Faz em 2021 dez anos que a chamada Lei das Normas Abertas foi aprovada, sem votos contra de nenhum dos partidos na altura com assento parlamentar, estabelecendo que nenhum cidadão pode ser discriminado pelo software que usa, no contexto de organismos públicos. O aviso “não compatível com o seu browser” ou a partilha de documentos Word é ilegal? Vamos perceber se sim ou se não, e o que é que esta Lei das Normas Abertas significa para todos nós, utilizadores de tecnologia.
A primeira versão desta lei – registada com o nº 36/2011 – estabelecia a“adopção de normas abertas para a informação em suporte digital na Administração Pública, promovendo a liberdade tecnológica dos cidadãos e organizações e a interoperabilidade dos sistemas informáticos do Estado”. Isto é, todos os ficheiros, páginas web e aplicações disponibilizadas por órgãos de soberania, por serviços da https://shifter.pt/wp-content/uploads/2023/04/333930326_6734667403227056_1447582654111296349_n-1.jpgistração pública central e regional, por institutos públicos e pelo sector empresarial do Estado não podiam ser fechados um determinado software que o utilizador escolheu não usar ou pelo qual teria eventualmente de pagar.
Trocando por miúdos, organismos públicos tinham de optar por normas abertas como .txt ou .csv, compatíveis com qualquer aplicação, incluindo software livre, em vez de disponibilizar ficheiros .doc ou .xls, que são desenhados para o software da Microsoft e que podem não ser compatíveis com os programas que o utilizador escolheu usar diariamente. Na mesma linha de raciocínio, um determinado site ou aplicação web que necessite de um determinado browser e que não funcione naquele que a pessoa usa é de igual modo uma situação discriminatória.
Assim, a Lei das Normas Abertas não tinha nem tem a ver com a disponibilização de documentos e serviços que possam ser utilizados com software livre e gratuito mas sim com a disponibilização de ficheiros e sites que possam ser visualizados, editados e partilhados por qualquer pessoa no software que decidiu usar, independentemente de qual seja, não forçando essa pessoa a instalar uma nova aplicação só para abrir determinado conteúdo. A primeira versão da lei era clara e abrangia tudo o que fosse “objecto de emissão, intercâmbio, arquivo e ou publicação pela Administração Pública” – dados, formatos de som e imagem, documentos, interfaces web, protocolos de streaming, protocolos de correio electrónico, sistemas de informação geográfica, redes informáticas, normas de segurança, etc. É através do chamado “Regulamento Nacional de Interoperabilidade Digital” (RNID) que se determinam quais são as normas e formatos abertos que a Administração Pública deve adoptar.
O primeiro RNID foi publicado em 2011 e deveria ter sido actualizado em 2015, só que a sua revisão só ocorreu em 2018, acompanhado pela introdução de uma nova Lei das Normas Abertas, se assim se pode dizer. Nesta revisão, aproveitou-se para fazer a a obrigatória transposição da Directiva Europeia relativa à acessibilidade dos sítios web e das aplicações móveis de organismos do sector público, o que levou a um conjunto de várias alterações à lei, incluindo a definição do seu âmbito e abrangência. Assim, a lei viu o seu âmbito ser alargado a todo o Estado português, regiões autónomas, autarquias, institutos, associações, fundações e empresas públicas, organizações não governamentais que prestam serviço público, escolas e universidades. A revisão da lei simplifica também o que é abrangido: “informação textual, a informação não textual, todo o tipo de documentos e formulários descarregáveis, os conteúdos multimédia dinâmicos, os mapas, os processos de autenticação, os serviços, os meios de pagamento e os formulários de preenchimento e submissão online”. Existem algumas excepções, como é o caso de páginas de arquivo.
