O debate sobre o nuclear é fraturante. Após o sucesso da série televisiva Chernobyl e as notícias sobre Fukushima, é natural que a opinião média tenda a declarar-se anti-nuclear. O que espero com este artigo é conseguir desmistificar algumas noções para enquadrar o papel da energia nuclear na luta contra as alterações climáticas. Neste texto, o termo “nuclear” será aplicado à produção de eletricidade através de centrais nucleares civis, e nunca será considerada a opção nuclear para fins militares, à qual me oponho veementemente. Chernobyl e Fukushima são sem dúvida os dois maiores acidentes nucleares da nossa história. A escala INES (International Nuclear Event Scale), foi “introduzida em 1990 para classificar preocupações de segurança relativas a centrais nucleares”. De acordo com esta escala, é importante distinguir “acidente” de “incidente”. Um incidente é um evento que pode suscitar algumas preocupações de segurança, mas sem impactos de maior. Um “acidente” é um acontecimento com algum impacto em pessoas e no ambiente. As centrais de Vandellós e Ascó em Espanha, por exemplo, registaram incidentes merecedores de atenção, mas nunca acidentes. Almaraz, que viu a sua licença de exploração estendida até 2027, registou até hoje “anomalias”, uma classificação para eventos que nem atingem uma gravidade suficiente para serem classificados de “incidente”. Convém salientar que num relatório sobre testes de stress às centrais nucleares Espanholas, Almaraz aparece como uma central que precisa de renovar algum equipamento, mas não equipamento classificado como fundamental. A indústria nuclear é uma das mais estritamente regulamentadas a nível mundial, especialmente no pós-Fukushima. Do relatório de stress às centrais nucleares Espanholas resultou que há equipamentos que precisam de ser modernizado, mas que estas continuam aptas para continuar em operação.
Os fantasmas da história
Chernobyl, na atual Ucrânia, e Fukushima, no Japão, são marcos incontornáveis da história da humanidade. Como tal seria fácil assumir que a Ucrânia e o Japão, palcos dos maiores acidentes nucleares de sempre, fossem países onde o nuclear não existisse. No entanto, são ambos países que continuam a apresentar um forte investimento na energia nuclear. Várias centrais nucleares Nipónicas viram a sua licença de operação estendida, por 20 anos em alguns casos, em linha com os oito anos adicionais de Almaraz. Às antigas centrais que voltaram a estar ligadas à rede e às que agora operam, o Japão planeia estender a sua frota nuclear com um plano ambicioso onde inclui várias centrais de última geração. Contudo, nenhuma central com o princípio de funcionamento de Fukushima opera hoje em solo Japonês. Todas as atuais centrais são novas, mais robustas, e com protocolos de segurança mais evoluídos.
Fukushima era não uma, mas duas centrais nucleares distintas com vários reatores, Daiichi e Daini. Daiichi é a central que ficou na lenda após ter sofrido um terremoto de grau 9.0 na escala de Richter e um consequente Tsunami. Daini era uma central gémea de Daiichi, 10km a sul. Cinco dias após a combinação “terremoto mais tsunami”, Daini conseguiu ver todos os seus reactores no estado de cold shutdown com sucesso. Um reator em cold shutdown consegue ser refrigerado o suficiente para que sistemas activos de refrigeração possam ser desligados, i.e., não serão necessário métodos exteriores ao reactor para que este cesse a larga maioria dos seus processos nucleares. Para além de Daini, outras centrais na costa oeste do Japão conseguiram ser postas em cold shutdown também com sucesso, evitando um acidente como Daiichi. Em relação à radiação libertada por Daiichi, verifica-se agora que não causou danos à população. Após o acidente de 2011, Sunichi Yamashita, um dos maiores peritos em radioactividade do mundo, fazia a previsão que a radiação libertada teria um impacto mínimo na população. Foi vilificado por muitos, mas à medida que estudos adicionais sobre Fukushima vão passando pelo crivo científico, Yamashita tem sido vindicado. Outras notícias recentes acerca de Daiichi são acerca da água tratada, que o Japão planeia descarregar no mar em 2022. Vários peritos afirmam que a água processada não é perigosa. Embora o plano encontre cépticos em países vizinhos como Coreia do Sul e Taiwan, mesmo organizações ambientalistas têm recuado no criticismo aos planos para a água processada. A Tepco, a companhia que operava Daiichi, está atualmente a diluir progressivamente a água utilizada no tratamento da central nuclear para que esta contenha níveis de radioatividade abaixo do nível de background ao qual os seres vivos estão habituados.
