A Liberdade dos Futuros: como salvar a democracia em tempos de crise ecológica

A Liberdade dos Futuros: como salvar a democracia em tempos de crise ecológica

31 Janeiro, 2022 /
Recorte da capa original do livro / via Tinta da China

Índice do Artigo:

Publicamos a introdução do livro A Liberdade de Futuros, da autoria de Jorge Pinto, recentemente editado pela Tinta da China. Jorge Pinto é licenciado em Engenharia do Ambiente e doutor em Filosofia Social e Política. Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE, pelo qual foi recentemente candidato às eleições legislativas 2022.


Este livro começou a ser escrito em dezembro de 2019, nos primeiros dias da COP25, realizada em Madrid. Esta conferência reúne anualmente os líderes mundiais ao abrigo da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, na busca de acordos globais que possam colocar o planeta novamente numa rota de sustentabilidade ecológica. A 25.ª conferência deveria decorrer em Santiago, no Chile, mas meses de manifestações contra as desigualdades sociais e económicas, acompanhadas de uma brutal repressão policial do governo liberal de Sebastián Piñera, obrigaram, à última hora, à alteração do local1. Crise ecológica e crise social estão, neste início da segunda década do século XXI, de mãos dadas.

Estas duas grandes crises incluem um conjunto igualmente importante de outras crises que, quando consideradas em conjunto, deixam claro o momento-chave que, enquanto sociedade e também enquanto espécie, enfrentamos. A crise ecológica é, assim, muito mais do que a crise climática e compreende, entre outros, a dramática perda de biodiversidade ao nível global; a extração de recursos raros e finitos, com a consequente destruição do meio natural circundante; ou ainda o aumento dos riscos e a abertura de portas desconhecidas, fruto da procura de recursos naturais em locais até há pouco tempo inacessíveis, como os fundos oceânicos.

Já no plano social e económico, vemos a riqueza a concentrar-se num cada vez menor número de mãos, cavando ainda mais fundo o fosso entre os mais ricos e os mais pobres. De acordo com a Oxfam, no ano de 2018 as 26 pessoas mais ricas do planeta detinham tanta riqueza quanto a metade mais pobre da população mundial. Vinte e seis pessoas com a mesma riqueza que quase quatro mil milhões. O pós-crise económica de 2008 resultou também na quase duplicação do número de bilionários, ou seja, os detentores de mais de mil milhões de dólares.

E se é certo que a qualidade de vida de muitos milhões de pessoas melhorou nas últimas décadas, e que se evitaram situações de fomes maciças que foram regra no passado, a distribuição da riqueza foi altamente injusta. Consideremos, por exemplo, os números apresentados no Relatório Global das Desigualdades de 2018, onde se analisa a distribuição de rendimentos pela população global desde 19802. Mesmo vendo melhorias nos seus rendimentos, os 50 por cento mais pobres do planeta beneficiaram menos de metade do aumento da riqueza global quando comparados com o 1 por cento da população mais rica. Em termos concretos, por cada dólar de crescimento da riqueza global, os 50 por cento mais pobres viram a sua riqueza aumentar 12 cêntimos de dólar, enquanto para o 1 por cento mais rico esse aumento foi de 27 cêntimos.

Numa ambiciosa análise empreendida recentemente, três académicos tentam detalhar e perceber as relações entre desigualdades económicas e desigualdades ao nível do consumo energético3. Comparando dados de consumo global disponibilizados pelo Banco Mundial e dados relativos às despesas domésticas disponibilizados pelo Eurostat, este estudo permite concluir que, à medida que uma pessoa enriquece, mais tende a gastar o seu rendimento em transportes (terrestre, marítimo e aéreo, em atividades do dia a dia ou em férias), sendo esta uma das categorias de consumo com uso de energia mais intensivo — energia essa, convém não esquecer, ainda maioritariamente proveniente de combustíveis fósseis. E uma vez que, à medida que as pessoas enriquecem, mais consomem bens com elevada intensidade energética, a desigualdade em termos de consumo energético (e o seu impacto ecológico associado) parece aumentar ainda mais rapidamente do que o fosso de desigualdades de rendimentos.

