Uma cooperativa de estafetas, porque não? Lá fora já rola

Uma cooperativa de estafetas, porque não? Lá fora já rola

15 Julho, 2020 /
Foto de Mário Rui André/Shifter

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Um grupo de ciclistas juntou-se na semana passada para combinar a criação de uma cooperativa de estafetas em Lisboa, usando a plataforma da CoopCycle.

Plataformas como a Uber Eats e a Glovo massificaram novos hábitos de consumo e criaram oportunidades para a restauração expandir a sua base de clientes através de uma rede articulada de estafetas prontos a cobrir grande superfície. As empresas detentoras das plataformas digitais de gestão dos estafetas ganham com isso, os restaurantes também – embora alguns contestem as políticas do serviço – mas são os estafetas, principais protagonistas, que se vêem com condições de trabalho precárias, sem rendimentos fixos nem protecção social. Sentem-se escravos de um algoritmo que não controlam e, por isso, um grupo de ciclistas pondera agora avançar para a criação de uma cooperativa.

Um grupo juntou-se na semana passada para combinar a criação de uma cooperativa de estafetas em Lisboa, usando a plataforma da CoopCycle. A CoopCycle é uma federação que nasceu em França e que desenvolveu uma solução tecnológica que disponibiliza a cooperativas que a queiram usar localmente. O software da CoopCycle inclui um sistema de gestão de frota, uma aplicação para restaurantes receberem os pedidos de encomenda e outra para clientes através dos seus telemóveis fazerem esses pedidos; estão ainda disponíveis integrações através da API, permitindo integrar, por exemplo, a CoopCycle numa loja online WooCommerce.

Em algumas cidades francesas e espanholas, assim como em Berlim, a plataforma da CoopCycle já está a operar através do estabelecimento de cooperativas locais. Em Lisboa, poderá nascer em breve uma cooperativa para também começar a operar com o sistema CoopCycle. Mas há ainda um longo caminho pela frente. Nuno Rodrigues, 30 anos, investigador ligado à área de tecnologia, decidiu dar o primeiro passo e organizar uma reunião na passada semana perto da Cicloficina dos Anjos, a maior oficina comunitária de bicicletas em Lisboa. “Vamos criar uma cooperativa de estafetas? Uma CoopCycle em Lisboa”. O evento organizado no Facebook deixava no ar uma ideia a precisar de corpo e estrutura, e foi nisso que se começou a trabalhar nesta primeira reunião. O grande objectivo era perceber se existiam pessoas interessadas em integrar uma cooperativa e, a partir daí, organizar grupos de trabalho para passar da ideia à prática.

Captura de ecrã da aplicação CoopCycle para iOS no servidor de Madrid (à esquerda) e de Berlim (à direita)

Cerca de duas dezenas de pessoas acederam ao desafio de Nuno que assumiu a liderança do encontro por uma questão de conveniência, apesar de numa cooperativa não existir uma estrutura verticalizada. Nessa reunião, dois estafetas da Glovo partilharam as suas experiências – nada que já não se soubesse. Aquilo que se apresenta como um trabalho preencher horas e ganhar um rendimento extra tornou-se num sistema que subsiste e prolifera assente numa estrutura de trabalhadores precários – há mesmo quem diga que os estafetas ao serviço da Uber Eats e da Glovo representam a nova escravidão. Trabalham de mochila às costas, alguns de bicicleta, outros de mota e os de mota – dizem dois ciclistas da Glovo valorizam-se por conduzirem um meio de transporte mais rápido. Não têm horas nem horário mas têm de fazer os períodos de maior procura – almoços e jantares – para garantir rendimento. Não têm qualquer tipo de protecção social ou de direitos – folgas, férias, plano de saúde ou reforma. São, em grande parte, imigrantes, e para alguns este é o único trabalho que podem e conseguem ter no país. Não são empregados da Uber nem da Glovo, dos clientes nem dos restaurantes; são empregados da tecnologia, de uma aplicação, de um algoritmo.

Os dois estafetas da Glovo apontaram também como handicap, o facto de a plataforma não ser optimizada para bicicletas, ao contrário do que a CoopCycle propõe, o que faz com que recebam pedidos a 8 ou 9 quilómetros que não são tão fáceis de fazer a pedalar como são de mota, por exemplo. Falaram ainda da existência de assaltos, de ter deixado de existir um escritório da empresa que lhes dê apoio e de os estafetas de motas “acharem que estão acima” dos que se deslocam de bicicleta.

