No dia 22 de Julho de 2020, Charli XCX, cantora e compositora, autora de êxitos como “Fancy” e “Boom clap”, perguntou no Twitter: “O que é o hyperpop?”, uma pergunta para a qual muitos procuram a resposta que se esconde por detrás da dificuldade em definir e descrever um novo género.
what is hyperpop?
— Charli (@charli_xcx) July 22, 2020
A designação surgiu recentemente no mainstream da indústria musical mas a sonoridade já tinha dado os seus primeiros passos há alguns anos. Para conseguir introduzi-la aos leitores, há uma analogia que pode parecer caricata mas faz todo o sentido.
Imaginemos o seguinte: estamos em casa e queremos fazer um batido. À nossa disposição temos uma liquidificadora e os ingredientes mais excêntricos e com os sabores mais intensos. Juntamo-los todos, mesmo os que nunca antes vimos juntos na mesma receita, e misturamos tudo. Olhamos para o aspeto e estranhamos a textura e a coloração… Mas quando provamos, o batido sabe melhor do que aquilo que esperávamos. Aceitas um copo?
O novo género, hyperpop, é uma mixórdia de géneros e sub-géneros que já conhecemos. Tem por base a pop e absorve o excesso que lhe associamos, juntando-lhe vários elementos icónicos das mais diversas origens, entre os quais a dance music, EDM, a textura do emo rap e rock, bubble gum pop, eurohouse, hip-hop, K-pop e até mesmo nu-metal. Estes são só alguns dos mais habituais géneros presentes na sonoridade do hyperpop, porque, na sua base, a sonoridade passa por criar um tipo de música pop autorreferencial, com uma pitada de humor e excessividade, impulsionada por melodias estridentes e tensas de sintetizadores, e um toque de nostalgia que remete a uma era dos anos 90 e 2000, distorcida em tom futurístico.
O termo surgiu em força em 2020 e desde então tem sido usado para descrever artistas pop como Rina Sawayama (já aqui mencionada pelo Shifter), Dorian Electra e até mesmo faixas da rapper Rico Nasty, e a ganhar o seu espaço nos ouvidos e playlists dos consumidores. Numa altura difícil conseguiu emergir como o género mais badalado de 2020, mas na base da sua definição e no âmago do seu sucesso é perceptível que esta variante do pop seja uma marca de género para música distintamente sem género – uma identidade que tem vindo a ser forjada desde o início da década de 2010. Neste papel há a destacar dois pioneiros, os chamados “godfathers” no crescimento deste género. São eles A. G. Cook e SOPHIE.
SOPHIE
SOPHIE definiu a produção eletrónica da última década, colaborando com estrelas como Charli XCX, Madonna, Lady Gaga e Vince Staples. O seu primeiro single “Bipp”, surge em 2013. Numa primeira instância parece ser apenas uma música pop com uma voz alegre que vibra sobre a diversão de uma batida repetitiva, mas é bem mais que isso. A sua produção transborda de ideias e aborda temas como o discurso hiperfeminizado e os materiais plásticos da cultura de consumo do capitalismo. A sobreposição entre a linguagem da publicidade moderna e a do desejo é característica fulcral na sonoridade de SOPHIE e ao longo da sua curta carreira deixou um efeito transformador e profundo na forma como soa a música pop moderna. Em 2017 assumiu-se publicamente como mulher transgénero com o lançamento da música “It’s okay to cry” e, para além de já ser um ícone musical, passou também a ser um ícone da comunidade LGBTQ+.
É de destacar ainda a sua nomeação para Grammy em 2018 com o álbum Oil of Every Pearl’s Un-Insides e o desfecho mais imprevisível e decepcionante de todos. Em Janeiro deste ano, SOPHIE acabou por falecer vítima de uma queda nas escadas da sua casa na Grécia, enquanto se deslocava para ver a lua cheia — uma perda incomparável de uma artista que desenvolveu legado ao desconstruir o pop eletrónico, reconstruíndo-o de forma brilhante e imprevisível. A ajudar SOPHIE nesse aspeto esteve, o supra-citado, A. G. Cook, produtor de 30 anos nascido em Londres.
