O ano de 2020 ficará marcado pela reestruturação que se impôs, sem aviso prévio, sobre a indústria cinematográfica. Os filmes cujas estreias não foram adiadas acabaram por ver os seus lançamentos alterados. Exemplo recente é o de The Trial of the Chicago 7: inicialmente pensado para um lançamento nas salas de cinema pelos estúdios Paramount, os direitos de distribuição acabaram vendidos à Netflix, devido à pandemia da Covid-19.
Com The Trial of the Chicago 7, e depois de se estrear com Molly’s Game (2017), Aaron Sorkin assume, pela segunda vez, o papel de realizador. Sorkin é, porventura, um dos nomes mais emblemáticos de Hollywood do século XXI. O veterano guionista, escritor de séries de culto como The West Wing (1999), e de filmes emblemáticos, como The Social Network (2010) (pelo qual ganhou um Óscar de Melhor Argumento Adaptado, em 2011), mune-se, uma vez mais, de um argumento da sua autoria, expectavelmente exímio e mordaz. Mas nesta segunda ingressão na realização, encontramos uma construção cinematográfica mais madura, e cuidada.
The Trial of the Chicago 7 é simultaneamente uma revisitação histórica, e uma profunda análise à capacidade que cada um tem de se mobilizar perante as adversidades do meio envolvente. Sorkin baseia-se num episódio verídico – é notória a edição do filme, que intercala harmoniosamente imagens ficcionais e reais – para contar a história dos 7 de Chicago. Um grupo composto, na verdade, por 8 indivíduos, acusados de conspiração anti-governamental e incitação à rebelião e violência, nos protestos contraculturais e contra a Guerra do Vietname, durante a Convenção Democrata Nacional, em agosto de 1968, em Chicago, Illinois. Os indivíduos pertencem a grupos distintos, com matrizes orientadoras próprias: falamos de jovens da organização Estudantes para uma Sociedade Democrática, indivíduos do Partido internacional da Juventude (os conhecidos hippies), um membro da organização política Black Panthers e, ainda, um protestante que tem tanto de solitário como pacífico. A acusação que pende sobre estes indivíduos durante as sessões de julgamento em 1969 e 1970, recai no pressuposto da existência de um conluio, antecipadamente delineado, entre os respetivos grupos no qual se inserem, para a incitação da revolta anti-sistema referida.
Contextualmente, o filme é riquíssimo, encapsulando episódios da história que, assustadoramente, se confundem com os dias de hoje. Os protestos tomaram lugar durante a confirmação (impopular) do candidato democrata, que veio a disputar as eleições presidenciais de janeiro de 1969. Eleições que confirmaram a eleição do, então, (popular) candidato republicano Richard Nixon. Evocar Nixon torna-se particularmente premente, pelos valores sociais e económicos com que marcou -e marginalizou- uma sociedade dividida (começava, assim, a negra época do law and order). De facto, só após a sua eleição, que introduziu mudanças subsequentes em instituições estadunidenses, como a Procuradoria-Geral da República, é que são mobilizados esforços para julgar alguns dos protagonistas dos tumultos transatos. Perseguição torna-se, no início da década de 70, prática corrente. Coincidências pouco surpreendentes: Nixon é um espelho da procura de uma ordem moral restrita, dogmática, que possui e manobra a opinião pública. E que manobrou, ainda, uma antiga lei escrita por esclavagistas sulistas, para levar o referido grupo a tribunal. Uma ode ao conservadorismo bafiento, cheio de falsas promessas de estabilidade, que apenas minam o caminho do progresso – dos que (se) assumem pelo que verdadeiramente são e sentem.
Sobre o tratamento dado aos ativistas, para além de globalmente tendencioso, é particularmente diferenciado. Recai no jovem negro Bobby Seale (aqui interpretado por Yahya Abdul-Mateen II) – o 8º elemento- uma acusação adicional de homicídio. Os contrastes não terminam aqui: este é deixado sem defesa ao longo de várias sessões, chegando a ser, inclusive, amordaçado: uma alegoria clara ao racismo insidioso, que sistematicamente pretende silenciar os seus alvos. Só com a revolta demonstrada pelos colegas, e respetivos advogados, é que o juiz se vê obrigado a alocá-lo a um julgamento diferenciado, para que os factos específicos da sua acusação possam ser apurados. Contribuindo para a riqueza de sentidos do filme, às diferenças de tratamento juntam-se, ainda, diferenças comportamentais: isto é, um choque de opiniões relativas à atitude com que os vícios do sistema devem ser enfrentados. De um lado temos Tom Hayden (Eddie Redmayne), do coletivo de estudantes, e do outro Abbie Hoffman (Sacha Baron Cohen), o inveterado hipppie. Para Hayden, precisamos de partir de uma posição moderada, se queremos exponenciar o número de simpatizantes aliados a uma determinada causa. Para Hayden, são precisas negociações e, com estas, certas concessões. Uma visão prática, que é tipificada pela vontade do ativista em ilibar-se das acusações, para poder continuar a luta. Já Hoffman acredita que o combate a um sistema repressor se faz do lado da radicalização – demonstrando-se um profundo repúdio das normas (socialmente) impostas, através de pensamentos e atos que quebrem todas as convenções. Para Hoffman, são as convicções extremadas que estenderão um caminho, que os moderados poderão explorar. Hoffman não está verdadeiramente interessado no resultado do julgamento do qual é arguido. Apenas lhe interessa fazer das sessões um palco, sonante, onde projecte o sistema de ideais que representa.
Todos os conflitos, que tornam os arguidos um grupo coeso, mas que também os dividem, enaltecem um filme que, em última análise, se engrandece pelo que suscita em cada um de nós. À medida que assistimos, cada vez menos impassíveis, às batalhas que os 7/(8) travam, somos infetados com um sentimento urgente de nos colocarmos em questão. Porque, seja na escrita, ou ao leme da câmara, o cinema de Sorkin é confrontacional. Convida a depararmo-nos, irremediavelmente, com o nosso sistema de convicções. Inquieta-nos: a nossa hierarquia de valores é chamada a testemunhar, para avaliar os atos e palavras de um conjunto de personagens humanamente estruturadas. Para que, em última análise, nos perguntemos: agiríamos da mesma maneira? O meu papel é suficientemente ativo: no seio familiar, na comunidade, no meu mundo?