“Eles mudam a app e não nos perguntam nada”, queixou-se um dos estafetas da Glovo que participou no encontrou. Ele e o colega, ambos de nacionalidade brasileira, comentaram que souberam do encontro pelo Facebook e que conheciam mais pessoas interessadas; Nuno também já tinha colaborado com a Glovo até ter desistido. Para alguns, sendo estas aplicações a única forma de ganhar dinheiro, desistir não é uma possibilidade, mas existindo mercado para estafetas a solução, acreditam, passa por dar o controlo da plataforma aos estafetas que na prática a fazem funcionar. É essa a ideia chave da CoopCycle: permite uma relação directa entre estafetas, parceiros, como restaurantes e comerciantes locais, e consumidores, sem a intermediação de uma empresa que fique com grande parte das receitas.

Foto de Mário Rui André/Shifter
Foto de Mário Rui André/Shifter

Na reunião convocada por Nuno, debateram-se os principais desafios. Entre eles, as questões burocráticas inerentes à estrutura formal de uma cooperativa – tendo um custo associado, vale a pena constituir agora ou opta-se por uma já existente? E quantos interessados existem? Outro ponto importante prende-se com os parceiros: como e quem cativar? Restaurantes, oferendo taxas mais baixas que a Uber Eats ou a Glovo? Pequenos negócios que se preocupem com questões de foro ambiental? Entregas só de comida ou outro tipo de estafetas? Fazer a entrega de encomendas no último quilómetro, isto é, dentro da cidade a partir de um armazém à porta da cidade?

Outras questões foram levantadas, procurando nesta nova configuração às respostas que não encontram na anterior: como garantir remuneração dignas para os estafetas? E protecção social? E seguro? Como crescer e ganhar escala? Começar com uma cooperativa mais focada em determinados serviços e horários e com menos pessoas, e ir crescendo sustentavelmente? Neste particular, a CoopCycle, enquanto federação que agrega diferentes cooperativas locais e autónomas, disponibiliza algum apoio, além da essencial plataforma tecnológica, como uma marca com notoriedade na Europa, suporte https://staging2.shifter.pt/wp-content/uploads/2021/02/e03c1f45-47ae-3e75-8ad9-75c08c1d37ee.jpgistrativo, apoio junto de instituições locais e europeias, seguro contra riscos e outros.

Captura de ecrã da página inicial da CoopCycle na web

A CoopCycle enquanto federação é gerida por uma associação francesa com o mesmo nome que desde 2017 procura “desenvolver um modelo anti-capitalista baseado nos bens comuns”, para isso fazem não só o trabalho de criação e manutenção da aplicação, bem como trabalho de lobbying político, assessoria jurídica e coordenação global das diferentes iniciativas. As cooperativas internacionais operam numa app central – que pode ser descarrega em Android ou iOS, ou acedida através do browser —, sendo que cada cidade tem o servidor próprio gerido pela iniciativa local – em Madrid, por exemplo, é a La Pájara. No site da cooperativa pode ler-se a adesão do grupo o motto fundacional da segurança francesa, o slogan de inspiração marxista, “De cada um conforme seus meios, a cada um conforme suas necessidades”, popularizado por Louis Blanc no texto Organisation du travail, publicado em 1839. A estrutura da associação é também visível online, onde se pode perceber a importância dos distribuidores no seio da cooperativa.

Visitando o site da La Pájara é possível conhecer os contornos do serviço e, de certo modo, antecipar aquilo que poderia ser essa iniciativa em Lisboa. Como se trata de um serviço especializado em bicicleta as entregas nesta cooperativa estão limitadas a um raio de 3 km do restaurante e cada entrega tem um custo de 3,5 euros; para além desta margem, como se pode ler no site, a cooperativa fica com 25% do valor do pedido – aludindo ao facto de outras aplicações do género cobrarem geralmente uma margem de 30%. Para além da entrega de comida, a La Pájara tem também um serviço de estafeta comum – entrega de objectos – com um preço que pode ser calculado no site através de uma simples folha de cálculo alojada no Google Sheets – uma pequena amostra da forma como através de soluções DIY a cooperativa colmata potenciais lacunas.

Há todo um trabalho de encontro de ideias que é necessário fazer desta forma e também de pesquisa, avaliando exemplos de sucesso internacionais, por exemplo. Esse trabalho está a ser feito através de diferentes grupos de trabalho que se encontram online através de uma mailing list criada no Google Groups – se estiveres interessado em fazer parte, basta entrar em contacto com o Nuno pelo WhatsApp +351 912 611 396 ou e-mail nmdrodrigues@gmail.com. Em breve, será convocada outra reunião; podes também saber mais pelo Facebook.

Autor:
15 Julho, 2020

Jornalista no Shifter. Escreve sobre a transição das cidades e a digitalização da sociedade. Co-fundador do projecto. Twitter: @mruiandre

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