PC Music
Em 2013, A. G. Cook, criou a editora PC Music, um coletivo de produtores, compositores, designers gráficos, cantores e pseudónimos perdidos, que contava com nomes Hannah Diamond, Danny L Harle e GFOTY. O que era inicialmente um “baú” online gratuito de músicas eletrónicas distorcidas e animadas, rapidamente se tornou numa influência, um marco que definiu a sonoridade na década de 2010, não só no hyperpop e na música eletrónica mas também noutros géneros. A produção feita na PC Music é brilhante e sucinta, repleta de ganchos sónicos e melódicos que perturbam os nossos ouvidos de uma forma alegre. Esta instabilidade é a maior influência de A. G. Cook para o género, as batidas feitas em computador são energéticas, os vocais têm afinações vertiginosas e distorcidas, as melodias mudam de tom num abrir e fechar de olhos, as misturas ficam viradas do avesso e os instrumentos acústicos impressionam e fazem-nos vibrar. É uma sonoridade que pode ser caótica para alguns ouvintes e futurista para outros, mas que nunca é previsível. O que se segue em cada nova faixa da PC Music é inimaginável.
PC Music é a transformação do eletro-pop convencional em algo extravagante, deformando muitas das reclamações mais típicas do pop moderno no seu estilo. A editora moldou muitos dos movimentos que surgiram na indústria e chegou ao mainstream, fornecendo o tipo de ambiente para as experimentações estranhas que ocorreram e têm ocorrido desde então, como são exemplo os dois últimos álbuns de Charli XCX, Charli, de 2019 e How I’m Feeling Now, de 2020. Também os álbuns de SOPHIE tiveram mão do produtor londrino e tanto o crescimento do Soundcloud como do hyperpop ilustram a influência de A. G. Cook e da sua label.
Esta onda meta-pop sempre teve como objetivo separar a estética impulsiva do pop de quaisquer palcos comerciais, abrindo assim espaço para uma maior variedade de estilos, estéticas, expressões e protagonistas.
“Uma das nossas intenções é tentar empurrar a música pop e torná-la experimental e acessível, e colocar-lhe um ruído ou personalidade interessante, além de uma boa melodia. Às vezes, as pessoas simplesmente não gostam de como soa e ficam tipo, ‘Oh, bem, não consigo perceber isto. Deve ser uma piada.’ Mas, na verdade, estamos apenas a tentar fazer algo que perdure culturalmente.” A. G. Cook em entrevista à Rolling Stone.
O hyperpop é perito em criar e usar esses espaços dentro dos géneros. Um pouco como aconteceu com o rap e toda a moda emo-rap, por volta de 2016/2017, o género e a sua definição surgiram organicamente algures no underground do Soundcloud, uma plataforma com um impacto cultural pouco comentado mas muito importante. O Soundcloud proporcionou aos produtores uma oportunidade mais acessível de fazerem o seu percurso e chegarem a grandes palcos construindo um legado plataforma. Os produtores mais famosos também costumavam fazer músicas para o lado pop, e por vezes eram ofuscados pelo cantor que dava a voz à sua produção. O crescimento do Soundcloud diminuiu essa desvalorização da produção e fez com que começassem a ganhar ainda mais nome do que já tinham. Se recuarmos uns bons anos, são poucos os produtores que ficaram conhecidos por serem produtores e hoje em dia essa barreira tem vindo a diminuir. Em 2019, e já com o trabalho de alguns produtores aqui mencionados no retorno da cultura da música eletrónica para o pop, apareceram oriundos dos Estados Unidos dois artistas que ofereceram uma perspetiva diferente ao game, são eles a dupla 100 Gecs, composta por Dylan Brady e Laura Les.
100 Gecs e a sua “money machine”
Num primeiro momento, quem ouve a música dos 100 Gecs pode achar que se trata de uma piada ou chegar mesmo a odiar o conceito, mas a dupla originária do Missouri sabe que a fanbase que acaba por atrair está alienada pelo Internet humour e “mergulha” neste nonsense com eles. 100 Gecs é uma mistura de conflitos estilísticos exagerados, letras absurdas e uma sonoridade desafiadora até para o ouvinte mais aberto a todo o tipo de géneros.
Um dos picos de popularidade do hyperpop teve mesmo início com “money machine” da dupla de Missouri, uma das canções mais virais a surgir no género e a primeira a dar-lhe reconhecimento. O humor irónico das letras e o som industrial energético e brilhante juntaram-se numa música que deu o pontapé de saída para algo novo. A voz distorcida e carregada de auto-tune causava uma certa estranheza ao público mainstream e o verso inicial cantado por Laura Les fazia adivinhar uma estranha canção de amor que rapidamente cai num coro de acordes fortes que fazem lembrar um cruzamento entre SOPHIE e Skrillex. É bizarro, até gozável mas, ao mesmo tempo, fascinante.