Estas duas realidades autoalimentam-se e são consequência uma da outra: um sistema económico dependente do crescimento a todo o custo é um sistema assente na produção e no consumo, o que agrava as crises ecológicas. Não apenas produção e consumo dos bens necessários, mas também (e talvez sobretudo) de bens que servem apenas para alimentar este sistema. Ora, esta dependência do crescimento depende da extração de recursos naturais que, sendo limitados e alguns deles não renováveis, fazem com que um sistema económico extrativista e produtivista não seja sustentável a longo prazo. Uma pequena nota, chegados a este ponto: se recuso o crescimento pelo crescimento, recuso também a oposição ao crescimento como um fim em si mesmo, numa espécie de fuga niilista. O importante é perceber onde podemos e devemos crescer e, em paralelo, onde podemos e devemos decrescer.

Cientes deste facto, por que razão continuamos a apostar no crescimento a todo o custo e cego em relação aos seus impactos ecológicos? Embora esta questão seja discutida ao longo do livro, importa aqui referir duas grandes razões que ajudam à compreensão. Por um lado, a chantagem inerente a este sistema que tem como base o seguinte argumento: se a economia não cresce, não poderá gerar empregos e, se não houver empregos, não haverá rendimentos. Não se verificando a separação entre emprego e rendimento, as pessoas veem-se na obrigação de ter um emprego remunerado mesmo que este seja visto pelo trabalhador como inútil para a sociedade, mesmo que seja nocivo para o planeta em termos ecológicos e mesmo que não seja recompensador a todos os outros níveis que não o financeiro.

A segunda razão prende-se com uma visão assente no otimismo tecnológico, segundo a qual a ideia de «progresso» — na qualidade de realidade determinista — é um meio para o ser humano se tornar mestre do meio natural no qual se insere. Longe de ser um exclusivo de quem tem poucas preocupações com a sustentabilidade ecológica do planeta, esta posição é partilhada por vários especialistas do chamado campo verde. De acordo com esta visão ecomodernista, apenas a tecnologia e o progresso poderão recolocar o planeta numa rota de sustentabilidade. Como veremos mais à frente, esta visão é, no mínimo, arriscada.

Chegados a este ponto de insustentabilidade social e ecológica, o que nos espera enquanto espécie e enquanto sociedades? Nos últimos anos têm sido vários os estudos e as análises que assumem como inevitável um colapso civilizacional. A colapsologia, assim se intitula esta linha de investigação, assume que o colapso da civilização industrial não só é inevitável como já está em curso4. Na minha opinião, mantendo o realismo sobre o ponto crítico em que nos encontramos, devemos rejeitar esta visão derrotista. Mas qual deve então ser o caminho alternativo e que soluções podem ser tentadas? Antes de apresentar a solução ecorrepublicana que este livro propõe, discuto brevemente algumas respostas a que se tem recorrido sob a forma de fugas e que não oferecem as respostas necessárias aos enormes desafios que temos pela frente.

“um sistema económico dependente do crescimento a todo o custo é um sistema assente na produção e no consumo, o que agrava as crises ecológicas.

As respostas às crises ecológicas e sociais

Perante esta multiplicidade de crises que nos colocam, no presente, numa situação de insustentabilidade ecológica, assistimos também a uma multiplicidade de respostas, nomeadamente sob a forma de quatro fugas: a fuga das elites, a fuga interna, a fuga pela desculpabilização e a fuga pela culpabilização. Das elites económicas, vemos um processo de fuga em múltiplas frentes: a frente económica propriamente dita, que resulta da concentração da riqueza num pequeno número de mãos, mas também a fuga física. Os pertencentes à elite económica vivem cada vez mais em circuito fechado, frequentando espaços exclusivos e de acesso reservado, enquanto os seus filhos frequentam as mesmas escolas privadas de acesso igualmente restrito.

O espaço público torna-se, assim, um espaço de apenas alguma cidadania, ao passo que, para uma outra parte, este espaço é apenas um local de passagem, sendo a sua cidadania exercida nos espaços que apenas pessoas com o mesmo padrão socioeconómico frequentam. Paralelamente à guetização dos mais pobres, assistimos também a uma guetização das elites, na qual estas se fecham sobre si mesmas, isolando-se económica, social e fisicamente do restante mundo.

