“As forças armadas são tradicionalmente masculinas, misóginas e homofóbicas”

“As forças armadas são tradicionalmente masculinas, misóginas e homofóbicas”

14 Maio, 2022 /
Fotografia de Marharyta Rivchachenko (DR)

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Numa altura em que a igualdade de género é tão debatida, surgem inevitavelmente questões de interessante discussão. Terá a guerra vindo provocar um retrocesso? Há abertura para a igualdade de género nos exércitos e nas guerras?

Quando a guerra na Ucrânia se começou a tornar uma realidade com a qual teria necessariamente de lidar, Marharyta Rivchachenko percebeu que a vida como a vivia teria de ficar em pausa. Trabalhava como jornalista e assessora de imprensa, hoje está na frente de batalha a ajudar os soldados como paramédica. Ivan Honzyk, modelo, make-up artist e pole dancer, é também membro do exército ucraniano — mas, no seu caso, não é de agora. Desde 2015, pouco depois da Rússia invadir a Crimeia, Honzyk começou a trabalhar num hospital militar. “Quando a Rússia atacou o meu país abertamente, percebi que iria ficar e juntar-me à equipa”, partilha o make-up artist com o Shifter

Perante o surgimento de um conflito armado em espaço europeu, assiste-se com maior proximidade à mobilização de cidadãos para combater. A invasão russa à Ucrânia trouxe de volta aos radares a mobilização de cidadãos para exercícios militares e, se para alguns isso foi uma opção, para outros não. Nas primeiras horas do conflito, o presidente ucraniano Vladimir Zelensky prorrogou a lei marcial que, entre outras coisas, impede todos os homens considerados aptos para serviço militar de abandonar o país, mesmo enquanto as mulheres e crianças das suas famílias procuram fugir dos bombardeamentos constantes. 

Perante isto, e numa altura em que a igualdade de género é tão debatida, surgem inevitavelmente questões de interessante debate. Terá a guerra vindo provocar um retrocesso? Há espaço para a igualdade de género nos exércitos? Até que ponto a heteronormatividade eminentemente masculina domina a narrativa de combate? Será que alguém parou para pensar sobre isso?

“Todos os valores, leis, regulamentos, são de algum modo suspensos, porque a guerra é um estado de excepção relativamente à vida normal em sociedade” começa por dizer em entrevista ao Shifter António Fernando Cascais, investigador da Universidade Nova de Lisboa, nas áreas da teoria Queer, Estudos de Género, Cultura Contemporânea, entre outras. Para o investigador, em momentos como este “as assimetrias, as desigualdades, as características que as sociedades têm acentuam-se”, e “todas as considerações que não tenham a ver com a eficácia da guerra, com a vitória, o combate, os objetivos estratégicos, tudo passa para segundo plano” mesmo em sociedades que possam expressar tendências evolutivas. 

A guerra tende a ser, ainda, um fenómeno eminentemente associado à masculinidade e heterossexualidade de forma “unânime”, defende o investigador, aludindo ao carácter sistémico desta realidade. “Heterossexual, em regra masculino, ou até masculinista. A guerra esteve sempre ligada às chamadas virtudes guerreiras, atribuídas ao masculino em exclusivo. De certo modo, mesmo com a inclusão das mulheres, esses valores mantêm-se, ao não se destacar mulheres para a frente de batalha, para situações em que correm perigo de vida”, acrescenta António Fernando Cascais.

No seu ensaio intitulado Three Guineas, originalmente publicado em 1938, Virginia Woolf referia que “apesar de muitos instintos serem mais ou menos comuns a ambos os sexos, combater tem sido sempre o hábito do homem, não da mulher” [tradução livre]. Hoje, a gestão dos acontecimentos, parece ecoar esta perspetiva.

No início do mês de abril as Nações Unidas alertavam que das cerca de 10 milhões de pessoas que já tinham sido forçadas a abandonar as suas casas, 90% eram mulheres e meninas. Os homens entre os 18 e os 60 anos, pelo contrário, foram proibidos de deixar o país e foram mobilizados para combater.

