Pode a voz aproximar-nos em tempos de distanciamento?

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Foto de Soundtrap via Unsplash

Pode a voz aproximar-nos em tempos de distanciamento?

A democracia precisa de quem pare para pensar.

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Sentados à secretária, de computador ao colo ou de telemóvel em punho, habituámo-nos a encontrar 'o outro' nas redes sociais, nos feeds infinitos que nos atravessam o olhar a uma velocidade que, em som, não nos permitiria escutar com clareza nada do que é dito.

Com a ameaça do vírus, estar em casa tornou-se mais do que uma opção, um dever cívico; fomos obrigados a reduzir os nossos contactos sociais, a conviver menos, a sair menos e, portanto, em resultado de tudo isto, acabámos por ouvir menos os outros. Sentados à secretária, de computador ao colo ou de telemóvel em punho, habituámo-nos a encontrar ‘o outro’ nas redes sociais, nos feeds infinitos que nos atravessam o olhar a uma velocidade que, em som, não nos permitiria escutar com clareza nada do que é dito.

Imersos nas redes sociais lemos todas as opiniões mentalmente, com a nossa própria voz a desmultiplicar-se no nosso cérebro em pequenas personas e, assim, o mundo que nos habituámos a percepcionar como plural, dinâmico e comunitário foi-se tornando, para alguns, cada vez mais pequeno e menos humano. Como se a vida real emulasse agora uma experiência puramente virtual onde tudo se passa e se pensa com a nossa voz na nossa cabeça, onde nos sentimos mais sós, menos dialogantes, numa era em que o volume de informação que trocamos é historicamente incomparável.

Ao conteúdo das redes falta muitas vezes a forma humana da fala. Se em artigos longos que permitam um mergulho no texto e na prosa, conseguimos encontrar-nos a sós com o autor – num exercício que exige alguma concentração e que cada vez nos parece mais difícil –, a informação fragmentada, os última-hora e as notícias em contínuo agudizam o sentimento de impotência perante uma onda informativa que desumaniza tudo e todos. Por um lado, estamos mais sós, por outro, temos de estar mais alerta. Por um lado, temos de saber relativizar o que nos assusta; por outro, vemo-nos com uma espécie de papel na manutenção de uma plataforma de senso comum. Em suma, vemo-nos e sentimo-nos cada vez menos como o humano inseguro que duvida de si próprio enquanto fala e acompanha um camarada numa gargalhada sobre um lapso, para sermos cada vez mais um nódulo de um mundo interconectado, sem um sentido explícito mas uma marcha imparável.

“Cada vez menos sujeitos de deliberação e acção, cada vez mais nódulos de reação, membranas conscientes hipersensibilizadas, mas apenas isso, a consciência aperfeiçoada a ser apenas dispositivo de reação, aos estímulos, às sensações, ao fluxo que, cada vez mais, se constitui como um meio imersivo da sua existência”, assim descreve o filósofo André Barata, o sujeito pré-pandemia, numa fórmula que se viu acelerada pelas contingências impostas pelo vírus que pelo seu carácter patológico, tempera toda a sensibilidade e consciência com a assustadora possibilidade da morte que a modernidade, em tese, havia afastado – alguém imaginava que em pleno século XXI uma pandemia nos condicionasse a este ponto? Provavelmente não. 

Com toda esta aceleração, paralela a uma retórica de distanciamento, e sem uma intimidade infra-estrutural, como a de que nos falam Jonas Staal e Jan Fermon, que nos ajudem a criar uma ideia de comunidade e espaço comum, damos por nós cada vez mais ligados ao outro mas desligados da sua essência humana, entretidos ou contentados com likes, loves, favs, e RTs; nós, jornalistas, ainda mais agarrados a números de visualizações, à necessidade de síntese, à optimização para as redes sociais; resumidamente, à falta de podermos encontrar o outro na nossa vida real, temos de optimizar a sua procura na vida digital, acabando por entrar numa espiral com custos para nossa saúde mental.

