O papel da academia na normalização do Chega

O papel da academia na normalização do Chega

13 Agosto, 2020 /
João Ribeiro/Shifter

Índice do Artigo:

O apoio da academia ao Chega de André Ventura pode significar o estado último de institucionalização de um partido de extrema-direita na nossa democracia. Assim, pergunto: onde está a esquerda no meio disto tudo?

“O partido [Chega] não é racista ou xenófobo, pois o Tribunal Constitucional permite a sua existência. Caso se se tratasse realmente de um partido com estas características, então estaríamos a afirmar que vivemos numa democracia racista, que permite a existência deste tipo de partidos”.

Esta afirmação pode ser uma boa introdução ao pensamento do autor da obra A Nova Direita Anti-Sistema – O Caso do Chega (Riccardo Marchi). Poderíamos ser tentados a considerar a publicação do livro como um sinal claro do interesse da academia em avaliar a evolução de André Ventura com algum distanciamento, fora da espuma do dia. No entanto, estamos perante um piscar de olhos de puro contentamento de uma parte da direita académica – por exemplo, através da última reportagem feita pela Visão, descobrimos que Jaime Nogueira Pinto deu a conhecer a elite de direita nacional a André Ventura. Assim, sinto-me compelido a analisar a argumentação utilizada por Marchi, baseando-me unicamente nas diversas entrevistas feitas ao autor (o ambiente relaxado de uma entrevista pode levar o académico a despir as vestes de sábio e ter as mesmas frustrações e sonhos de um cidadão. E o desaparecimento da gravitas do académico pode ajudar a desmistificar o pensamento que aparentava ser estruturado e sólido).

Legitimação do partido

Retomando o ponto com que comecei: do ponto de vista político, estamos perante um excelente argumento que legitima em termos constitucionais a existência do partido, isto é, utiliza as próprias regras do jogo democrático. Porém, do ponto de vista intelectual, é um argumento pobre e desonesto, pois não vai para além da superficialidade, da formalidade: o Tribunal Constitucional (TC) permitiu a criação do Chega e, até ao presente, não tomou nenhuma posição. Assim, é necessário irmos mais longe e questionar-nos por que razão o TC não se manifestou, mostrando-se, aparentemente, confortável com as acções do partido Chega.

Em primeiro lugar, o sistema democrático pode não ter os mecanismos devidos que permitam atacar estas questões. Olhemos, por exemplo, para quarto ponto do artigo 46.º da Constituição: “Não são consentidas associações armadas nem de tipo militar, militarizadas ou paramilitares, nem organizações racistas ou que perfilhem a ideologia fascista. O conceito de fascismo, ainda que aparente ser concreto, aquando da sua aplicação é claramente vago e, do meu ponto de vista, parece estar preso a uma noção passada de uma extrema-direita tradicional violenta e militarizada (à imagem de Salazar ou de Hitler, por exemplo). Assim, a nova extrema-direita facilmente pode ultrapassar esta mera formalidade – basta despir as fardas de todo o tipo de simbolismos do passado, como as suásticas, e ter um mínimo de cuidado na linguagem utilizada (olhemos para o caso de Marine Le Pen que lavou a imagem do partido de extrema-direita do pai). E vou mais longe – a extrema-direita populista não precisa de ter um discurso assente numa promoção da violência: precisa, sim, de construir o ambiente que culmine em violência. Os casos são inúmeros: Donald Trump constantemente chama o covid-19 de “vírus chinês”, os latinos de “gangsters” e “criminosos” e o movimento de refugiados oriundos da América do Sul de “caravana”; tudo isto contribui para criar um clima de desconfiança em relação a um determinado grupo étnico. Para além disso, há quem critique o papel do TC na fiscalização dos partidos, como é o caso do historiador Manuel Loff, que considera o papel deste tribunal como um mero secretariado que garante que todas as assinaturas estão correctas no acto de inscrição do partido. Por outras palavras, trata-se de um organismo burocrático que não fiscaliza nem o manifesto dos partidos, nem as acções dos seus agentes políticos.

Em segundo lugar, e trata-se de uma tese que acho menos crível na prática (ainda que possível em termos do subconsciente), o próprio sistema democrático pode ter medo de que a sua acção directa possa significar um aumento da crispação no ambiente social, bem como da desconfiança em relação aos partidos clássicos e ao sistema como um todo, o que resultaria (podemos nós imaginar) numa vitimização por parte do Chega e um consequente aumento da sua popularidade. Esta lógica pressupõe que as instituições democráticas e os respectivos agentes conseguem captar a essência de partidos como o Chega; na realidade, acredito que seja o oposto, pelo menos no que toca à direita partidária.