Encaremos agora o outro fantasma, Chernobyl. É inegável que tenha sido uma catástrofe. Para aqueles que viram a série televisiva, e mesmo descontando algum maniqueísmo narrativo, esta deveria ser uma história não acerca do quão perigoso o nuclear é, mas acerca de quanto estrago a Humanidade poderá fazer se não tiver respeito algum pela segurança do seu semelhante. O infame reator RBMK de Chernobyl tinha um desenho onde todos os custos foram cortados. As centrais soviéticas não possuíam um escudo biológico, uma grande camada protetora de cimento desenhada para albergar o reator (edifício de contenção). Todos (ou quase todos) os procedimentos de segurança foram ignorados, o que causou o meltdown (o reator fundir, à volta do combustível). Além disso, os RBMK estavam desenhados para produzir Plutónio para armas nucleares, não estando propriamente destinados para finalidades civis. Pior que o seu design e as normas de operação que estavam em vigor em 1986, foi a gestão dos eventos do pós-meltdown por parte da União Soviética. Pripyat, onde o reator se encontrava, não foi evacuada imediatamente e informações contraditórias por parte das autoridades soviéticas terão causado enormes danos na população civil.
Responder a um acidente nuclear em Chernobyl era uma situação inédita. Mesmo em Fukushima, já com a experiência passada, um painel parlamentar Nipónico apurou que a resposta ao acidente deixou muito a desejar. A TEPCO e as autoridades japonesas não conseguiram evitar o pânico geral. No entanto, apenas uma fatalidade por exposição direta a radiação foi atribuída em Daiichi, a um técnico da central. Outros dois técnicos sofreram queimaduras graves devido a exposição. As fatalidades não relacionadas com os desastres naturais (terramoto e tsunami) ocorreram no pânico geral que se instalou logo após o alerta de problemas com Daiichi. Já Chernobyl ainda divide os peritos acerca de fatalidades. Um relatório oficial das Nações Unidas afirma que apenas 31 fatalidades podem ser diretamente associadas ao desastre. No mesmo artigo, o número de mortes indirectas por exposição a radiação durante a resolução do acidente ascende a 4000. Dependendo da fonte, o total de pessoas que faleceram pode ir até 60000, mas este número é alvo de dúvidas, inclusive pelos próprios autores do estudo, que assumem que é complicado fazer uma estimativa consensual. Qualquer número empalidece com o número de pessoas cuja saúde mental foi afetada. A taxa de suicídios dos Liquidadores de Chernobyl (os que lidaram com as consequências da explosão do reator 4) é bastante acima da média. Acima de tudo, Chernobyl aparenta ter causado um enorme problema de saúde mental. Mesmo assim, hoje em dia, metade da eletricidade da Ucrânia é produzida por centrais nucleares e o país está a investir em novos reatores. No entanto, as fatalidades causadas por ambos os acidentes e pelo nuclear no geral são uma gota no oceano quando comparado com as fatalidades causadas por combustíveis fósseis. Para colocar a quantidade de fatalidades em perspectiva, o CDC estimou que 69 trabalhadores faleceram em projetos de extração de crude e gás natural apenas em 2017. Profissionais treinados. O pior acidente em plataformas offshore, Piper Alpha, causou a morte a mais de 160 trabalhadores. Segundo dados oficiais, o nuclear tem uma taxa de fatalidades comparável ao solar, ao eólico, e à energia hídrica. O carvão é a fonte de energia com a maior taxa de fatalidades por quantidade de energia produzida: 1230 fatalidades por cada fatalidade causada por energia solar. Este último número inclui mortes causadas por poluição.
