“Se há impacto que esta guerra vai ter, será em duas áreas: energia e defesa”

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“Se há impacto que esta guerra vai ter, será em duas áreas: energia e defesa”

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As consequências da guerra na Ucrânia vão além fronteiras. As sanções contra a Rússia continuam a aumentar e o número de refugiados já ultrapassa os cinco milhões. Na União Europeia, o reforço das políticas de defesa e a diversificação das fontes de energia parecem tornar-se uma prioridade.

Mais de 60 dias depois do início da invasão da Rússia à Ucrânia, as tropas de Moscovo ainda não conseguiram atingir os objetivos delineados pelo Kremlin. O conflito em solo europeu tem agitado a comunidade internacional e levou a que vários países, nomeadamente os membros da União Europeia (UE), tenham adotado medidas contra a Rússia.

Sem intenções de outras partes em entrar diretamente no conflito – o que poderia representar a escalada imediata, ao limite, para uma terceira Guerra Mundial –, o bloco político da União organiza-se e faz da política de sanções a sua maior arma na tentativa de frear o conflito. Para os investigadores Sandra Fernandes, doutorada em ciência política com especialização em Relações Internacionais e investigadora na Universidade do Minho em Ciência Política, e André Pereira Matos, doutorado em Relações Internacionais e Diplomacia da Universidade Portucalense e coordenador do Mestrado em Relações Internacionais e Diplomacia da Universidade Portucalense, este era o passo previsível para uma união com as suas particularidades institucionais. 

As sanções como resposta da União Europeia ao conflito

O quinto pacote de sanções adotado no dia 8 de Abril pelo Conselho da União Europeia incluiu novas punições a “familiares de indivíduos já sancionados”, determina o encerramento de portos europeus a embarcações russas, a proibição de exportações para a Rússia, em particular de bens de alta tecnologia, estimada em 10 mil milhões de euros, e ainda novas sanções contra os bancos russos. Simultaneamente, o Parlamento Europeu aprovou quase por unanimidade um apelo a um embargo das importações de carvão russo e outros combustíveis fósseis sólidos, medida que pode ser incluída num próximo pacote de sanções que, segundo consta, já está a ser preparado.

“Estas últimas sanções foram adotadas na sequência das atrocidades cometidas pelas forças armadas russas em Bucha e noutros locais sob ocupação russa. O objetivo das nossas sanções é por fim ao comportamento imprudente, desumano e agressivo das tropas russas e deixar claro aos decisores no Kremlin que a sua agressão ilegal tem um custo elevado”, anunciou à data o Alto Representante para os Negócios Estrangeiros e a Política de Segurança, Josep Borrell, uma das figuras centrais do lado da União neste xadrez geopolítico. 

As sanções têm vindo a crescer progressivamente consoante o conflito se vai intensificando, sendo a par do envio de ajuda humanitária, o vetor principal da acção da União Europeia – perante uma sociedade aparentemente mobilizada em prol de apoio à Ucrânia. Para André Pereira Matos, a resposta da UE tem sido “inteligentemente preparada e concertada, demonstrando à Rússia que o mundo não fica indiferente perante a invasão militar a um Estado soberano”. Apesar de o Kremlin ter previsto algumas das sanções, Pereira Matos sugere que a Rússia não esperava tanta cooperação no mundo ocidental, nem penalizações “tão pesadas” às elites e à própria economia do país.

Já Sandra Fernandes lembra que “[a] UE é muito criticada porque as pessoas estão à espera que se faça sempre mais, mas a União Europeia não é um estado, é um processo de integração”. Isto significa que as decisões podem demorar mais tempo a ser tomadas, pois basta um Estado-Membro não concordar que a medida não é aprovada. “Em matéria de política externa é onde UE tem menos capacidade de decisão enquanto UE, porque depende muito mais da vontade dos seus estados membros. Na adoção de sanções basta um estado membro não querer. As sanções requerem unanimidade completa”, explica.

Para além disso, o carácter moroso das sanções impostas pela UE não se esgota na componente burocrática. Recaindo sobre componentes importantes das sociedades contemporâneas, nomeadamente o crítico sector energético, a sua aplicação implica uma cuidadosa transição que no entretanto vai continuando a alimentar os cofres de empresas da esfera estatal russa como a Gazprom a um ritmo superior ao da ajuda dada à Ucrânia. Há algumas semanas, Borrell dava conta que desde o início da invasão, os Estados europeus já tinham pago cerca de 35 mil milhões de euros pelos combustíveis russos, valor que contrasta com a ajuda que à data se situava apenas nos mil milhões de euros.