A isto seguiu-se 1000 gecs, o álbum que alcançou mais de 1 milhão de streams e que adivinhava esse cenário, um disco de 23 minutos absolutamente ultrajante. Não há um fio condutor, guião ou sensibilidade transversal a estas 10 músicas. Tudo foi feito pelo prazer de simplesmente criar música da maneira que ambos entendem. 1000 Gecs é um disco que pede emprestado todos os movimentos culturais dos anos 2010 e junta-se numa miscelânea que soa como algo que nunca antes ouvimos mas que, ao mesmo tempo, nos parece familiar. Nesta altura, 100 Gecs já estavam destinados a dividir opiniões, uns viam-nos como os corajosos pioneiros na transformação radical da música pop, outros viam o trabalho da dupla apenas como música irónica para pessoas irónicas, aliciadas pela internet.
Aparte das críticas ou elogios, Gecs continuaram o seu trabalho e chegou-nos o remix do álbum que os pôs no mapa. 1000 Gecs and the Tree of Clues surge do desejo já manifestado anteriormente de juntar géneros que teimam em ficar fora de moda, unir quebras de screamo com momentos hardcore felizes e alegres, nostalgias distorcidas tecnologicamente – tudo para mostrar que o hyperpop também é a porta de entrada para os grandes artistas do momento. Neste remix, Tommy Cash, Injury Reserve, Kero Kero Bonito, Charli XCX, Rico Nasty ou Fall Out Boy são alguns dos nomes que deram a sua contribuição e reimaginaram ainda mais a sonoridade original.
Os intitulados “senhores do género” eram apenas a superfície mainstream de um movimento underground próspero para a música pop, e a sua ascensão rápida tem sido um ponto focal para a pontificação do hyperpop. Em agosto de 2019, o Spotify criou uma playlist chamada “hyperpop” com 100 Gecs na capa e, atualmente, esta lista de reprodução é precisamente o mecanismo usado para popularizar, promover e codificar o género. Neste momento, conta com mais de 166 mil seguidores, o que, em comparação com outras playlists criadas pelo Spotify, é pouco, mas, de acordo com a sua editora principal, Lizzy Szabo, é a playlist com maior taxa de downloads (neste caso, para guardar as músicas nas bibliotecas dos consumidores) em toda a plataforma.
A playlist acaba por ser um lugar para os fãs encontrarem novas melodias e intérpretes, e para artistas que estão no início da carreira e querem um maior reconhecimento, especialmente numa altura em que concertos e colaborações ao vivo estão fora de questão. O hyperpop tem crescido a olhos vistos, e tanto pioneiros como impulsionadores do género (100 Gecs, Dorian Electra, umru, Shygirl, Slayyyter entre outros) atraem artistas que são vistos como recém-chegados improváveis, alguns já mencionados neste artigo e outros que muitos não imaginariam a incorporar este género na sua sonoridade (Village People, Pussy Riot, entre outros). No meio deste conglomerado de recém-chegados há uma artista que, 10 anos depois do seu primeiro e mais polémico single – que foi considerado a “pior música da década de 2010” -, volta aos holofotes com um remix hyperpop. Falo de Rebecca Black e do seu “Friday”.
O regresso de “Friday”
Tornou-se viral aos 13 anos e ascendeu a uma fama que nunca pensou obter. Rebecca Black, para os mais distraídos, é a autora da famosa “Friday”, a música que lhe deu mais de 100 milhões de visualizações no Youtube em apenas dois anos – enfâse no “apenas” porque, na altura, em 2011, arrecadar 100 milhões parecia quase impossível, ainda que hoje em dia seja quase banal. “Friday” também ganhou o papel de canção mais odiada da década de 2010 e foi enxovalhada em praça pública por ser vista como fraca em conteúdo, com letras simples e banais, e toda uma performance que não impressionava.
Rebecca Black, agora com 23 anos, continuou a sua carreira e, recentemente, tem arrecadado os elogios que lhe faltaram nos primeiros anos como artista. O seu single de 2021 “Girlfriend”, um hino queer que segue o lançamento de 2020, exibe uma performance vocal audaz e um talento para o pop vibrante e temperamental. Para comemorar o 10º aniversário de “Friday” a cantora juntou-se a Big Freedia, Dorian Electra, 30H! 3 e Dylan Brady dos 100 Gecs para a criação de um remix hyperpop frenético de “Friday”, demonstrando que esta música sempre foi um bop, ao contrário do que os seus detratores permitiriam.