Nenhuma fonte de energia está livre de ter acidentes. Nada é completamente seguro. Qualquer método de produção de eletricidade pode causar grandes pressões ambientais ou sociais.
Em 2021 nos Estados Unidos, um incêndio deflagrou numa fábrica que produz lubrificantes para turbinas eólicas. Para combater as chamas, os bombeiros utilizaram “forever chemicals” (químicos eternos ou PFAS: Per- And Polyfluoroalkyl Substances). Estes produtos químicos não são quebrados em nenhum processo no meio-ambiente e podem acumular-se em seres humanos. Ao longo da cadeia de utilização e produção, nem as tecnologias mais limpas escapam a terem desvantagens consideráveis. As hélices das turbinas eólicas são extremamente difíceis de reciclar. As soluções para reciclar hélices são recentes e ainda deixam muito a desejar. O procedimento normal de processamento de hélices em fim de vida é depositá-las em cemitérios de hélices, onde se acumulam. Outro incêndio de 2021 que produziu imagens espetaculares ocorreu quando um gasoduto submarino colapsou no golfo do México. A indústria dos combustíveis fósseis habituou-nos a imagens impressionantes nas várias catástrofes ambientais que causou. Os processos de limpeza são dispendiosos. Algumas estimativas colocam a limpeza do Deepwater Horizon em 55 mil milhões de euros. Há no entanto um número de acidentes da indústria de combustíveis fósseis que passam despercebidos à atenção pública. Por exemplo, de acordo com a Bloomberg, uma recente fuga de metano da Gazprom na Rússia emitiu o equivalente em dióxido de carbono a 40000 automóveis ligados continuamente durante o período de um ano.
O papel do nuclear na transição energética
Descarbonizar a sociedade é extremamente complicado. Infelizmente, os combustíveis fósseis são extremamente convenientes. São práticos de utilizar e o nível de tecnologia necessário para os utilizar é baixo (e é tecnologia bem estabelecida). Depois existe todo o aspecto económico. Mesmo com taxas de carbono, os combustíveis fósseis têm continuado a ser um negócio atrativo. Em 2019, a Exxonmobil garantiu lucros de mais de 200 mil milhões de euros. Mas parece que o panorama está a mudar nos mercados no verão de 2021. Devido ao aumento da procura de gás natural, que veio substituir o carvão e reforçar as renováveis quando estas falham, a especulação ditou a explosão do preço do próprio gás natural. A Europa, aliás, prepara-se para receber um autêntico choque energético, com a eletricidade a atingir preços recorde dia após dia. Tudo porque é necessário atingir um valor mínimo de eletricidade para consumo na rede, a chamada carga de base (baseload).
A deflação de preços da eletricidade solar está a matar posteriores investimentos na área. O problema torna-se então num de armazenamento e não de geração.
