Com a crise pandémica, a crise climática e a crise de extinções em massa, é difícil encontrar algo que nos dê esperança e que seja capaz de inspirar. Algo que nos inspire e maravilhe como quando vemos na noite escura o brilho das estrelas e dos astros. Mas há algo que oferece isso mesmo, o restauro da Natureza, a Renaturalização – em inglês, Rewilding.
Para fazer face aos desafios trazidos pela crise climática e pela perda de biodiversidade, são precisas soluções que lidem com um sem comprometer o outro. Turbinas eólicas que, apesar de terem impacto na descarbonização da economia, quando são instaladas sem critério constituem um distúrbio à vida selvagem ou as barragens, que produzem energia elétrica “limpa” mas que impedem a reposição de sedimentos em zonas costeiras, são exemplos de como se pode fazer face a um problema criando outro. Restaurar ecossistemas, por outro lado, mitiga os efeitos das alterações climáticas fixando carbono, adapta a paisagem a eventos extremos mais frequentes, e cria oportunidades para a vida selvagem prosperar. Os pântanos são exemplos perfeitos, armazenando grandes quantidades de carbono, previnem eventos extremos como cheias e são um ponto de atracção para a vida selvagem.
A Década de Restauro de Ecossistemas da ONU de 2021 a 2030 e estratégia de Biodiversidade 2030 da União Europeia em que um de 3 pilares é o restauro de ecossistemas, dão voz à necessidade e urgência em restaurar a natureza.
O conceito de Rewilding surgiu nos anos 1990 e, desde então, tem continuado a evoluir e a adaptar-se até aos dias de hoje. Inicialmente, começou por ter um foco em 3Cs: o C de Carnívoros, responsáveis por regular a população e influenciar o comportamento de herbívoros e pequenos predadores; o C de Core, áreas protegidas centrais onde a natureza pode ter o seu espaço e; de Corredores, faixas para ligar áreas protegidas entre si através de zonas fragmentadas. Hoje, Renaturalizar visa restabelecer processos naturais, de modo que o ecossistema possa funcionar sem a necessidade intervenção do Homem. Como deixar rios e ribeiras alagar as margens, recuperar cadeias tróficas com herbívoros, predadores e necrófagos e promover a dispersão de espécies entre diferentes locais, os chamados corredores ecológicos, quer seja de pequena ou grande escala. A Década de Restauro de Ecossistemas da ONU de 2021 a 2030 e estratégia de Biodiversidade 2030 da União Europeia em que um de 3 pilares é o restauro de ecossistemas, dão voz à necessidade e urgência em restaurar a natureza.
No livro Rewilding European Landscapes, os académicos Henrique Pereira e Laetitia Navarro exploram a oportunidade do abandono agrícola de terras marginais para a conservação da natureza na Europa. Até 2030 é esperado que uma área agrícola do tamanho de Espanha seja abandonada na União Europeia. Podem antigas áreas agrícolas ser usadas para tornar o velho continente um lugar mais selvagem?
A receita para recuperar a harmonia nos ecossistemas e restaurar terras degradadas começa com eliminar/reduzir os distúrbios e depois deixar a natureza seguir o seu curso. Algumas medidas incluem: acabar/limitar a poluição, controlar espécies invasoras, diminuir barreiras como barragens e açudes, restaurar processos naturais como cheias, recuperar espécies que pela ação direta (caça) ou indireta (perda de habitat) desapareceram e até considerar algo novo como ajudar espécies a migrar, espécies que não são nativas mas que devido às alterações climáticas perderam ou irão perder o seu habitat. Por fim, depois de o ecossistema estar completo, de todas as funções estarem presentes e de a intervenção humana ser desnecessária deixar as dinâmicas da natureza ditar a evolução da nova área natural.
Para imaginar novos ecossistemas funcionais, diversos e abundantes a nossa mente é uma barreira. O chamado Shifting Baseline Syndrom, a abundância e diversidade da natureza que vivenciamos em criança é o que entendemos como normal, mas quando a natureza está em decadência há milhares de anos é difícil compreender a escala do declínio. Uma viagem pelas pinturas rupestres do passado como as do Côa ou as de Lascaux em França, em que o retrato da Europa faz lembrar África. Ou o nome de localidades e lugares, como a famosa cascata do Pulo do Lobo ou Zebreira (nome antigo para equídeos selvagens) ambos no Alentejo, ou ainda as histórias da idade média de rios a fervilhar de peixe, ilustram a diversidade e abundância de vida selvagem que existia no passado que hoje está perdida e esquecida.
Outro obstáculo a estas ações é o argumento económico, que, contudo, pode ser rebatido pelos serviços prestados pela natureza, mais dificeis de percepcionar. Inúmeras vezes, pequenas dinâmicas são ilustradas como um serviço que a natureza disponibiliza de forma gratuita e que de outra maneira teriam que ser pagos. Contudo, há uma outra perspectiva, custos que já existem no presente, que poderiam ser evitados se a maneira como gerimos a natureza fosse alterada, passando de uma maneira ativa para uma passiva, restaurando a natureza e deixando que os processos naturais regulem a paisagem.
Dois exemplos que ilustram o fenómeno: o programa de cabras sapadoras, com um orçamento de 3,5 milhões e com o objetivo de limpar matos e, o programa de restauro fluvial da APA, com um orçamento de 12 milhões e com a finalidade de recuperar rios e ribeiros com um estado de conservação desfavorável. O primeiro replica o trabalho das ausentes cabras montesas (Capra pyrenaica) e camurças (Rupicapra rupicapra) que estavam distribuídas um pouco de Norte a Sul do país mas que hoje só existem no Gerês e o segundo, mimica o efeito dos castores (Castor fiber), uma espécie nativa mas localmente extinta, na manutenção de rios e ribeiras.
Existem exemplos na prática do conceito. Nas terras lusas o trabalho da Rewilding Portugal no Grande Vale do Côa ao restaurar um corredor ecológico entre o Douro e a Malcata ou o trabalho da SPEA nas Ilhas Berlengas ao eliminar espécies invasoras e promover a expansão de espécies nativas. Pela Europa, as atividades da Rewilding Europe com oito áreas piloto localizadas do Mediterrâneo ao Báltico. E pelo Mundo, os casos mediáticos da Rewilding Argentina na América do Sul e da African Parks no continente Africano, que para além de restaurarem áreas degradas, promovendo o regresso de todos os animais em falta — herbívoros, carnívoros e necrófagos, — desenvolvem uma economia de conservação ao redor dos Parques Naturais garantindo que as populações têm um rendimento económico direto das áreas protegidas, o que cria incentivos para que a zona selvagem seja preservada para o presente e para o futuro.
Os últimos alertas dos cientistas, os eventos climáticos extremos e a perda de biodiversidade à escala planetária não deixam dúvidas. É preciso agir, precisamos de mudar a nossa relação com o mundo natural. Mais do que fé em eficiências ou em novas tecnologias para resolver o problema. É preciso mais natureza, vida sequestra carbono e vida cria vida. Uma das medidas mais esquecidas para fazer face aos desafios ambientais dos nossos dias, é também uma das mais fáceis e mais baratas, mais belas, inspiradoras e maravilhosas… restaurar a natureza e tornar o planeta um lugar mais selvagem.