O vício do scroll, a dependência do like, o culto das views, a necessidade constante de estarmos atentos, disponíveis, a produzir, com uma esperança infundada de que é a nossa opinião ou um qualquer artigo viral, que chegue a toda a gente, que pode aproximar a humanidade da salvação… Tudo isso nos conduz a um estado de luta pela sobrevivência. Lutamos não só contra o vírus mas contra todos os inimigos que criamos nesta épica batalha que se passa nas nossas cabeças, que julgam perceber o total do mundo pela quantidade absurda de informação com que com todos os dias contactam. 

Contudo, no meio de todo este contínuo assoberbante, continua a haver uma possibilidade de escape, que recordamos a cada telefonema, a cada convívio por vídeo-chamada ou a cada audição de podcast: ouvirmo-nos. Parece uma solução fútil para um problema difícil de resolver mas é pelo menos um antídoto que trava a progressão do vírus que nos infecta a cabeça. Ao contrário da frieza da expressão escrita online, especialmente em formatos proprietários, em que as letras surgem sempre perfeitamente alinhadas, sem qualquer marca de emoção ou humanidade, a voz, mesmo quando convertida para circular como qualquer outro dado, por meio de bits e bites, transporta consigo uma essência impossível de emular.

Hesitamos nas dúvidas, aumentamos o volume nas convicções, rimos das falhas, trememos de emoção e a voz como forma de expressão primordial reflecte tudo, mesmo o que tentamos esconder. A rouquidão do sono, o desânimo de um dia menos bom ou a excitação de boas notícias são como que o conteúdo que modela esta forma de expressão que é a voz, conferindo-lhe um significado para além do que se pretende dizer. Assim, ao ouvirmo-nos, não só percebemos o sentido do que se quer dizer, como aferimos, inconsciente, sobre como se sente quem o diz. Ao ouvirmo-nos, contactamos não só com o sentido do que se quer dizer mas com a dúvida constante de quem o diz que interrompe o contínuo de significados para nos lembrar que do outro lado há um humano.

Foi com isso em mente que em plena pandemia, no Shifter, demos arranque a um podcast que procura explorar da melhor maneira possível este lado humanizador da voz. No Reunião Editorial conversamos praticamente sem guião, e deixamos que as emoções nos saiam pela boca sem filtros, cultivando uma proximidade que constringida ao texto seria avaliada como errática. E é também por isso que mesmo num mercado onde o podcast ainda não é o formato preferencial mas vai ganhando tração, um festival como o Podes é tão acarinhado pela sua comunidade.

Tal como noutros nichos do universo tecnológico, quando se troca simplicidade por humanidade, neste caso, a síntese austera do texto escrito para um contínuo pela expansão da voz emotiva circunscrita num tempo e num espaço próprio – ouvimos os podcast isoladamente, a sós, mesmo que seja num novo separador – descobre-se a humanidade que se esconde por de trás da tecnologia, e o potencial comunitário que se esconde por de trás da humanidade atomizada.

Portanto, no meio da azáfama, não esqueçamos, por muito que nos leiamos, será sempre indispensável a capacidade nos ouvirmos. Deixar que novas vozes embrulhem as nossas ideias ou que nos tragam novas que nos convidem a reflectir. Ouvir uma música que não surgiria num feed, saber mais sobre algo que à partida não quereríamos, imergir numa notícia de uma outra maneira, ou simplesmente ouvir uma conversa interessante que se prolonga por horas, são hoje em dia formas de resistência social. Num mundo cada vez espelhado em imagens, e cada vez mais codificado em texto, a expressão pessoal, da forma que nos torna mais únicos, a voz, lembra-nos a todos que por de trás de cada computador, por de trás de cada título, ou por de trás de cada handler, existe um humano, uma pessoa. Não nos esqueçamos disso. 

Esta ode ao potencial da voz foi escrita por ocasião do festival Podes, um festival organizado pela Portcast em parceria com o Jornal Público que pretende premiar os melhores podcasts que são feitos em Portugal durante um ano. No Shifter somos parceiros de divulgação e quisemos aproveitar o pretexto não para destacar os prémios ou os nomeados – numa lógica que inevitavelmente se submete a uma hierarquia de preferências – mas para reflectir, mais globalmente, sobre porque pode ser importante nos dias de hoje olharmos a um festival e um formato como este.

Se quiseres conhecer os nomeados podes encontrá-los aqui. A programação do festival que conta ainda com webinars e debates pode ser consultada aqui.

Índice

  • João Gabriel Ribeiro

    O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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