A carga de base é a capacidade de garantir um nível mínimo e estável de eletricidade disponível para consumo. O vento poderá não soprar em dias mais quentes de verão e o sol não brilha de noite. A eletricidade produzida pelo solar atingiu os valores mais baixos da história. Enquanto o aumento dos preços do gás natural gera a confusão nos mercados de energia da Europa, e em especial no mercado Ibérico, o MIBEL, o baixo valor do solar cria situações interessantes no mercado de eletricidade da Califórnia. A eletricidade produzida por painéis solares instalados em áreas próximas e conectados na mesma rede regional viu o seu preço de venda ficar negativo. Isto é, mini e micro produtores de eletricidade solar têm que pagar à empresa que gere a rede elétrica para absorver alguma da eletricidade que produzem. A deflação de preços da eletricidade solar está a matar posteriores investimentos na área. O problema torna-se então num de armazenamento e não de geração. Torna-se necessário um extra a jusante da geração de eletricidade solar. Soluções como a de fazer com que a energia produzida em excesso encha reservatórios de água não é prática: o solar requer áreas planas para produção, incompatível com barragens nas proximidades. Com o agravar das alterações climáticas, as zonas de produção de solar estarão também mais sensíveis a secas, diminuindo as capacidades hídricas locais. Uma solução promissora será a compressão de ar, em desenvolvimento na China. Alternativas desejadas pela indústria envolvem a produção de hidrogénio e de amónia. Aqui o ponteiro do mercado na balança comercial move-se para o lado oposto. O preço da solução “solar mais armazenamento” torna-se pouco atrativo para investidores, pois o investimento inicial aumenta consideravelmente e o retorno não é garantido devido à baixa eficiência das soluções a jusante do solar. Vários analistas defendem que o mercado não é capaz de resolver as alterações climáticas.
A França é a campeã incontestada da produção de energia nuclear na Europa. As emissões de CO2 da França são entre 5 a 10 vezes inferiores aos maiores emissores Europeus: Polónia e Alemanha.
Garantir carga de base é uma prioridade. Mas são atingidas por diferentes países de formas diferentes. Ao consultar o site Electricity Map é possível obter uma imagem mais clara do consumo e da produção de eletricidade Europeia. A Noruega, Suécia, Áustria, Finlândia, e França aparecerão normalmente a verde, o que significa uma produção de CO2 inferior a 100g por cada kWh de eletricidade produzido. Os primeiros três países desfrutam de impressionantes recursos hídricos. A Finlândia possui um mix interessante de energia hídrica e energia nuclear. A França é a campeã incontestada da produção de energia nuclear na Europa. As emissões de CO2 da França são entre 5 a 10 vezes inferiores aos maiores emissores Europeus: Polónia e Alemanha. Após a crise petrolífera de 1973, a França põe em ação o plano Messmer. A França, pobre em recursos naturais no que toca a combustíveis fósseis, leva adiante um plano ambicioso para cortar a sua dependência de crude estrangeiro. O plano, chamado assim devido ao Primeiro Ministro da época que o implementou, Pierre Messmer, viu a França construir 56 reatores em 15 anos, com um tempo médio de construção por reator de aproximadamente 8 anos. Quem diz que o nuclear é caro de certeza que desconhece que o plano Messmer conseguiu descarbonizar quase totalmente a França em apenas 10 anos. Hoje o contribuinte Francês paga dois terços por kWh em relação ao seu vizinho Alemão, emitindo consideravelmente menos CO2.
Por estranho que pareça, mesmo os combustíveis fósseis ainda desfrutam de subsídios estatais em várias partes do mundo.
Outro argumento contra o nuclear é o seu custo elevado. Aproximadamente dois terços do preço total de uma central nuclear advém das suas Capital Expenditures (CAPEX: custos iniciais de construção, de manutenção, upgrade, e de processamento de resíduos). Por outro lado, o Operational Expenditures (OPEX: custos operacionais) são baixos, podendo descer até 15% do capital total de uma central. Embora cara, uma central nuclear é parca na utilização de recursos. O nuclear precisa de ocupar 50 vezes menos área para produzir a mesma energia que uma quinta solar (com os seus requisitos de áreas extensas e planas). Quintas eólicas e instalações hidroelétricas também requerem áreas afetas consideráveis. A quantidade de materiais para construir uma central nuclear é também bastante menor que as suas congéneres de baixo carbono. As centrais nucleares necessitam também de menos materiais por MWh que outros métodos de produção de eletricidade e possuem tempos de vida úteis mais longos. Mesmo sendo largamente vistas como algo positivo, as centrais solares são vistas como algo que afasta os turistas e certas populações mostram-se cépticas a novas instalações. Mesmo com todos os custos elevados, a energia nuclear parece continuar a ser economicamente viável, ao contrário do eólico, como estudos recentes sugerem. O solar e o eólico disfrutam de subsídios que podem disromper preços de eletricidade a curto prazo. Por estranho que pareça, mesmo os combustíveis fósseis ainda desfrutam de subsídios estatais em várias partes do mundo.