As exigências russas pelo fim da ofensiva 

“À medida que o conflito vai avançando, qualquer que seja o compromisso a que as partes cheguem será sempre o resultado de cedências e, atendendo à assimetria das posições entre a Ucrânia e a Rússia, será a Ucrânia a ceder. Ainda assim diria que algumas das exigências que a Rússia está a fazer são incomportáveis”, afirma André Pereira Matos, elencando, por exemplo, a proibição da adesão à NATO e à União Europeia, o estatuto de neutralidade e outros compromissos em relação a Moscovo. 

Incidindo especificamente sobre a neutralidade e ao facto de ainda não se saber ao certo como pode ser operacionalizada, o investigador acrescenta: “Existe esta névoa quanto ao próprio conceito porque é uma forma de ambas as partes não deixarem passar para os seus eleitores e as suas comunidades a perceção de uma perda maior do que a que aconteceu”, afirmando de seguida que ainda assim se vislumbra uma possível atenuação da exigência russa no horizonte com o hipotético fim da exigência de não entrada da Ucrânia na UE a ecoar, provavelmente, a surpresa dos russos face à resposta generalizada.

“Estamos numa situação intermediária em que a Ucrânia não perdeu tudo, mas a Rússia também não ganhou”, diz Sandra Fernandes, “ninguém sabe a partir de que momento a Rússia considera ter ganhos para ir à mesa de negociações”, conclui. No equilíbrio desta balança pesa não só a política externa russa mas, também, e não menos importante, a gestão de perceções para dentro de portas. Pereira Matos lembra que “as sanções não são uma forma de terminar de imediato com a guerra. As sanções servem de efeito dissuasor para que também na mesa de negociações a Rússia perceba que tem determinadas vantagens em acelerar o processo de paz e a sua retirada. As sanções enviam uma mensagem: o Ocidente não tolerará invasões militares a Estados soberanos”.

“Ainda que a Rússia seja uma Democracia iliberal, um sistema híbrido ou até mesmo uma autocracia, a perceção pública é muito importante mesmo que ela seja moderada pelo controlo dos meios de comunicação. É importante  que a Rússia consiga para efeito de propaganda e comunicação garantir aos cidadãos que foi à Ucrânia com legitimidade para defender dois territórios que queriam a sua independência, a desnazificação da Ucrânia e também a neutralidade da mesma”, conclui. 

O equilíbrio de poder e perceção dentro e fora de portas é uma problemática com muitas variáveis. As sanções mais sonantes congelam bens e ativos dos oligarcas próximos do regime de Putin numa tentativa de exercer pressão direta sobre este, mas também se implicam a instituições nevrálgicas da sociedade russa como o Banco Central russo e impedem a utilização por parte dos russos de sistemas globais como a SWIFT, fazendo-se sentir em todos níveis da economia, como as notícias vão dando conta, e pondo a Federação em risco de falência. Do ponto de vista financeiro, por exemplo, a moeda russa (o Rublo) parece ter recuperado o valor de referência à custa de medidas de controlo de capitais que dificultam a conversão da moeda local para moeda estrangeiras como o Dólar – pelo que se o valor é aparentemente o mesmo, em termos práticos não o é. Já do ponto de vista social, para além do fecho de algumas multinacionais a atuar em solo russo – como marcas sobejamente conhecidas como a McDonald’s ou outras – noticia-se também a perda de mão de obra qualificada à medida que alguns dos que o conseguem fazer abandonam o país.

Em suma, o resultado para a Rússia das sanções impostas pelo Ocidente está intimamente ligado à manutenção dos pagamentos por combustíveis feitos por países europeus e à capacidade de negociar com outras grandes potências, nomeadamente a China ou a Índia, que permitam o acesso a divisas mas também a componentes essenciais para a manutenção da normalidade – a título de exemplo, a empresa detentora da rede social Vkontakt (VK) teme ter escassez de servidores para colmatar o aumento de utilizadores agora que outras redes sociais foram bloqueadas.