É cada vez mais recorrente a concretização prática destas visões distópicas de uma pequena elite que vive bem em tempos de escassez, enquanto a maioria da população luta pelo acesso ao mais básico dos bens. Pensemos, por exemplo, nos cafés e bares que foram criados em países como a China, a Índia ou o Iraque e que vendem ar limpo àqueles que possam pagar por esse «luxo»; isto em países onde a qualidade do ar é má e onde uma boa parte da população não tem os recursos financeiros para suprir as necessidades básicas. Pensemos ainda nos milionários que constroem bunkers de luxo com todos os bens necessários para sobreviver durante alguns meses a catástrofes extremas que assolem os seus países, sejam tornados, fogos florestais ou cheias.

Esta fuga das elites é bem retratada no filme Elysium, cuja ação se desenrola no ano de 2154, numa Terra assolada pela pobreza e pela miséria. No planeta propriamente dito apenas restam os mais pobres — que são o grosso da população humana —, estando os mais poderosos numa estação que orbita o planeta, Elysium, onde nada lhes falta5. Longe de ser uma obra-prima cinematográfica, este filme tem o mérito de realçar ainda outra possível fuga das elites cujos primeiros passos começam a ser dados: a fuga pelo transumanismo, onde aqueles que têm os meios financeiros se equipam com diversas formas de tecnologia para ter melhor qualidade de vida e viver mais. E olhando para as notícias que, em julho de 2021, dão conta de uma egotista corrida ao espaço por parte de alguns dos homens mais ricos do planeta, esta distópica realidade parece começar a ganhar forma.

Mas qual é o problema desta fuga das elites? Ao verificar-se o afastamento das elites dos espaços públicos, dos serviços públicos e do contacto com uma boa parte dos seus concidadãos, quebra-se o princípio da igualdade cívica, pilar de qualquer sistema democrático. Esta questão da igualdade reveste-se de mais importância quando sabemos que são precisamente os mais ricos os que mais facilmente evitarão as consequências das crises ecológicas; ao mesmo tempo, são aqueles que, pelos seus padrões de consumo, mais responsabilidades têm no aprofundar dessas crises.

Há ainda uma estratégia de fuga interna como resposta às crises sociais e ecológicas. Uma fuga diferente, é certo, mas que não deixa de ser uma fuga. Pensemos em todas as publicações recentes de livros de autoajuda, na procura de soluções para todos os problemas a partir de uma suposta cura interna, soluções baseadas num mindfulness que apenas nós, sozinhos, podemos alcançar. Ao nível ecológico surgem também propostas nesse sentido, como as de uma «ecologia do ser» e do «faça a sua parte», como solução definitiva para as crises ecológicas.

Não fazendo qualquer juízo de valor sobre esse tipo de soluções — e sobre os impactos positivos que possam ter em quem as pratica —, o meu ponto é apenas o de oposição a uma individualização das soluções. Os problemas globais e sistémicos não serão resolvidos apenas de forma individual e isolada. Precisamos, pois, de uma proposta abrangente, coletiva e democrática que ofereça possíveis vias no sentido de uma sociedade justa num planeta sustentável.

A fuga pela desculpabilização é, em certa medida, o contraponto da fuga interna e assenta no facto de que eu, enquanto indivíduo, pouco posso fazer para mudar o atual estado do mundo. O princípio desta fuga pode ser dividido em três argumentos. O primeiro é o de que, num mundo de mais de sete mil milhões de pessoas, eu, sozinho, não conto nada. O segundo é o de que a situação ecológica está num ponto tão crítico que, independentemente do que eu fizer, nada mudará. Finalmente, o terceiro argumento é o de considerar que eu, dentro das minhas possibilidades, até poderia agir, mas do outro lado do mundo vão continuar a poluir e, portanto, tudo continuará na mesma.

Todos estes três argumentos servem de desculpa para que se continuem as mesmas práticas e para que nada mude. E mesmo reconhecendo e aceitando que as atividades humanas estão a empurrar o planeta para uma situação cada vez mais insustentável, a fuga pela desculpabilização permite que aqueles que nada fazem evitem a dissonância cognitiva entre saberem o impacto das suas ações e nada fazerem para as corrigir. Ainda assim, como provam exemplos como o de Greta Thunberg, por vezes a ação individual pode ter um papel essencial na obtenção de uma ação coletiva.