Atualmente, a China copia o plano Messmer da França. Uma maneira de diminuir os custos é a estandardização das centrais. Construindo não uma apenas, mas uma frota de centrais, o custo das centrais construídas adicionalmente esbate-se rapidamente. A produção em massa de centrais tem retornos consideráveis. A limitação na China atualmente é na formação de pessoal capaz de operar centrais e na obtenção de combustível em quantidade suficiente. A Rússia, um dos grandes produtores de combustível nuclear a nível mundial, revelou planos para uma nova frota que pretende construir até 2045. Se o nuclear é caro e impraticável, porque razão exporta a EDF eletricidade para toda a Europa, incluindo Portugal e Alemanha? Porque razão essa eletricidade exportada é contabilizada posteriormente nas emissões de países importadores como eletricidade de baixo carbono? Se é dispendioso, como é possível que a EDF, mesmo em tempo de pandemia, seja extremamente lucrativa todos os anos? Devido aos seus longos tempos de vida, as centrais nucleares francesas construídas nos anos 70 tiveram, até à data, um retorno considerável, especialmente nesta era de exportação de eletricidade para países vizinhos. Mesmo sendo uma fonte de emprego bem-recebida pelas populações locais, há uma pressão considerável para que a EDF reduza a sua depedência do produção de eletricidade a partir de energia nuclear, o que irá acontecer. Em parte devido a alterações climáticas — os reactores necessitam de água para o seu arrefecimento que começa a escassear nas suas redondezas —, mas principalmente por pressão de grupos ambientalistas, devido a receios com a idade das centrais.
Uma outra pergunta normal é “E os perigosos resíduos?”. A resposta é que há décadas que se sabe o que fazer aos resíduos, e todos os anos surgem novas soluções. A densidade energética de um combustível nuclear como o Urânio, por exemplo, é um milhão de vezes superior à densidade energética de um combustível fóssil. Um kg de Urânio contém a mesma energia que 2.7 milhões de kg de carvão. Os resíduos da operação de uma central nuclear são pequenos comparativamente aos de uma central a carvão ou gás natural. Uma central a carvão, para além de gases perigosos como sulfitos, óxido nítrico, entre outros, liberta 1kg de CO2 por kWh de eletricidade produzida. Em 2019 apenas, a Alemanha libertou 219 milhões de toneladas de carbono para a atmosfera a partir das suas centrais de carvão. A este número terá que se adicionar a biomassa, lignite, e gás natural. O consumo de energia, equivalente em carvão, de vários países, mostra que cada cidadão necessitaria de aproximadamente um kilo de Urânio para satisfazer o seu consumo de eletricidade durante o espaço de um ano.
Em termos de processamento, o nuclear tem outra vantagem para além das suas baixas necessidades de combustível. Apenas 10% do total de resíduos nucleares são verdadeiramente perigosos do ponto de vista biológico. Aproximadamente 90% dos resíduos nucleares podem ser enclausurados em contentores metálicos ou de cimento e colocados em armazéns. O que supera o atual método dos combustíveis fósseis de descargas para águas fluviais ou até para a atmosfera. Os restantes 10% requerem soluções mais avançadas de armazenamento, mas há soluções perfeitamente seguras. Novos métodos conseguirão produzir energia adicional de combustível já gasto. É um mito que não saibamos nem tenhamos alternativas para o processamento de resíduos nucleares. Além disso, o tratamento e armazenamento de resíduos nucleares está já incluído nos custos iniciais da construção de uma central. Ironicamente, as centrais a carvão libertam mais radioatividade para a atmosfera que centrais nucleares. O carvão possui quantidades ínfimas de urânio e tório. Mas devido à quantidade de carvão que se queima, as cinzas de carvão são mais radioativas que resíduos nucleares.
