No passado dia 10 de fevereiro, quarta-feira, a Polónia acordou com um blackout nos meios de comunicação privados. Emissões de rádio e televisão interrompidas por 24 horas, capas de jornais a negro, a hashtag #MEDIABEZWYBORU [Media sem Escolha] nas redes sociais dos órgãos de comunicação social, mas também de políticos e cidadãos polacos em solidariedade com o movimento. Em causa está uma taxa de publicidade que apresenta uma ameaça para os meios de comunicação e, consequentemente, para a liberdade de expressão e informação.
O governo polaco, pela voz do primeiro ministro Mateusz Morawiecki, anunciou no dia 2 de fevereiro a imposição de uma nova taxa de publicidade, que se aplicará à receita vinda da publicidade em canais televisivos, estações de rádio, grupos de imprensa e media online, bem como a cinemas e outdoors publicitários. Isenta desta taxa, ficam apenas os órgãos de comunicação públicos, como a TVP [Canal Nacional Público], o canal televisivo cuja agenda é há muito ditada pelo partido no poder, PiS (Law and Justice).
A justificação dada pelo governo é que esta taxa servirá para investir no Serviço Nacional de Saúde (NFZ) e impulsionar o setor da cultura, ambos fragilizados “devido à pandemia de covid-19”. Na prática, esta taxa representa cerca de 220 milhões de euros anuais e pode pôr em risco a continuidade de grande parte dos media privados, que além de terem naturalmente sido penalizados pela crise despoletada pela pandemia, têm na publicidade uma importante fonte de subsistência. Maciej Sawicki, jornalista num dos OCS em protesto, que assinaram uma carta aberta conjunta, resume a proposta do governo numa frase: “a ideia de impor mais uma taxa numa altura em que muitas empresas no setor dos media está a lutar pela sua vida é muito estranha”.
“Na verdade, contudo, ninguém que siga de perto as ações do governo tem dúvidas de que esta taxa é uma ferramenta para atingir um objetivo. O objetivo é enfraquecer o papel dos media independentes, especialmente os que são detidos por estrangeiros”, diz o jornalista ao Shifter.
this is so crazy y’all 🤯 #MEDIABEZWYBORU pic.twitter.com/xkGz2r7GP2
— julia (@shinystewj) February 10, 2021
Jaroslaw Kaczynski, Presidente do PiS, ou o “líder informal do país”, como apelida Maciej Sawicki, acredita que os media devem ser nacionalizados – uma vez que grande parte dos media privados na Polónia pertencem a grupos não-polacos, como é o caso do Ringier Axel Springer Polska, que surge de um acordo suíço-alemão. Para Sawicki, que vê uma comparação clara entre o que se está a passar na Polónia e na Hungria, “onde os media independentes foram reduzidos a um papel marginal durante os anos de Orban no poder”, é bastante óbvio que “o governo quer fortalecer os media públicos e enfraquecer os media privados”. “Não podemos deixar-nos enganar e acreditar que esta taxa é sobre o Sistema de Saúde ou a cultura. É sobre o governo querer pôr o nariz nos media indisciplinados”, acrescenta.
Menos canais privados, menos alternativas aos binóculos PiS
“É importante dizer que cerca de 30% da população Polaca depende dos canais públicos para ter acesso à informação, e esse acesso é dado, mas a informação é grande parte das vezes enviesada, carregada de ódio e concentrada num partido político”, dizia a polaca Izabela Bodzioch, mestre em Estudos Europeus pela Universidade Católica de Lovaina, cuja tese de mestrado se dedica à análise dos discursos do PiS com referência à comunidade LGBTQI+, em entrevista ao Shifter em outubro de 2020. A cobertura mediática da TVP tem sido, desde que o PiS se encontra no poder, cada vez mais controlada pelo governo, num registo a que muitos jornalistas e cidadãos apelidam mesmo de “propaganda”. E é também por isso que esta nova taxa de publicidade traz mais perigo para a informação e para a democracia: com menos alternativas, existe menos pluralidade ao informar e enquadrar os acontecimentos.
Maciej Sawicki refere que “já há vários que a televisão pública polaca tem sido uma ferramenta de luta política” e que “não devia surpreender ninguém”, por esta altura. “Na sua visão simplista, o governo acredita que os media públicos existem para servir o propósito de criar um Estado forte e conservador. Portanto, a televisão pública é como o governo na sua visão: anti-Europeia, xenófoba, conservadora.”