Por fim, temos também aquilo a que se pode chamar uma fuga pela culpabilização. Esta fuga consiste em ver na humanidade a raiz de todos os males do planeta. Deste modo, as fomes, as pestes, os acontecimentos climáticos extremos, tudo isso seria consequência da ação humana e dos seus excessos. Como tal, todas as crises ecológicas que enfrentamos corresponderiam apenas ao facto de a natureza seguir o seu curso e corrigir os seus excessos. Como esses excessos seriam fruto da nossa responsabilidade, então temos «culpa» nas crises e merecemos, por isso, ser castigados.

Esta fuga, bastante associada a visões biocentristas ou ecocentristas (quando não anti-humanistas), incorre numa série de problemas. Não sendo aqui o espaço para os detalhar, importa pelo menos referir brevemente alguns deles. Desde logo, e sem entrar na discussão sobre o valor intrínseco de todas as formas de vida, esta visão tende a separar a humanidade da natureza, quando o que nos deveria inquietar é como reforçar o papel da humanidade enquanto parte dessa natureza. Mas, ainda mais grave, esta visão é intrinsecamente racista e classista, uma vez que serão os mais pobres e o Sul global que mais sofrerão as consequências das crises ecológicas, sendo também injusta, pois se apenas uma pequena parte da humanidade tem responsabilidades desmesuradas nos impactos ecológicos, será precisamente essa parte que mais facilidades terá em evitar as suas consequências negativas.

Ora, evitando a (igualmente interessante) discussão sobre o ecocentrismo ou antropocentrismo, parece-me importante ultrapassar essa distinção tão maniqueísta, assumindo o ser humano como aquilo que é: parte e produto da natureza. Como bem resumiu o geógrafo anarquista e precursor do pensamento ecologista Élisée Reclus, «o Homem é a Natureza a ganhar consciência de si própria».

“Paralelamente à guetização dos mais pobres, assistimos também a uma guetização das elites, na qual estas se fecham sobre si mesmas, isolando-se económica, social e fisicamente do restante mundo.”

Uma teoria antiga para tempos novos

Não duvidando do momento crítico que temos pela frente, será a cedência a uma das fugas discutidas nos parágrafos anteriores a solução? Na minha opinião, não. Recolocar o planeta num trilho sustentável, tornar as sociedades menos desiguais e imaginar um futuro melhor exige uma política de esperança. De esperança utópica mas concreta, ambiciosa mas exequível. Esta política exigirá um esforço individual, mas também um esforço coletivo. E a resposta a estes problemas do século xxi pode estar na revisão de uma teoria com mais de 2000 anos: o republicanismo.

Originária da Roma e da Grécia antigas, a teoria política republicana foi tendo várias expressões ao longo dos séculos. Após um período em que parecia ter desaparecido do debate político-filosófico, o republicanismo voltou a despertar interesse nas últimas décadas. Uma possível razão para este renovado interesse é a falta de respostas de outras teorias políticas para alguns dos mais prementes problemas deste início de século XXI, com as já discutidas crises ecológicas e sociais à cabeça.

Central na teoria política republicana é a definição de liberdade como não-dominação. Assumindo a interdependência entre os humanos, o republicanismo está interessado em limitar a dominação — efetiva ou potencial — sob a qual um indivíduo pode estar. Há, é claro, uma maneira fácil de evitar essa dominação e que consiste em viver isolado como um eremita. Esta solução, obviamente, não é realista (nem desejável) num mundo como aquele em que vivemos. Os republicanos têm, então, a missão de definir uma política que promova a liberdade partilhada como não-dominação.

A minha modesta proposta com este livro é avançar a definição de um republicanismo verde, um ecorrepublicanismo que consiste na junção dos elementos em comum da teoria política republicana e da teoria política verde. Este ecorrepublicanismo defenderia, assim, a promoção da liberdade como não-dominação em tempos de crises ecológicas, alargando a ideia da interdependência social à interdependência em relação à natureza. O ecorrepublicanismo revê-se nas origens mais radicais e democráticas da teoria política republicana, que têm muitas vezes sido empurradas para segundo plano, quando não completamente esquecidas pelos historiadores desta corrente política6.