Vale a pena ressalvar que a utilização do formalismo constitucional para defender uma ideia não é singular a este autor. Na crónica “Crime e preconceito”, António Barreto, um consagrado sociólogo, faz o mesmo quando discute o racismo estrutural em Portugal, argumentando da seguinte maneira: “Há racismo em Portugal? Com certeza. Há racistas em Portugal? Evidentemente. Portugal é um país racista? Não, nem faz sentido tal observação. Na legislação, nos tribunais, nos sistemas de saúde e educação, em nenhum dispositivo legal há conteúdos racistas e de segregação racial objectiva. Mais: a legislação e a Constituição proíbem as manifestações de racismo. São estas considerações que permitem dizer que ‘Portugal não é um país racista’”. Este tipo de argumentação assenta na ideia de que um país é feito de leis e não de pessoas – ainda que sejam estas as pessoas que constituem as instituições, isto é, a estrutura da sociedade. Assim, teremos de esperar que os legisladores e os deputados mudem a constituição e adicionem o seguinte artigo “é permitido actos discriminatórios e racistas” para consagrarmos Portugal como um país racista.

No mesmo seguimento, Riccardo Marchi faz uma distinção entre “nova direita radical” e “extrema-direita”, demonstrando uma ignorância profunda (ou, então, uma ingenuidade esperta). Segundo o autor, a primeira direita quer fazer uma reforma por dentro, isto é, segundo as regras da democracia liberal parlamentar, enquanto a segunda quer uma mudança brutal por fora – seria interessante vermos o CDS utilizar a mesma lógica para o Bloco de Esquerda ou o Partido Comunista. De forma a corroborar esta ideia, o autor explica que tendo em conta que Ventura vem de “um partido de massas”, não existe no “ADN” quaisquer laivos autoritários e fascistas. O grande problema nesta lógica está precisamente no facto de a direita portuguesa ter sempre convivido confortavelmente, na generalidade dos casos, com as suas alas mais extremistas que constantemente se afastavam (surgindo partidos como o Partido da Nova Democracia de Manuel Monteiro, um partido nacionalista de direita) e se aproximavam (Manuel Monteiro, mais uma vez, regressa ao CDS a convite do Presidente “Chicão”). Para além disso, a direita nunca conseguiu fazer uma verdadeira separação com o passado ditatorial: esta ala continuou ora com a presença de figuras do Estado Novo, ora com as gerações mais novas que davam continuidade ao nome de família. E, precisamente nos últimos tempos, a direita fez um percurso um tanto tímido e inconsistente de radicalização, como é o caso do CDS. Nele podemos observar o retorno dos velhos medos e pilares: o “marxismo cultural” e os valores tradicionais da família, o desaparecimento das mulheres nas funções importantes e a homofobia (no núcleo central conta-se com a presença de um pseudo-médico que afirma curar a homossexualidade). Para além disso, é fundamental não nos esquecermos das ligações do Chega, a movimentos e partidos neo-nazis, como o Nova Ordem Social, liderado por Mário Machado. Portanto, qualquer tentativa de normalizar o Chega é um desafio intelectual que só pode cair em ruína, pois facilmente encontra estas contradições.

Contribuir perversamente para a democracia

A capacidade de introduzir novos temas, como o caso da imigração, é, para o autor, um motivo de elogio. Neste ponto, ele torna clara as suas posições políticas (e, consequentemente, o fascínio por Ventura), afirmando que “A lei de nacionalidade portuguesa é impressionante, ao fim de 2 anos é-se português. É este género de linha de políticas públicas em relação à imigração que determina muito o que é que serão os portugueses daqui a 50 anos”. Também quando questionado sobre os discursos discriminatórios constantemente dirigidos por Ventura, ora a uma deputada ora às comunidades ciganas, o autor desvia a conversa, elogiando constantemente a inteligência comunicacional: “Ele sabe que se levar para o Parlamento o tema específico de uma comunidade localizada, a comunicação social não lhe dá atenção nenhuma”. Esta é uma análise bastante perversa da democracia. Não está em causa a perspicácia do político, que é necessária na política real: o teatro, a oratória. O problema está no teor das propostas ou das tiradas mediáticas. Precisamente por Ventura conhecer a inconstitucionalidade de uma proposta que materialize alguns dos seus discursos, faz com que invista unicamente num discurso mediático e altamente populista. Assim, nunca esteve em causa a questão comunicacional, já que, neste momento, os meios de comunicação absorvem todos os movimentos do deputado, dando, em muitos casos, um excessivo valor – o interesse dos meios de comunicação tem como objectivo único criar notícias virais e ganhar na competição dos cliques e dos likes; nesse sentido, o monstro representado por Ventura é, na realidade, o trunfo barato destes meios.