O jornalista corrobora Izabela, dizendo que “o que é pior é que grande parte da sociedade [polaca], especialmente pessoas mais velhas e a viver em pequenas cidades (que representam o eleitorado de ferro do partido no poder) tomam a narrativa da televisão pública como a única correta” — e essas pessoas “não têm ou não querem ter acesso a meios independentes”. “Ainda que para quem observa de fora o conteúdo da televisão pública seja extremamente propagandístico, isso não incomoda nem os espectadores da televisão pública, nem o governo”, explica. Importa lembrar também que os meios de comunicação públicos na Polónia são, evidentemente, financiados por dinheiro público e que, como acima referido, são os únicos que se encontram isentos da taxa de publicidade.
A força desta ação conjunta fez-se ouvir um pouco por toda a Europa, em jornais de referência como o DW, o Politico e a BBC. Sawicki acredita que o alerta internacional se deveu ao poder que resultou desta união, já que tantos estações televisivas e de rádio como portais de notícias mostraram, durante o dia 10 de fevereiro, um único conteúdo: o manifesto — e ligando um desses canais foi possível ler mensagens como “era suposto o teu programa favorito estar a passar aqui”.
Ser jornalista na Polónia — a violência na invisibilidade
Segundo o ranking da Liberdade de Imprensa Mundial de 2020, publicado pelos Repórteres sem Fronteiras e que já tínhamos analisado no Shifter nesta longa reportagem sobre o contexto LGBTQI+, a Polónia encontra-se em 62º lugar em 180 países distribuídos pelo mundo — enquanto Portugal, por exemplo, se encontra em 10º e a Noruega, a Finlândia e a Dinamarca ocupam os três primeiros lugares, respetivamente. Na linha temporal que é possível analisar, que começa em 2013, rapidamente podemos verificar que a liberdade de imprensa caiu consideravelmente na Polónia desde 2016, ano que ficou marcado por protestos contra o governo, como a marcha pró-aborto que foi apelidade de “Segunda-Feira Negra”.
Já em outubro, a propósito da reportagem “Um grito mudo: a luta LGBTQI+ na Polónia por igualdade e direitos humanos”, Mariusz Kurc, diretor-chefe de Replika, a única revista LGBTQI+ polaca, explicava que a maior dificuldade de ter um meio de comunicação como o seu é que “não existem investidores ou grandes mecenas, não tens apoio nenhum — incluisve da União Europeia”, o que faz com que apesar de poder “escrever o que quiser”, a sua voz “dificilmente seja ouvida”. Sawicki, na entrevista que deu ao Shifter esta semana, sublinha que é importante relembrar, antes de mais, que “a tradição do jornalismo livre e independente na Polónia é curta” — “falamos de jornalismo independente profissionalizado desde 1989”. Ainda assim, quer também deixar bem assente que desde então “o sistema na Polónia era forte, diversificado e bastante saudável em termos de qualidade de informação e fontes de financiamento”.
Importa também referir que quando se fala de liberdade na imprensa, não é apenas de censura que se está a falar. Tal como Kurc, Sawicki refere não existe “um ataque direto aos jornalistas” mas há, no entanto, “uma estratégia efetiva e consistente que limita as fontes de financiamento tanto de empresas de media privadas como dos próprios jornalistas”. “Talvez essa seja o mais assustador, não estarmos a falar de um ataque aos media que atrairá a atenção pelo mundo, mas de uma ação estrategicamente pensada para envenenar o jornalismo na Polónia”, continua.