Marcela Uchôa, doutora em Filosofia política e membro do Instituto de Estudos Filosóficos da Universidade de Coimbra, reforça que este conflito armado marcou um ressurgir de “alguns estereótipos de guerra e de masculinidade e de figuras que a representam, como os heróis da guerra”. Por outro lado, as mulheres tendem a ser enquadradas como as esposas “virtuosas” que acompanham os soldados. Para a investigadora esta percepção é mesmo um “jogo político” trabalhado e personificado pelo próprio presidente ucraniano, Volodymyr Zelensky, e pela a sua esposa, Olena Zelenska.

Além disso, Marcela diz que é importante notar que, quando se fala de masculinidade, não se fala só de homens: “dentro dessa questão tem toda uma massa social que está englobada e que faz parte, [de forma] consciente ou inconsciente, desse mecanismo capitalista, porque é de venda, venda de um produto falocêntrico que se foca nessa masculinidade tóxica”, diz a investigadora.

Obrigações militares e papéis de género

Ainda que o enquadramento legal dite a obrigatoriedade dos homens e os dados estatísticos mostrem que a sua prevalência nos exércitos é inegavelmente superior, há excepções a este padrão que de certa forma confirmam as ideias pré-estabelecidas sobre os papéis de género. Marharyta Rivchachenko, decidiu que não iria sair do país, mas antes prestar auxílio aos esforços de guerra. “Não tinha como agir de forma diferente porque a minha família estava em Kharkiv, a 24 de fevereiro, mas eu estava em Kiev. Eu vivo em Kiev há um ano e trabalho aqui. Quando me apercebi de toda a dimensão da guerra, eu estava muito assustada, mas queria fazer alguma coisa para ajudar as pessoas. Não sou um soldado, não posso fazer mais do que sei, mas apercebi-me que tinha um curso de primeiros socorros e, por isso, podia ser paramédica”, conta, em entrevista ao Shifter.

Marharyta é uma das muitas mulheres que se tornaram notícia por escolher ficar. A sua história surge relatada em órgãos de comunicação internacionais, ora como um caso dissidência, ora como um sinal de mudança cultural.

Apesar de tudo, a jovem diz não sentir que ser uma mulher no exército seja visto como uma desvantagem, sublinha que qualquer pessoa pode fazer parte do exército, se assim o desejar, e reflecte sobre a sua percepção própria também se torna excepcional neste momento. “Agora, no exército ucraniano, cerca de 5 ou 10% são mulheres [há estatísticas que referem 15%], mas nem todas são soldados. A maioria trabalha na documentação, na cozinha, na parte médica… mas acho que se integrares o exército apercebeste que não és uma mulher, és um soldado antes de tudo”, explica.

Na base da formação do corpo militar dos países está em muitos casos o serviço militar obrigatório ditado por lei sendo assim uma boa forma de deduzir, para além da relação com a própria militarização, a distinção de género que é ou não feita. No caso da Ucrânia vale a pena lembrar que o país planeou terminar o serviço militar obrigatório, retomou-o em 2014 e em 2022 retomou a intenção revelada em 2013, acabando por suspender os planos com o ínicio da guerra. Neste caso, o SMO na Ucrânia destina-se a homens dos 20-27 anos mas existem países em não existe distinção de género, como é o caso da Suécia ou a Noruega que se tornou no primeiro país membro da NATO a ter um serviço militar obrigatório gender neutral

Para Miguel Vale de Almeida este tipo de casos são sinais de mudança, embora defina, de uma forma geral, a “máquina de guerra” como uma “instituição patriarcal”. O professor catedrático do Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), que investiga vários temas, entre eles género e sexualidade, diz que o conceito de guerra ainda incorpora valores típicos de masculinidade, ainda que os mesmos possam variar de país para país. “No leste europeu, sobretudo na ex-URSS, permanece muito a ideia da bravura, obrigação militar masculina e a ideia das mulheres como “reserva” da nação – procriadoras a serem protegidas”, explica.

Vale de Almeida afirma que “as forças armadas são tradicionalmente masculinas, misóginas e homofóbicas”, apesar de considerar que tem havido alguma abertura a mulheres, homossexuais e pessoas trans. Ainda que sublinhe, “tal não significa necessariamente que as características masculinas e patriarcais, da própria ideia de guerra – hierarquia, disciplina, missão patriótica, etc. – desapareçam” já que “podem ser interiorizadas por militares não-cis-heteronormativos”. 