“Aquando do seu aparecimento, em 2011, a Lei das Normas Abertas era uma aproximação inovadora. Mas enquanto Portugal se tem vindo a atrasar na sua devida implementação, pela Europa fora vários outros passos se têm dado sobre a matéria, tanto de âmbito nacional como comunitário.” Quem o diz é Marcos Marado, vice-presidente da ANSOL – Associação Nacional para o Software Livre, em entrevista ao Shifter. “A ANSOL esteve envolvida na elaboração da Lei das Normas Abertas, e ficou contente com a sua redacção final. Foi só após a sua aprovação, e no decorrer do tempo em que ela deveria estar a ser aplicada, que viemos observando a sua não-aplicação.” Para esta associação empenhada na defesa de direitos digitais, esta é uma “lei sem dentes”, isto é, uma lei que existe mas que nada acontece a quem não a cumpre. “Uma ‘lei sem dentes’ dá pouco incentivo a quem, não estando a cumprir e se aperceba disso, a passe a cumprir”, diz Marcos. “O problema que vemos neste âmbito é que a Lei não prevê penalizações, não acontece nada a quem não cumpre o regulamento.”
Mas, se existe realmente uma lei que não é cumprida, para que é que ela serve, afinal? “Esta é a verdadeira questão: mas uma que gostava ver ser respondida por outras entidades: a AMA, o Governo, o Parlamento, ou outros representantes da Administração Pública. Porque é que a Lei não está a ser cumprida? Porque é que (aparentemente) nada está a ser feito quanto a isso? E o que é que pode mudar para que isso deixe de acontecer? E se se sabe o que pode mudar, porque é que não há vontade política de efectivar essa mudança? É realmente desencorajador saber que a lei – uma lei que foi aprovada sem votos contra – não é levada a sério.”
A ANSOL – Associação Nacional para o Software Livre mantém uma lista actualizada de todas as situações de incumprimento do Regulamento vigente ao longo dos anos. É o caso da disponibilização dos cadernos eleitorais e de documentos apenas em formato .xlsx, compatível com Excel, a existência de conteúdos Flash, tecnologia proprietária da Adobe e que em muitas situações obriga à instalação de um plugin específico. São ainda listadas situações relacionadas com HTTPS e Java.
“Infelizmente, dez anos depois, e a Administração Pública ainda não cumpre a Lei. A ANSOL tem observado com atenção o desenvolvimento da sua implementação, e registado alguns dos incumprimentos da Lei, maioritariamente vindos de denúncias feitas pela sociedade civil”, escreve a associação numa retrospectiva de 2020. A ANSOL detectou 33 incumprimentos no início do ano passado e registava 35 no final de Dezembro, tendo assistido ao surgimento de novos serviços sem o cumprimento do RNID. A ANSOL aponta, no entanto, várias situações que foram resolvidas. “As listas disponibilizadas pelo portal “Portugal 2020” já se encontram também em formato CSV, cumprindo a Lei e permitindo a qualquer cidadão aceder às mesmas”, exemplifica. Outros casos solucionados abrangem o Ministério da Saúde ou o CITIUS, por exemplo. “Mas, dentro dos incumprimentos que já conhecíamos em 2020 e que se mantêm, encontram-se incumpridores como a Assembleia da República, Governo e diversos dos seus Ministérios (Economia, Finanças, etc.), e muitos outros organismos da Administração Pública.”
Poderão estas situações ser justificadas com um desconhecimento da Lei das Normas Abertas? “Haverá certamente casos de iliteracia ou desconhecimento, e é verdade que há casos (principalmente quando mediatizados) de incumprimentos que, quando apontados, são depois resolvidos”, diz Marcos – recorde-se o caso do Portal das Matrículas que não funcionava com alguns browsers. “Mas há também muitos casos em que o incumprimento foi informado, e os responsáveis dos sites simplesmente não tiveram interesse em resolver. Não estamos a falar de pequenas coisas: afinal a lista de sites incumpridores inclui os sites do parlamento e do Governo, por exemplo.”
Mas, então, a Lei das Normas Abertas significa que um professor numa universidade pode ser impedido de partilhar documentos .doc ou exigir trabalhos nesse formato? Marcos Marado diz que não há uma resposta directa. “Talvez mais importante do que saber se a Lei permite ou não essa acção, é saber o espírito da Lei, e saber o impacto, para a sociedade, dessa opção. Deve um professor assumir que os seus alunos têm acesso e usam um determinado software?”, explica. “Se o professor disponibilizar um documento com o recurso a uma norma aberta, todos os alunos, sem excepção e sem compromissos, têm os meios necessários para aceder ao documento: sem ter de adquirir software específico, aceitar termos de serviço ou outras imposições via licença, etc.. O aluno tem a liberdade de continuar a poder usar o seu software de eleição, seja ele o Microsoft Word (no caso de um documento de texto) ou outro.”