Vamos analisar a dita “inteligência comunicacional” de Ventura. Ela assenta numa contradição política fundamental e que se torna cada vez maior ao longo do seu mandato. Recuando um pouco no tempo, apesar de existir um antes e um depois da sua candidatura às autárquicas de Loures, Riccardo Marchi não vê uma contradição na duas posições públicas de Ventura – na sua tese de doutoramento, o político alertava para os perigos do “populismo penal” (discurso que aproveita inimigos externos fabricados, como os ciganos ou os imigrantes, para retirar as liberdades individuais dos cidadãos, argumentando que se trata da garantia da segurança dos mesmos). Em primeiro lugar, separa o político do académico (o que vai ao encontro da lógica de que os políticos não têm ideologia, mas meramente um instinto de oportunidade e sobrevivência). Em segundo lugar, afirma que o discurso se extremou devido à hostilização dos partidos de esquerda e ao escrutínio da comunicação social. Ora, este raciocínio pressupõe que o discurso inicial era moderado; porém, a sua primeira marca política foi a introdução da questão das comunidades ciganas da forma mais populista possível.

No que toca às minorias étnicas, o autor do livro esclarece o pensamento de André Ventura: o deputado não olha para esta comunidade como um “grupo estranho ao tecido nacional”, mas pretende a “assimilação total”. Este discurso não é estranho aos populistas de direita: nem nos alvos, nem no teor. A teoria da assimilação total baseia-se em dois erros, que se vão tornando cada vez mais claros com o avanço do capitalismo global. Em primeiro lugar, na maioria dos países europeus, onde se incluiu Portugal, olhar, por exemplo, para as comunidades de origem africana como estranhos, ou pelo menos diferentes de um ponto de vista cultural, é esquecer o seu passado histórico colonial, onde, com mais ou menos intensidade, houve uma intenção de mudar culturalmente os povos colonizados com o intuito de os ocidentalizar, de os humanizar, no pior sentido da palavra, pois pressupõe que se estava perante seres que não eram nem animais nem humanos. E esse processo passou pela mudança de hábitos, da religião e da língua. Em segundo lugar, onde está a cultura dita portuguesa? Talvez tenha desaparecido com a internacionalização do Pastel de Nata. O “povo lusitano” vê filmes maioritariamente americanos, compra marcas internacionais; canta-se fado no Japão e os jovens utilizam calão inglês. Assim, o conceito de cultura portuguesa é um mero mito político do Estado Novo que constantemente foi utilizado para fechar o povo do resto da Europa – em contrapartida, a elite artística constantemente bebeu da cultura francesa e inglesa.

Por fim, o autor do livro elucida a sua posição, referindo as contribuições do Chega na praça pública, afirmando que “os partidos populistas da direita radical (…) trazem para dentro da política novamente pessoas que tinham saído da política”. Note-se que o conceito de populismo é utilizado aqui com um valor neutro e a normalização do termo pode ser considerado um dos sucessos da extrema-direita. O retorno da velha guarda é claro com o papel de Diogo Pacheco Amorim como ideólogo do Chega. O seu passado político começou, durante o Estado Novo, com a militância na Direita Integracionista Coimbrã (facção mais radical de direita em Coimbra com clara simpatia pelo neofascismo europeu); depois da revolução de Abril, saltou para o Movimento Democrático de Libertação de Portugal (movimento terrorista de extrema-direita) e, mais recentemente, passou pelo CDS e pelo PND. Uma das frases mais ricas escritas por este braço direito do Chega pode ser encontrada no site oficial do partido, em que ele afirma que “Não queremos os qualquer-coisa-Khan que um dia perto do nosso Natal puxam de uma faca e desatam a assassinar pacíficos transeuntes”. Para além disto, admite as suas afinidades com outros partidos de extrema-direita europeus como o Vox (Santiago Abascal), a Frente Nacional (Marine Le Pen), a Liga Norte (Matteo Salvini) e o Fidesz (Viktor Orbán). Uma verdadeira lufada de ar fresco para a democracia, certamente.