O que resulta para a União no pós-conflito

A ameaça externa a que a Europa assiste está a ter repercussões na estrutura da União Europeia. Segundo André Pereira Matos, “[d]o ponto de vista interno se há impacto que esta guerra vai ter eu diria que será em duas áreas: diversificação das fontes de energia e defesa”. E se a segunda questão acaba por ser uma novidade em cima da mesa – a União não tinha sido confrotada com grandes questões de defesa nos últimos anos, a questão da energia pode demonstrar alguma passividade política, uma vez que “já se tem vindo a falar desde a altura da primavera árabe sobre esta questão, por causa da instabilidade política do médio oriente mas não aprendemos a lição direito e aumentámos a dependência energética da Rússia”. Recorde-se que pouco tempo antes do começo do conflito militar, um dos assuntos na ordem do dia era o Nordstream 2, um segundo gasoduto de fornecimento direto de gás à Alemanha.

No que diz respeito à defesa, Pereira Matos considera que “o papel da NATO sai reforçado no sentido da sua legitimação popular e dos próprios Estados perceberem que têm uma vantagem nesta aliança, ainda que já tenham passados muitos anos desde a guerra fria”; depois de Macron ter feito as famosas declarações sobre a morte cerebral da NATO, o seu papel sai do conflito reforçado – embora amplamente disputado por vários partidos de oposição que apontam a Aliança como um elemento historicamente desestabilizador. “Não esqueçamos que o Presidente Macron tinha declarado a morte cerebral da NATO e o antigo Presidente dos EUA tinha proposto a saída da NATO porque os europeus não contribuíam para os orçamentos de defesa tal como o tratado exigia. A verdade que os europeus têm investido muito pouco em defesa no últimos anos e agora vê-se um ponto de viragem.” Ainda assim, o sentido dessa viragem continua a não ser inteiramente claro, com várias opções no horizonte, nomeadamente o reforço individual da defesa de cada país ou a criação de um sistema de defesa comum aos membros da União Europeia e independente da NATO.

Para Sandra Fernandes são também óbvios os sinais de mudança dentro do espaço da União, desde logo com a inversão histórica do posicionamento alemão. “Historicamente, a Alemanha abandonou a ideia de ser uma potência militar devido à Alemanha nazi. O facto de o chanceler ter invertido essa opção faz com que um grande Estado da UE comece a investir mais no braço armado.” Numa perspetiva mais alargada, a discussão sobre o formato de defesa da União Europeia teve nesta crise o seu apogeu. “A UE já está a tentar construir uma política de defesa há muitos anos, há vontade de o fazer, não tem sido concretizado. O que acelerou muito as coisas foi o Brexit e a Administração de Trump. Temos uma grande aceleração nessa área desde 2016 nomeadamente com a constituição do fundo europeu de defesa e das parcerias reforçadas chamadas Pesco.”

Todas estas mudanças envolvem, direta ou indiretamente, o membro da NATO do outro lado do Atlântico, os Estados Unidos da América que acabam por ter uma posição referencial em todos os conflitos. Nesse aspecto, Sandra Fernandes diz que a guerra na marca também “o regresso dos Estados Unidos da América à Europa, após vários anos focados na zona do Indopacífico, com o crescimento do domínio Chinês”.

Depois de dois meses de ataques russos em solo Ucraniano, do famigerado massacre de Bucha e de acesas disputas em torno de importantes cidades – especialmente no leste da Ucrânia –, as autoridades locais continuam a exigir corredores humanitários para retirar civis das cidades, e estima-se que o número de refugiados ucranianos já ultrapasse os cinco milhões.

Por outro lado Von Der Leyen afirma que a União Europeia está preparada para suspender o abastecimento com gás russo em resposta ao que chamou tentativa de chantagem da Gazprom – que ameaçou o corte de abastecimento a alguns países – em mais um claro sinal de mudança. “Estamos a assistir ao mundo em transformação, mas ainda não sabemos qual será a nova ordem internacional”, conclui Sandra Fernandes.

Índice

  • Inês Batista

    Natural da mui nobre cidade de Braga, a Inês está (quase) a licenciar-se em Ciências da Comunciação, com especialização em Jornalismo, na Universidade do Minho. Dizem que é a mulher dos sete ofícios. Entusiasta de música não perde um bom concerto, mas também não fecha os olhos a uma boa história.

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