Olhando ao caso norueguês, a SecurityWomen, ONG britânica dedicada a lutar por representação equalitária no sector de defesa, revela que apesar da abertura ao género, o sistema militar continua a ser predominantemente masculino mas com tendências de melhoria. Mais se afirma que o equilibrio entre géneros nos quadros diminui o assédio dirigido às mulheres mas que 7 anos volvidos está longe de ser um caso encerrado.

Diversidade vista como sinal de fragilidade

Além dos papéis marcadamente distintos que são atribuídos a homens e mulheres, a guerra ainda é vincadamente associada a heteronormatividade, de acordo com os investigadores e investigadora ouvidos pelo Shifter.

Olhando especificamente para o caso português, em 1999 foi denunciada e declarada inconstitucional a discriminação em face da orientação sexual na lista de inaptidões para prestação de serviço militar, segundo uma notícia do Diário de Notícias. Até aqui, a portaria n.º 29/89, de 17 de janeiro, que definia a “tabela de perfis psicofísicos e de inaptidões para efeitos de prestação do serviço militar, a ser usada nos centros de classificação e selecção”, classificava como “doença mental” os “desvios e transtornos sexuais”, nomeadamente a “homossexualidade e outras perversões sexuais”. Isto significa que a homossexualidade era mesmo fator de exclusão aquando do recrutamento.

Apesar da lei ter sido alterada, em 2015, uma notícia do jornal I, dava conta de que a homossexualidade era considerada uma “contra-indicação” para uma carreira no Exército, sendo listada juntamente com o consumo de drogas ou o alcoolismo. A mesma ideia foi detetada numa página da instituição que estava vinculada ao gabinete de atendimento de Castelo Branco, motivo pelo qual o Exército garantiu tratar-se de um “lapso isolado” que terá sido “prontamente retificado”.

Para o investigador António Fernando Cascais, apesar de tudo, a inclusão de pessoas LGBTQIA+ ainda é vista como um sinal de fragilidade que “afeta a moral das tropas”.

“Um corpo militar é um corpo nitidamente diferenciado do resto da sociedade, em que os valores da coesão, da identificação total, da vocação declarada, do dono de si, são totais, são exigências básicas, imperativos”, explica. Por este motivo “a presença de indivíduos nitidamente diferenciados é vista como uma ameaça a essa coesão. No mínimo causa desconforto aos homens heterossexuais”, acrescenta.

Miguel Vale de Almeida também afirma que a inclusão de pessoas LGBTQIA+ nas forças de combate é ainda encarada como um sinal de fragilidade, especialmente “por certas hierarquias militares e políticas”. “Faz parte de uma visão de mundo em termos de género em que são atribuídos aos homens hetero valores, capacidades e funções relacionadas com a força, o espírito de corpo e camaradagem, e a tutela da defesa da Nação”, explica.

Estas noções não são apenas aplicáveis à situação de Portugal, mas referem-se à situação de guerra de um modo geral.

Ivan Honzyk, que faz parte de um grupo de pessoas que não se enquadra numa massa heteronormativa do exército, diz-se “obcecado” com a formação militar na área da medicina, mostrando que tal não impede que seja uma “pessoa criativa”. “Eu trato pessoas que procuram ajuda e travo uma guerra de informação, provando que as pessoas LGBT são normais”, sublinha.

Questionado sobre se detetou algum cenário de discriminação no meio militar ucraniano, Ivan diz que “algumas pessoas LGBT são tratadas de forma normal, mas infelizmente algumas são discriminadas”. Apesar disso assegura ficar “contente por a Ucrânia se ter tornado muito mais tolerante do que era antes”.

“Eu conheço muitos gays e lésbicas que estão na linha da frente, a defender o nosso país e mesmo aqueles que não estão no exército estão a voluntariar-se e a ajudar os militares que precisem”, acrescenta o jovem ucraniano.

Autor:
14 Maio, 2022

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