Chegados aqui, somos obrigados a concluir que Riccardo Marchi de forma propositada, em conjunto com uma boa parte da direita, prefere não dar relevância às relações directas do partido Chega com movimentos de extrema-direita. Assim, olham para o partido como um agregador institucional das alas mais radicais de direita, o que, por enquanto, significa um discurso relativamente mais moderado, de forma a vender uma imagem politicamente mais interessante. E se o discurso é elogiado, as respectivas posições políticas não ficam atrás; mais uma vez, aos olhos do autor, André Ventura é um destabilizador construtivo da balança democrática. Se é verdade que o deputado forçou diversos partidos a falarem sobre determinados temas ou a repensarem as suas posições e respectivos discursos – temas estes que representam problemas reais da sociedade portuguesa -, existe uma questão essencial que foi colocada ao autor: “Falar de temas que não eram discutidos sem enquadramento prejudica a democracia?”. A resposta esclarece o leitor e poderia ter saído da boca de um político: “Na minha opinião não, porque o ADN da democracia é o de combinar posições opostas, por mais radicais que sejam. A democracia não é só o sistema para as ideias mainstream.

Conclusão

Ainda que possa parecer irrelevante discutir um partido através das palavras de um académico, elas revelam um instante particular e interessante da nossa sociedade, onde uma parte se sente suficientemente confortável em falar abertamente no espaço público. Obviamente não está em causa a liberdade de expressão, interessa-me somente analisar os argumentos e a forma como eles branqueiam um discurso e a própria existência de um partido como o Chega. Neste caso, vão ao ponto de criar um verdadeiro manifesto para os respectivos militantes e simpatizantes. Ainda que os argumentos sejam fracos, servem perfeitamente para o discurso político, para as manchetes de jornais ou gritos nas manifestações anti anti-racistas. E torna-se cada vez mais importante olhar para André Ventura de diversos prismas, desde as suas ligações financeiras com grandes grupos económicos (que conta com os pesos pesados do armamento militar e do imobiliário de luxo), até ao apoio de uma parte da academia. Este último apoio pode significar só mais um suporte de uma parte da sociedade, mas pode bem espelhar o estado último da institucionalização do partido no nosso regime, isto é, da sua normalização na nossa sociedade. Assim, e ainda que pareça contraditório ou arriscado, devemos olhar de forma perversamente optimista para a situação: talvez seja a única forma de não cair em desespero – a absoluta normalização do partido pode significar a sua absorção pelo sistema, o que dificultaria bastante o discurso anti-sistema e anti-corrupção, uma das bandeiras mestres de André Ventura. O lado mais perverso nesta posição é o facto de admitirmos que a democracia como regime não está pronta para enfrentar estas figuras, o que não é algo novo.

Neste momento, ao admitirmos que o Chega se encontra num estado de incerteza (um partido anti-sistema com representação no sistema), então a função da esquerda partidária torna-se mais clara: obrigar o partido a ser o que a sua base mais radical e fiel quer, isto é, um partido que despe as suas vestes chamativas e se cinge a um discurso raivoso e desesperado como encontramos no PNR de José Pinto Coelho. Não é por acaso que o PNR acusa constantemente o Chega nas redes sociais de lhe ter plagiado o manifesto: o Chega é uma versão mais carismática e refinada. Neste sentido, a esquerda não pode limitar-se a apoiar timidamente as manifestações que aos poucos vão sendo fomentadas pelo ambiente que está a borbulhar actualmente na sociedade. E a razão para esta minha preocupação é muito simples: cada vez que a esquerda sair à rua, Ventura sairá em defesa do país, assim prometeu. Nestas circunstâncias, o jogo que está em causa é somente o da política no seu estado mais puro: um teatro de percepções a partir da tela a que chamamos de televisão (e cada vez mais nas redes sociais). Não basta ver quem leva mais pessoas à rua ou quem grita mais alto, falta algo mais. Assim, é também função da academia (de esquerda) compreender de que forma tudo isto se conjuga no Chega (as ligações financeiras e políticas, as redes sociais, as propostas, o mediatismo), em vez de colectivamente publicar uma carta aberta – tal reacção demonstra desespero, impreparação para o debate público e uma certa arrogância ao considerarem possuírem o monopólio dos temas do fascismo e movimentos populistas. Ao desmistificar e desconstruir todos estes planos, através de artigos, livros ou debates, garante que não existe somente uma narrativa (oficial) a circular pelo espaço público que tende necessariamente a beneficiar André Ventura.

Autor:
13 Agosto, 2020

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