Portugal tem a vantagem de ter a sua costa atlântica, que lhe dá uma riqueza eólica considerável. Tem também um bom índice de irradiação solar, com 1kW por metro quadrado de irradiação. No entanto, outros países do centro Europeu não têm esse luxo. A Polónia, a República Checa, e a Bósnia, muito dependentes do carvão, chegam a emitir 30 vezes mais carbono do que a França.
Consoante o dia, Portugal poderá importar até 25% da sua eletricidade de Espanha, segundo o Electricity Map. Nos dias quentes de verão, sem vento, a nossa capacidade eólica diminui. A eficiência dos painéis solares fotovoltaicos também decresce. Portugal fica dependente de gás natural, vendo-se assim incapaz de cumprir limites de emissões. Se o nuclear tem lugar ou não em Portugal é uma questão que já foi explorada no passado. Por questões sísmicas, o local ideal para um central nuclear seria em Trás-os-Montes. Os argumentos do perigo e dos resíduos polarizaram a opinião pública, que rapidamente rejeitou a hipótese da construção. Em 2005 a discussão chegou a atingir um ponto interessante, mas desta resultaram apenas alguns rumores da construção duma central em Mogadouro. Portugal tem a vantagem de ter a sua costa atlântica, que lhe dá uma riqueza eólica considerável. Tem também um bom índice de irradiação solar, com 1kW por metro quadrado de irradiação. No entanto, outros países do centro Europeu não têm esse luxo. A Polónia, a República Checa, e a Bósnia, muito dependentes do carvão, chegam a emitir 30 vezes mais carbono do que a França. Para combater as alterações climáticas, é necessário concertação transfronteiriça. Uma solução que não sirva para nós não pode ser negada ao nosso vizinho, não podemos ser umbiguistas.
Uma transição necessariamente global
Umbiguismo esse que tem sido apanágio da política energética Alemã, a Energiewende. Após Fukushima, o governo de Merkel decide retirar o nuclear da equação energética alemã. Uma decisão populista na perspectiva de alguns, aproveitando o escalar do sentimento anti-nuclear Alemão (talvez inspirado também pelo sucesso de Dark). A Alemanha comprometeu-se no pós-Fukushima a descarbonizar a sua economia e investir em energias renováveis. No entanto, para assegurar o baseload de eletricidade que as renováveis não são capazes de garantir, a Alemanha irá investir em centrais de gás natural para cobrir a diferença.
Ironicamente, com os enormes investimentos que a Alemanha tem feito em renováveis, cada vez mais será difícil garantir o chamado “decoupling eco-económico” ou a desconexão entre a economia de um país e as suas fontes de pressões ambientais. A vizinha Bélgica prepara-se para seguir nas pegadas alemãs e tirar as suas centrais nucleares de comissão, substituindo-as por gás natural. O resultado final destas apostas mal executadas em renováveis arrisca-se a ser o aumento de emissões, que poderá ter um valor recorde em 2023 e continuar a subir posteriormente. É historicamente reconhecido que o lobby dos combustíveis fósseis é poderoso e tem desde os anos 70 tentado mudar a narrativa. Estes grupos têm influenciado decisões fulcrais acerca da descarbonização ao longo da história. Inadvertidamente ou não, as entidades ambientalistas parece que perderam a narrativa e têm sido grandes aliados dos lobbies pró-combustíveis fósseis. Recentemente, a GreenPeace alemã introduziu dois produtos que comercializa: proWindgas e a sua alternativa vegan, proWindgas vegan. Após análise, estes dois produtos não são mais do que gás natural com quantidades ínfimas de Hidrogénio (H2) misturado, para poderem afirmar que é uma solução à base de H2, ecológica.
Pior ainda, numa altura em que apregoa que o mundo deve descarbonizar, a Alemanha negoceia com Estados Unidos e Rússia a ambiciosa Nordstream 2, uma nova conduta de gás natural entre a Rússia e a Alemanha.
