem branco cis-hétero. Ou seja, qual é o padrão de beleza que se pensa hoje na própria comunidade trans? Não adianta trocar uma caixa pela outra.
Representatividade é importante, mas não podemos fazer só por fazer, sem ter essa consciência crítica. Falar da consciência e da cultura queer vai trazer um pouco mais essa reflexão: se eu só me encaixo igualando ao padrão, então não estou mudando nada no sistema, e então não é o que a gente acredita ser eficaz. Quando a gente fala dessa representatividade trans, de linguagem e tudo mais, eu acho que sim, a gente cada vez precisa mais de ter personagens trans não só representando-se a si mesmas, mas também acho que pessoas trans podem interpretar personagens cisgénero. Porque não? Pessoas trans não têm só de falar de transgeneridade, pessoas trans podem ser médicos, dentistas, advogados, especialistas em alimentação, em nutrição, em ecologia. Não dá para simplesmente achar que todas as pessoas trans só vão falar de coisas de pessoas trans. De novo, é o estereótipo da cisgeneridade. Os problemas são imensos e eu acho que quando se fala de consultoria para marcas, a maioria ainda é feita por homens brancos cisgénero gays, que criam programas pensados pela perspetiva deles. Não muda nada, novamente.
Acha que a revolução vai acontecer quando cada pessoa aceitar a sua identidade e não tentar ir ao encontro do padrão normativo?
P.B.- Exato, mas é muito difícil. Porque sem educação para a própria comunidade trans, como é que se faz isso? O movimento trans aqui no Brasil está criando um cenário tão difícil para a saúde mental de pessoas trans. Tem homens trans falando “ah, você não é trans de verdade porque você ainda não tomou hormônios”; “você não é trans de verdade porque você não tirou os seus seios, você só será trans de verdade quando fizer cirurgia”. A transgeneridade para essas pessoas ainda precisa se encaixar num padrão corporal que é a cisgeneridade. Primeiro porque a transgeneridade é na cabeça — a minha identidade não é o meu corpo. Eu não preciso de mudar o meu corpo para ser trans de verdade. Há uma descriminação com pessoas trans que as faz passar por uma ansiedade horrível, há muitos casos de suicídio. E a mesma coisa com mulheres trans. Acreditam que se você não tiver aquela beleza do que é o estereótipo do feminino, desenhado pelo patriarcado, você não é trans de verdade. Se você não tem um bom cabelo, se não pintar unha, “não é trans de verdade”. Se você é uma mulher trans e deixa a sua barba aparecer, você “não é trans de verdade”. E essas pessoas são chacota dentro da própria comunidade trans, e é isso que me dói ver. Porque acontece o tempo inteiro. E eu acho que se não tivermos um olhar crítico, a gente só está replicando o sistema criado pelo cis-hetero-patriarcado e a branquitude. E é isso que está acontecendo.
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