No livro “O Desligamento do Mundo e a questão do humano”, André Barata estabelece a diferença entre opressão e repressão, que pode ajudar a melhor enquadrar as dificuldades elencadas por Maciej Sawicki: “A opressão é um não-acontecer às pessoas, mas recíproco, entre opressor e oprimido. A diferença que os distingue, por detrás da aparente e quase formalizada igualdade, está não no plano do que acontece, mas no plano anterior ao que acontece ou deixa de acontecer, plano do possível ou da sua negação. Visam-se, mas com uma intencionalidade encoberta pela disposicionalidade adquirida pelo sistema, as possibilidades de ser das pessoas. Por exemplo, ao viverem apenas para sobreviver no dia seguinte, quer dizer, viverem sem plano, viverem sem a possibilidade de projectarem uma vida com significado. A precariedade das suas vidas tem como consequência central uma opressão igualmente extrema” (Barata 2020, 141)
Para o jornalista polaco Maciej Sawicki, já há vários anos que “a Polónia se tem aproximado de um sistema a que podemos chamar de democracia limitada”, conhecido por exemplo na Hungria. “O governo é consistente e não tem piedade, e a vantagem no parlamento, bem como a posição do presidente [Andzrej Duda], oferecem todas as ferramentas para mudar o sistema”. E passo a passo, o governo vai tentando ter no seu controlo os setores mais importantes para a vida em democracia. O jornalismo é um deles.
A covid-19 como desculpa
A pandemia da covid-19 tem sido a desculpa perfeita para que governos como os da Hungria e a Polónia tomem decisões que à partida não seriam prioridade num momento de epidemia mundial, mas também para que se use a pandemia como desculpa para tomar outras decisões estratégicas. Nos protestos de solidariedade com a comunidade LGBTQI+ aos protestos pró-aborto, a que acabaram por se juntar outras causas durante semanas nas ruas de Varsóvia, moviam-se pessoas que diziam não aguentar mais a opressão cada vez mais sufocante do governo; já o governo, sempre que se manifestava publicamente sobre os protestos, culpava-os pelos números crecsentes de polacos com covid-19. Tal como agora, na taxa de publicidade, a justificação é colmatar as dificuldades da pandemia.
Depois de Margot Szustowicz, ativista e co-fundadora da organização Stop Bzdurom (Stop Bullshit), ter sido detida e posteriormente presa por “vandalizar” uma carrinha de propaganda anti-LGBTQI+ e colocar bandeiras arco-íris em monumentos em Varsóvia — e de, em consequência, quarenta e oito pessoas terem sido detidas num protesto pacífico em solidariedade com Margot — , agora é Marta Lempart, fundadora e principal porta-voz da associação pró-aborto Strajk Kobiet que corre o risco de ser presa também.
A woman who led protests against Poland's anti-abortion law was charged with felonies like insulting police and causing an "epidemiological threat." Marta Lempart faces up to 8 years in prison.
The law bans abortions for fetal abnormalities. Groups say it violates human rights. pic.twitter.com/xfbKLycLN3
— AJ+ (@ajplus) February 11, 2021
Marta Lempart, ou Marta L., como o governo e a TVP se referem desde que anunciaram o veredito no passado dia 10 de fevereiro, arrisca-se a cumprir até 8 anos na prisão por causar “uma ameaça epidemológica” e por “insultar agentes da polícia por fazer um gesto de cuspir e usar palavras vulgares” — são palavras de Aleksandra Skrzyniarz, porta-voz da procuradoria do distrito de Varsóvia, que prestou declarações à Agência da Imprensa Polaca (PAP). A PAP refere, também, que Marta Lempart foi acusada de “elogiar publicamente crimes” numa entrevista em que falou sobre “vandalismo em igrejas e disruption of masses por protestantes”.
Segundo a notícia do site Notes from Poland, já em novembro os procuradores haviam anunciado que estavam a “investigar as líderes do Women’s Strike por porem em risco a saúde pública ao organizarem demonstrações durante a pandemia, por insultarem pessoas devido às suas afiliações religiosas, e por incitar ou cometerem ações ilegais”. A notícia da possível prisão de Marta Lempart surge duas semanas depois de o governo polaco ter tornado efetiva a lei que criminaliza o aborto por por malformação do feto, que foi o motivo dos protestos de outubro de 2020 e que tinha ficado em espera até a esta aprovação final.
Num apelo final, Maciej Sawicki diz ao Shifter que “o que resta para nós, que sonhamos com a democracia, imprensa livre, tolerância e uma integração Europeia, é uma resistência consistente e sem fim”. “Temos estado a protestar por muitos anos contra o ataque aos tribunais livres, a limitação dos direitos das pessoas LGBTQ+, a proibição do aborto, e agora o ataque aos media independentes. Neste sentido, o protesto dos media é muito importante. Ele mostra que tanto a sociedade como os media podem agir de uma forma incansável e organizada”, conclui.
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