Para Marcos, há um hábito de ensinar métodos em vez de ferramentas. Um estudante de arquitectura, por exemplo, provavelmente nunca precisará de comprar uma licença de AutoCAD uma vez que enquanto estudante esta é-lhe oferecida pela universidade e, quando presumivelmente começar a trabalhar num estúdio, terá acesso também a uma licença paga pela empresa. Este cenário leva a que o AutoCAD seja comum entre os alunos desta área e que o seu uso nem sequer seja questionado; mas ao aprenderem a usar uma ferramenta em específico e não o método em geral, pode estar-se a limitar a aprendizagem da pessoa e, por consequente, as normas que ela no futuro usará. “Com o acelerado ciclo de renovação de ferramentas no âmbito digital, esse debate tomou um novo fôlego, e a discussão não se prende simplesmente sobre as características ou o licenciamento de determinada ferramenta, mas muitas vezes até mesmo a sua versão. Um aluno que em vez de aprender as técnicas aplicáveis numa ferramenta CAD aprende a usar o AutoCAD 2015, ele vai ter dificuldade quando tiver de usar o (incompatível) AutoCAD 2020. Mas isto não é um argumento para o uso de software livre ou proprietário, a solução A ou B no ensino: é um argumento para o ensino de técnicas com recurso a ferramentas, em vez do ensino do uso das ferramentas”, comenta. “Mas isto também mostra que o ‘uso popular’ é um falso argumento para defender o uso do AutoCAD (ou outro qualquer software) no ambiente educativo. Na realidade, a necessidade formação já na mercado de trabalho é uma realidade abertamente aceite: o arquitecto que hoje ainda usa o AutoCAD 2015 sabe que vai ter de investir na formação e o tempo necessário para se treinar e habituar a um novo software.”
Semelhante acontece noutro ambientes académicos, onde muitas vezes os alunos recebem licenças do Microsoft Office, pelo que terão acesso aos formatos .doc que os docentes pedem ou enviam. Contudo, como já explicado anteriormente, a Lei das Normas Abertas não tem a ver com a disponibilidade de software e de licenças, mas com escolha, isto é, ao direito a escolher outro software que não o AutoCAD ou o Word como preferência. Na mesma linha de raciocínio, sites incompatíveis com determinados browsers também contrariam a Lei das Normas Abertas – seja Firefox, Safari, Chrome ou outro, o utilizador deverá ser livre de optar pelo browser que deseja e não ter de instalar outro só para aceder a determinado serviço público, https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativo ou educativo, facultado por uma instituição do Estado ou associada directamente ao Estado.
É uma situação complicada, e não quero estar a complicá-la mais: tudo isto foi planeado e preparado à pressa, stuff happens. Mas…
"As aulas não funcionam pelo navegador que ela tem" é indicativo de que provavelmente são dadas com recurso a uma plataforma que não cumpre a Lei.— Marcos Marado (@mind_booster) February 8, 2021
A Lei das Normas Abertas e o respectivo regulamento (RNID) vão ter de ser revistos até Outubro deste ano. Caberá à Agência para a Modernização Administrativa (AMA) propor atempadamente ao Conselho de Ministros um processo de consulta pública. “Infelizmente, é possível que estes prazos não sejam cumpridos – afinal a primeira revisão do RNID atrasou-se três anos, que é o intervalo de revisão previsto na lei”, lamenta Marcos Marado, que a acrescenta que parece não haver muito interesse político em abordar este assunto – ainda que a pandemia tenha vindo a reforçar a digitalização dos mais diversos sectores. Para a ANSOL, o mais importante desta revisão é que a Lei passe a ter mecanismos reais que incentivem ao seu cumprimento, como “coimas, sanções, indemnizações ou outros mecanismos”, e um “papel mais focado e intervertido por parte da AMA na garantia do correcto cumprimento”. “Neste balanço que fizemos dos 10 anos de Lei o que se destaca é que é uma Lei que toda a gente concorda em teoria, mas que depois tem sido ignorada. Queremos um novo RNID que tome este problema em consideração e que tente, pela primeira vez, efectivamente resolvê-lo”, finaliza Marcos.