A insistência ideológica do “renovável a qualquer custo” ameaça também a independência energética de países menos desenvolvidos devido à pressão alemã. A Alemanha ofereceu turbinas eólicas ao Kenya, para que este saísse da sua pobreza energética. O parque eólico foi colocado numa zona que ameaça a vida selvagem do local. Os combustíveis fósseis permitiram ao Norte industrializar-se e desenvolver-se. É injusto e revela um certo reflexo neo-colonialista que o Sul não tenha as mesmas hipóteses de sair da pobreza energética. Não é justo pedir ao sul que continue pobre para conseguirmos salvar o mundo. Ainda no mesmo artigo que critica a oferta alemã ao Kenya, o autor, Michael Shellenberger, conclui dizendo que é incompreensível como uma sociedade avançada possa pensar que conseguirá ser energeticamente rica dependendo apenas de renováveis. Convém acrescentar neste ponto que Shellenberger não é cientista e já produziu artigos que tiveram um forte contraditório da comunidade científica, por exemplo quando afirmou que há menos incêndios florestais devido a alterações climáticas. A afirmação é verdade, o número de incêndio diminuiu, a evidência mostra que cada um está cada vez mais devastador, contribuindo para cada vez mais áreas ardidas. Uma boa analogia é a introdução de capacetes metálicos nas batalhas de trincheiras na primeira grande guerra: o número de soldados com ferimentos na cabeça aumentou repentinamente… mas o número de mortos diminuiu de igual maneira. Ainda assim, a comunidade científica parece corroborar Shellenberger em pelo menos um ponto: enquanto que o plano Messmer contribuiu fortemente para descarbonizar a França, a Energiewende não demonstra bons resultados. Já segundo a ativista Zion Lights, a pobreza e a desigualdade são assuntos ambientais. O caminho para a descarbonização tem uma enorme componente social que não pode ser ignorada. De notar que Zion chegou a ser porta-voz do grupo ambientalista Extinction Rebellion, mas hoje já não se encontra associada ao movimento. Zion, alguém que os conhece por dentro, afirma que os grupos ecologistas tradicionais estão apenas a piorar a situação. Atualmente Zion gere uma organização pró-nuclear, Emergency Reactor, onde o ponto principal é que se inicie uma conversa séria acerca do papel da energia nuclear.
A China e a Rússia, inclusive, vendem reatores nucleares a países subdesenvolvidos para efetivamente libertar esses países da pobreza energética, vendo desta forma reforçada a sua influência mundial, em regiões geo-estrategicamente importantes.
O nível de fanatismo anti-nuclear alemão chegou ao extremo de ameaçar a soberania dos Países Baixos. Olaf Lies, governador do estado da Baixa-Saxónia, afirmou que “faria tudo no seu poder para impedir uma nova alvorada nuclear nos Países Baixos”. Estas afirmações devem-se aos Países Baixos contemplarem um “plano Messmer” próprio, onde se estima que construam até 10 novas centrais nucleares. A Alemanha insiste em retirar de funcionamento as suas centrais nucleares de funcionamento e pressiona os seus vizinhos, com a sua inegável influência intra-europeia. As notícias que nos chegam sobre o desmantelamento de centrais nucleares é, em minha opinião, uma característica da bolha europeia em que vivemos. Consultando o mapa mundial de desmantelamento de centrais nucleares, vemos que o desmantelamento é uma particularidade europeia. Em todo o mundo se constroem novas centrais ou se estende o seu funcionamento. A China e a Rússia, inclusive, vendem reatores nucleares a países subdesenvolvidos para efetivamente libertar esses países da pobreza energética, vendo desta forma reforçada a sua influência mundial, em regiões geo-estrategicamente importantes. A Rússia inclusive, constrói centrais nucleares flutuantes, para “auxiliar os seus aliados”. Enquanto isso, a Europa dorme e embarca em