Recolocar o planeta num trilho sustentável, tornar as sociedades menos desiguais e imaginar um futuro melhor exige uma política de esperança

São substanciais os vínculos entre os conceitos republicanos de liberdade, de virtude e de participação cívica e aquilo a que se pode chamar, de forma lata, «ambiente». Portanto, não é de surpreender que, já na Antiguidade, a natureza e os diferentes elementos da ecosfera apareçam associados às questões políticas e sociais. Encontram-se referências à importância de elementos ambientais em alguns dos principais textos clássicos sobre o republicanismo, como no Tratado da República de Cícero. Ao referir-se às condições que permitiram a fundação de Roma, o filósofo e um dos principais pensadores do republicanismo afirma a importância de um ambiente sadio para o crescimento de Roma: «E Rómulo escolheu um lugar abundante em fontes e salubre, embora numa região pestilenta. De facto, há colinas que, ao mesmo tempo que são arejadas, também lançam a sua sombra sobre os vales»7. Mais tarde, em O Príncipe, Maquiavel referir-se-ia a acontecimentos naturais destrutivos para descrever o seu conceito de fortuna.

Há muitas outras referências aos elementos naturais nos textos que nos chegam da Antiguidade8. Consideremos um pequeno extrato do magnífico poema de Vergílio sobre a agricultura, as Geórgicas, a partir do qual seleciono alguns versos que revelam claramente o seu interesse em proteger a ecosfera:

As árvores que se erguem de moto próprio para as regiões da luz
são na verdade infecundas, embora se ergam viçosas e fortes.
De facto, o poder da natureza está oculto no solo. Mas se alguém
as enxertasse ou, transplantando-as, as entregasse a covas feitas,
despiriam o seu estado silvestre, e com um cultivo frequente
adaptar-se-iam sem demorar a quaisquer técnicas que tu quisesses.9

É certo que nem Cícero, Maquiavel ou Vergílio poderiam estar a referir-se aos desafios ambientais como estes são entendidos hoje. Mas fica claro que a capacidade de fundar e manter uma república está ligada ao ambiente natural na qual ela se insere. Isso destaca um elemento de extrema importância ao analisar o republicanismo num momento de emergência ecológica: a interconexão e a interdependência entre humanos, e entre humanos, outros animais e a natureza.

Rever o conceito de liberdade é um dos grandes desafios do ecorrepublicanismo. Para fazer face aos enormes desafios que temos pela frente, é preciso recuperar a liberdade como grande bandeira progressista. Outrora sinónimo exclusivo de emancipação, a ideia de liberdade tem sido conspurcada por uma visão neoliberal que a traduz como não-frustração e não-limitação. Não surpreende, pois, o clipe publicitário da empresa de entrega de comida ao domicílio Deliveroo, cujo título é «Food Freedom», e no qual se vê comida a ser entregue numa série de situações, incluindo durante um tornado, enquanto o locutor afirma: «Encomende o que quiser, onde quiser, quando quiser.» E este cenário não está longe da realidade quando pensamos que até no meio de motins há quem se sinta no direito de exercer a sua liberdade ao encomendar comida10. Neste início da segunda década do século XXI, ser livre é cada vez mais um privilégio de poucos, assente na precariedade de muitos11.

Recuperar a liberdade como ideal progressista é também importante, já que, como argumentarei no capítulo 4, a liberdade, tal como é concebida pelos republicanos, é aquela que está mais bem equipada para justificar a implementação dos necessários limites ecológicos para colocar o planeta numa situação de sustentabilidade. Esta liberdade precisa de estar associada aos ideais republicanos de igualdade e fraternidade, pois apenas a harmoniosa união entre estes três pilares do republicanismo pode servir a visão ecorrepublicana que aqui se apresenta. E este é também um princípio de justiça intergeracional: se é verdade que não poderemos saber o que quererão as gerações futuras, é certo que irão querer um planeta sustentável onde possam exprimir a sua liberdade.

Recorrendo a princípios antigos, o ecorrepublicanismo propõe um novo imaginário, assente na autonomia partilhada dos cidadãos. Só poderemos ter um novo mundo se formos capazes de o imaginar e desejar, e é para esse esforço que espero contribuir. Depois de apresentar os princípios do republicanismo e da teoria política verde que alimentam o ecorrepublicanismo, o livro apresenta uma discussão teórica sobre este conceito. Este não é, no entanto, um livro que pretende apresentar uma teoria de justiça ou uma teoria das instituições ecorrepublicanas12. O meu objetivo é bastante mais modesto: simplesmente, apresentar uma visão ecorrepublicana que poderia alimentar as propostas capazes de fazer frente aos desafios deste século. Uma espécie de sementeira de onde se possam escolher propostas, ideias e discussões que germinem e produzam as políticas de futuro.