“Friday” era hyperpop antes sequer de existir o género: nasceu da internet, empurrado para o esquecimento, serviu como inspiração para paródias e fervilhava de energia. Definir se a música é boa ou má é quase redutor e ter tido o rótulo de “pior música de todos os tempos” significou anos de ansiedade e intimidação para Rebecca Black. Na altura, a revista Rolling Stone classificou o single como “uma paródia não intencional do pop moderno”, e Rebecca Black recusou-se a remover a faixa, apesar da demanda de pedidos que recebeu para fazê-lo. Dez anos depois, o remix marca perfeitamente o momento atual, as escolhas para colaborar na música também são uma fusão de duas décadas distintas – a dupla americana de crunkcore 3OH3 !! também ascendeu no início de 2010, Dorian Electra, com quem Rebecca Black já tinha colaborado no álbum Edgelord, e a rapper americana Big Freddia, que já tinha colaborado no álbum hyperpop de 2019 de Charli XCX na faixa “Shake It”.
A música é difícil de gostar mas impossível de odiar, acaba por ser divertida e feita com a mesma atitude lúdica de muitos bons singles hyperpop dos dias que correm.
Uma voz para a comunidade trans
O hyperpop tem sido também um ponto de encontro para a comunidade LGBTQ+ em geral, e para pessoas não-binárias ou transgénero em particular. A estética expansiva e eclética e a junção orgânica de artistas não-binários acabou por conferir ao género um carácter inclusivo e o transformar numa forma de expressão dos que procuravam espaços de maior liberdade. Sobre o género e os artistas, reina a sensação de que, através dele, sentem que podem ser compreendidos e expressar-se livremente, e nisso, o hyperpop é único.
Apesar de pessoas trans sempre terem sido ativas no mundo da música, a sua repentina ascensão parece revolucionária. Artistas trans estão a usar o hyperpop para ter o controlo das suas próprias narrativas, para contar as suas histórias sem filtros. Uma das marcas do hyperpop é levar os elementos do pop ao extremo e isso também se inclui na expressão de género. Se no pop tradicional as figuras femininas são vistas pela cultura popular como representações de feminilidade, um padrão inalcançável para a maioria das mulheres, o hyperpop cria espaços de expressão para além desta parametrização normativa.
No hyperpop, as artistas distorcem e reivindicam os padrões culturais de feminilidade ao assumirem papéis rígidos de género e transformando-os numa atuação única – a partir daí adaptam a estética e sonoridade de cada um. Mas este suposto exagero não parte só deste princípio. Dorian Electra fundamenta a sua música como uma exploração em exagero da masculinidade moderna que é fortalecedora e satírica, tal como descreveu nesta entrevista dada à revista Fader, acerca do seu último álbum: “Com este projeto, eu queria mergulhar a fundo na misoginia da cultura da internet e explorar temas musicais mais intensos e hardcore. Para fazer música mais raivosa e emocional do que antes.” Dorian explora ainda territórios bem conhecidos da cultura contemporânea como as teorias da conspiração ou as políticas reacionárias de extrema direita.
Não há barreiras para como o hyperpop pode ou tem de soar e isso é importante. Um ênfase sonoro, uma modulação vocal ou a possibilidade de assumir falhas, dão a artistas espaço e uma plataforma que lhes permite alterar e modular a sua expressão de uma forma significativa – recorrendo, por exemplo, a distorções da voz. A juntar a isso, a atmosfera futurística do género permite que artistas trans se apresentem como realmente querem. O exemplo mais concreto disso é o de SOPHIE, que foi uma das primeiras artistas a fazer-se notar com próteses nas maçãs do rosto, uma modificação que a princípio pode ter sido estranhada mas acabou por influenciar todo o universo pop como uma expressão de liberdade contagiosa.
O hyperpop tem atraído mais ouvintes a cada dia, seja nas plataformas de streaming ou por passa-a-palavra, mas à medida que o surgimento de novos fãs dá alento, aclamação e exposição aos criadores trans, também os expõe a abusos verbais e desprezo, evidenciado sobretudo na onda de comentários transfóbicos e cruéis que há em videoclipes de SOPHIE e 100 Gecs. O problema também advém da aproximação do género ao mainstream, distanciando-o dos públicos iniciais amplamente familiarizados com os códigos implícitos, levando-o para circuitos como os vídeos virais de Tik Tok onde a subversão de contextos, a apropriação de discursos, ou o assédio a criadores, já foi alvo de críticas por diversas vezes e diversos grupos.
Este problema irá manter-se enquanto o respeito pela comunidade LGBTQ+ não for consensual e posto em prática. A situação é complexa, mas não diminui ou desvaloriza a identidade do hyperpop, pelo contrário, reforça a sua importância não só como espaço de expressão sem julgamento mas também como plataforma de afirmação positiva para que artistas não-normativos possam dar a conhecer-se para além dos rótulos identitários que os afastam do discurso público.