Independentemente do que vier depois, a situação pandémica mostrou‐nos como pode a vida ser reduzida quando chega a crise e o sujeito da mercadoria se desmorona. Por um lado, a existência individual fica restringida ao seu aspecto puramente biológico, passível de ser submetido pelo Estado a todo o tipo de controlo, incluindo os mais intrusivos, tudo em nome da saúde pública. Por outro, a vida social é esvaziada, empurrada para a mediação pela imagem, separada do seu mundo físico e deportada para os ecrãs – pelo menos, no caso das pessoas cujas actividades podem ser executadas por trabalho remoto, ou por aquilo que em vários países foi convenientemente denominado «teletrabalho». O que resta é uma vida encurralada entre as tecnologias espectaculares da vigilância e as tecnologias espectaculares do consumo. Os países do Ocidente, outrora pioneiros das tecnologias de entretenimento, podem agora seguir o exemplo dos países orientais, que em matéria de vigilância parecem ser excelentes.
A ideia defendida por Gianfranco Sanguinetti de um despotismo ocidental que surge em analogia e em oposição ao despotismo oriental, e que precisa de dar provas da sua eficácia no «mesmo terreno»1, encontra pelo menos aqui um sentido concreto. A China criou um horripilante sistema de vigilância que está a ser desenvolvido a toque de caixa. Não se passa uma semana sem que os jornais ocidentais anunciem, com um misto de maravilhamento e espanto, a invenção de um novo dispositivo de controlo neste país que já possui o maior sistema de câmaras de reconhecimento facial do mundo, tendo começado há pouco tempo a usá‐las nas escolas com o objectivo de avaliar as reacções dos alunos. Para aqueles que tentam escapar à leitura facial, foram criados pelos chineses outros sistemas de reconhecimento, como o que identifica as pessoas pela forma de andar2. Finalmente, a China começou a testar um sistema de crédito social que atribui pontos aos cidadãos a partir de dados de Big Data.3 Os hábitos quotidianos que as redes permitem registar – por exemplo, o que lemos e escrevemos na Internet – são utilizados para classificar as pessoas numa hierarquia social. Depois da eclosão da epidemia, estes sistemas de controlo baseados no Big Data e na vigilância da vida privada foram postos ao serviço do combate ao coronavírus. O mesmo sistema foi utilizado na Coreia do Sul, uma sociedade militarizada onde a importância da tecnologia para o controlo da população é análoga à que se verifica na China. No Ocidente, vozes erguem‐se para louvar a eficácia de tais dispositivos testados por países do Oriente: lá, o controlo da epidemia terá sido mais bem‐sucedido, por vezes até mesmo sem medidas de restrição da economia, como ocorreu, especialmente, na Coreia do Sul.
A suposta eficácia no controlo da epidemia servirá talvez de argumento para a importação de técnicas e políticas de vigilância das populações, já correntes na China e na Coreia do Sul,5 as quais ainda podem parecer inaceitáveis ou são contestadas em países onde subsiste um resíduo de ideologia democrática – mas que poderão deixar de ser problemáticas devido à segurança sanitária. A tecnologia de controlo será talvez a grande artilharia da China, que poderá atirar por terra os resíduos de liberdades individuais existentes no Ocidente. Desde há muito, o progresso digital e das tecnologias móveis serve para criar uma imensa máquina de produção e gestão de dados pessoais nos países do capitalismo avançado, construindo um conjunto de informações sobre os indivíduos que transcende as ambições mais mira‐bolantes dos Estados totalitários do século xx. Entretanto, a dimensão do controlo continua escondida por baixo de outras formas de legitimação, mais adequadas às «democracias liberais»; pelo «consentimento» e pela «anonimização dos dados», aparentes salvaguardas das liberdades, os indivíduos entram «de bom grado» na sociedade do controlo. É importante notar, todavia, que a ideologia liberal ainda serviu para impor alguns limites ao uso desses dados pelo Estado, ao mesmo tempo que este último pôde por vezes impor certos limites ao seu uso pelas empresas. Em nome da saúde pública, os limites serão flexibilizados em ambos os sentidos, favorecendo um uso indiscriminado desses dados. Este processo, em curso antes da crise, está em aceleração rápida no contexto actual. Já ninguém se surpreende ao ler artigos que utilizam dados privados em nome da informação, como os reconfortantes gráficos animados que seguem os percursos da circulação do vírus, graças aos dados de telemóveis dos indivíduos infectados. O descarregamento de aplicações de tracking com o intuito de rastrear as cadeias de contaminação é já um procedimento utilizado em inúmeros países e estudado em todo o mundo. A fronteira entre liberdade individual e a obrigação legal é muito variável, sendo óbvio que uma tal aplicação só é eficaz a partir do momento em que 60% da população a utiliza. Se, por um lado, um dirigente europeu afirma que na União Europeia está «fora de questão» pensar em medidas de rastreio coercitivas por telefone,6 temos notícia, por exemplo, de que a Polónia impôs dispositivos de geolocalização às pessoas infectadas ou em risco, brindando os contraventores com uma visita da polícia ao domicílio. Muito intransigente quanto às liberdades públicas, a Alemanha criou, no contexto da luta contra a covid‐19, um dispositivo que associa voluntariamente um bracelete fitness e uma aplicação a descarregar no smartphone. Um tal desprezo pela vida privada choca cada vez menos. Afinal, o que vemos é o deslocamento do vírus, e não os passos de pessoas reais – porque essas pessoas já foram reduzidas a meros portadores de um micro‐organismo perigoso. Tornados invisíveis aos olhos dos espectadores, estes simples «portadores de vírus» podem vir a ser tratados de modo consequente por futuras políticas de Estado. Não haverá muita preocupação quanto ao seu destino.
Tradução João Gaspar, Pedro Henrique Resende, Pedro Pereira Barroso, Rachel Pach e Robson J. F. de Oliveira;
Prefácio à edição portuguesa Anselm Jappe; Tradução do prefácio Diogo Madre Deus; Adaptação Júlio Henriques; Ilustração da capa Gonçalo Duarte