Do mesmo modo que no passado não foram as repúblicas que criaram os republicanos, mas sim o contrário, agora terão de ser os ecorrepublicanos a sonhar e a concretizar as ecorrepúblicas. Por isso, o livro apresenta também algumas medidas práticas de um ecorrepublicanismo crítico e conflitual que podem promover as utopias concretas necessárias para um futuro justo e sustentável. Este não é, ainda assim, um livro de receitas, até porque, como veremos mais à frente, o ecorrepublicanismo defende uma abordagem conflitual e participativa na definição do bem comum e dos caminhos a seguir enquanto sociedade.

Mais do que uma revolução, precisamos daquilo a que Edgar Morin chama uma metamorfose, onde se mantenha a radicalidade de criar algo novo, mas ligando essa radicalidade à conservação (da vida, das culturas e dos saberes da humanidade)13. Com esta proposta de ecorrepublicanismo, espero dar um pequeno contributo para que tal metamorfose se torne realidade.


1 – Estas manifestações culminariam num referendo em outubro de 2020, no qual a grande maioria dos chilenos votou a favor de uma revisão da Constituição nacional.
2 – O relatório de 2018, bem como um importante conjunto de dados sobre desigualdades, pode ser encontrado na seguinte ligação: https://wid.world/.
3 – Oswald, Owen e Steinberger, 2020.
4 – Veja-se, a propósito de colapsologia, Servigne e Stevens (2015), ou, em português, Taibo (2019).
5 – Para os apaixonados por ficção científica, tecnologia, ecologia e política, valerá muito a pena ler o livro Four Futures, de Peter Frase (2016). Nesta obra, Frase distingue quatro futuros possíveis, distópicos e utópicos, dependendo da evolução de dois eixos, a saber: um eixo que varia entre escassez e abundância, e outro que varia entre um sistema altamente hierárquico e um sistema igualitário. O filme Elysium é um dos exemplos dados de um sistema altamente hierárquico num mundo de escassez.
6 – Sobre o legado radical do republicanismo, veja-se, entre outros, o trabalho de Gourevitch (2015) e Leipold, Nabulsi e White (eds.) (2020).
7 – Cícero, 2008, p. 132.
8 – Veja-se Voisin (2014) para uma recolha de textos da Grécia e da Roma antigas associados à ecologia e ao ambiente.
9 – Vergílio, 2019, p. 51
10 – Em outubro de 2019, durante as manifestações que tiveram lugar na cidade de Barcelona, ficou conhecida uma fotografia de um entregador de comida ao domicílio em bicicleta, perante uma rua em chamas na qual deveria fazer a sua entrega: https://blogs.publico.es/mierdajobs/2019/10/16/un-rider-te-trae-comida-a-casa-mientras-arde-barcelona-la-foto-que-nos-deberia-hacer-reflexionar.
11 – Pensar a não-dominação é também pensar os riscos de dominação estrutural. Em tempos de precariedade, não se é dominado apenas por um empregador, mas sim por um sistema onde os trabalhadores precários se veem obrigados a aceitar um emprego por piores que sejam as condições de trabalho.
12 – Para uma teoria de justiça republicana assente na necessidade de não-dominação como critério, veja-se Lovett (2010).
13 – Morin, 2012, p. 49.

Autor:
31 Janeiro, 2022

Jorge Pinto é formado em Engenharia do Ambiente (FEUP, 2010) e doutor em Filosofia Social e Política (Universidade do Minho, 2020). A nível académico, é co-autor do livro Rendimento Básico Incondicional: Uma Defesa da Liberdade (Edições 70, 2019) e venceu o Prémio Ensaio de Filosofia 2019 da Sociedade Portuguesa de Filosofia. É co-autor das bandas desenhadas Amadeo (Saída de Emergência, 2018; Plano Nacional de Leitura), Liberdade Incondicional 2049 (Green European Journal, 2019) e Tempo (no prelo). Escreveu ainda o livro Tamem Digo (no prelo). Em 2014, foi um dos co-fundadores do partido LIVRE, tendo integrado a sua direcção de 2014 a 2020.

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