planos condenados a fracassar, ao arrasto da Alemanha. O preço da eletricidade Europeu poderá aumentar em comparação com outros países e a Europa arrisca-se a perder competitividade económica. A China tem um ambicioso plano energético a longo prazo, a Europa não consegue planear para além do próximo ciclo eleitoral. Que quem leia isto não pense que sou defensor acérrimo da China. Considero-a um regime totalitário. A crítica é feita à Europa, que vagueia sem uma plano de descarbonização coerente. A própria Angela Merkel reconhece que os esforços alemães são insuficientes. Pior ainda, numa altura em que apregoa que o mundo deve descarbonizar, a Alemanha negoceia com Estados Unidos e Rússia a ambiciosa Nordstream 2, uma nova conduta de gás natural entre a Rússia e a Alemanha. Enquanto que a Alemanha renova e aumenta o seu consumo de gás natural, força os governos de Kiev e Varsóvia a perder o acesso ao mesmo gás natural Russo, como parte do acordo. Em contrapartida, o governo Alemão financiará iniciativas “verdes” na Polônia e Ucrânia. Não satisfeita com o Kenya, a Alemanha estende as suas intenções pouco sensatas à própria Europa. O negacionismo nuclear Alemão arrisca-se a desestabilizar toda a Europa e entregar demasiado poder a Moscovo, num acordo que todos excepto Berlim vêem com maus olhos.
A cultura popular habituou-nos de algum modo a encarar o nuclear com desconfiança, veja-se o exemplo de Homer Simpson. Há mais de 30 anos que Homer Simpson entra pelos nossos ecrãs como um inapto técnico de segurança de uma central nuclear gerida por uma personagem sombria e corrupta.
Estamos numa era de pandemia em que a mensagem do dia é “oiçam os peritos, escutem os profissionais de saúde”. O nuclear precisa de um momento destes. Um estudo Japonês de 2016 mostra que a opinião pública desconfia ou tem grandes reservas acerca da energia nuclear. A cultura popular habituou-nos de algum modo a encarar o nuclear com desconfiança, veja-se o exemplo de Homer Simpson. Há mais de 30 anos que Homer Simpson entra pelos nossos ecrãs como um inapto técnico de segurança de uma central nuclear gerida por uma personagem sombria e corrupta. Quem ler “barris amarelos” automaticamente pensa em perigosos resíduos radioactivos. Diametralmente oposta à opinião pública, encontra-se a posição do Joint Research Centre (JRC) da Comissão Europeia. O JRC é um painel independente de cientistas que analisa tópicos complexos como a descarbonização, para melhor aconselhar a Comissão Europeia. Um relatório recente do JRC conclui que o nuclear é seguro e que deve ser incluído na taxonomia energética europeia. Os danos causados pelo nuclear (relembremo-nos que qualquer forma de produção de energia tem o seu senão) são comparáveis aos danos causados pela energia hídrica e pelas renováveis. A pergunta com que vos deixo é: vamo-nos guiar por aquilo que acreditamos e não desafiamos, ou vamos confiar nos peritos como temos feito com a Covid-19? O físico nuclear português Eduardo João Martinho, em 1994 mas ainda atual, opina: “As pessoas têm medo do que desconhecem e é por isso que são contra o nuclear”. Em quase 30 anos pouco mudou, excepto o tempo que nos resta para corrigir os nossos erros do passado em termos de políticas energéticas. A melhor forma de implementar uma estratégia de descarbonização é a aplicação inteligente e racional de métodos de baixa pressão ambiental onde fizerem sentido. Os peritos concordam que a energia nuclear é segura e que sem esta a descarbonização da sociedade será impossível. Nem mesmo Homer Simpson conseguiu fazer explodir a central nuclear ao fim de 30 anos.
Agradecimentos a Edgar Felizardo, Ana Vieira da Silva, e Artur Palha pela revisão do texto.
Os pontos de vista expressos neste ensaio não reflectem opiniões e perspectivas do Shifter.
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