E se em vez de fazer à pressa, aproveitássemos o tempo extra para pensar?

E se em vez de fazer à pressa, aproveitássemos o tempo extra para pensar?

8 Abril, 2020 /
Foto de Yohann LIBOT via Unsplash

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Os apoios do estado ou de outras instituições à Cultura são uma componente essencial deste esquema e partem de um ponto de preparação prévia, permitindo em alguns casos sustentar artistas e estruturas mesmo sem público no dia-a-dia. Mas os constantes directos, pelo Instagram ou pela televisão, vão no sentido inverso convocando uma atitude tanto escapista quanto conformista que se recusa a encarar o problema como ele é e a usá-lo como pretexto para pensar profundamente na organização do sistema.

A quarentena e a necessidade de isolamento social são uma novidade para todos nós. Os tempos em que somos aconselhados pelas autoridades de saúde a ficar em casa demandam alguma adaptação e aquilo que se perdeu pelo caminho, como as dezenas de eventos cancelados, ajustes. É preciso ajudar os sectores mais frágeis, nomeadamente artistas, técnicos e equipas de produção, mas também outros profissionais precários. Como sugere o Gerador numa das suas reportagens, o vírus pôs a descoberto as fragilidades de um sistema cultural em desenvolvimento.

Na pressa do recobro surgem os directos no Facebook e Instagram como possível solução – e se a princípio a ideia soou bem e as primeiras iniciativas pareceram espontâneas e honestas, não deixa de me inquietar observar uma certa complacência e aceitação de um novo normal.

A ideia de que um artista, uma editora, uma revista ou outra instituição de menor escala possa aceder a ferramentas para fazer um directo por sua conta e risco não é algo sobre o qual tenha sequer direito à discórdia, cada um aproveita o tempo como quer e há sempre quem se interesse por mais um concerto em 9:16 num ecrã de telemóvel. Contudo, esta tendência para, em bom português, nos desenrascarmos, parece fundar-se numa certa atitude escapista que não encara os fenómenos como eles são e portanto não se prepara para a hipótese de se repetirem.

Como dizem Harari ou Snowden, o vírus é uma coisa transitória, o seu ciclo de vida será visto como efémero quando sobre hoje se volverem 10 ou 15 anos; estamos fechados em casa há pouco mais de 20 dias; mas agimos como se o tédio já fosse insuportável, como se esta condição se tivesse de tornar um novo normal e como se não pudéssemos projectar, planear e construir coisas para o futuro. Em certos casos preferimos até travestir a incerteza de infantilidade e ridicularizar o problema, como se não fosse extraordinariamente natural. E é esta atitude que temo que não contribua para criar uma maior resiliência nos sistemas.

Olhando para a Europa vemos, vinda da Alemanha, a mensagem de que a forma mais eficiente de lidar com o vírus foi antecipando a urgência. Em vez de esperar pela emoção e o sentido de urgência que as imagens vindas de Itália ou Espanha transportavam até à casa de cada um, incluindo ministros e outros que tais, os alemães dizem ter começado a comprar material quando o surto ainda estava na China. Esta atitude que pouco parece ter a ver para o caso mostra a forma fundamental como a Alemanha tentou fortalecer o seu sistema, precavendo-se, em vez de agir em reação, desenrascando-se. O mesmo raciocínio se pode aplicar a uma série de outras áreas incluíndo à cultura.

Os apoios do estado ou de outras instituições são uma componente essencial deste esquema e partem, ao fim ao cabo, desse ponto de preparação prévia, permitindo em alguns casos sustentar artistas e estruturas mesmo sem público no dia-a-dia. Mas os constantes directos, pelo Instagram ou pela televisão, vão no sentido inverso convocando uma atitude tanto escapista quanto conformista que se recusa a encarar o problema como ele é e a usá-lo como pretexto para pensar profundamente na organização do sistema. E porque me parece problemática esta atitude?

Fundamentalmente porque não assume as óbvias fragilidades do modelo de apoio à cultura – e a outros sectores – que fazem com que grande parte das estruturas que lhe dão origem sejam suportadas por falsos recibos verdes; porque não assume a grande desigualdade que existe entre artistas neste país, entre os que são estrelas e os que lutam por 5 minutos de protagonismo; porque não combate a marginalização da arte e da cultura no quotidiano dos portugueses; pelo contrário parece-me que toda esta ânsia por criar normalidade na urgência desvirtua o potencial de reflexão que um momento como este pode representar, ignora-o. E isso pode ter um custo.

Há poucas horas, fora anunciado um festival de música no canal 444 da televisão por cabo e na RTP Play, promovido pelo Ministério da Cultura, com um orçamento de 1 milhão e um alinhamento em que artistas se vão nomeando entre si para actuar – sem um critério que vise colmatar as dificuldades ou qualquer articulação lógica que fomente a resiliência do sistema. Há poucas horas também publicámos aqui no Shifter sobre uma iniciativa da Chéquia e comparando as duas termino, traduzindo a diferença de atitude dos eventos. Sem querer com isto elogiar a política cultural checa que desconheço por completo. Na Chéquia, a responsável cultural de Praga, em parceria com uma empresa de eventos, criou um festival em que cada espaço pode criar o seu evento inexistente e vender bilhetes, por um preço tabelado – esta forma de trabalhar que não é perfeita tem características que me parecem importantes de incluir no nosso pensamento sobre o modelo cultural. É descentralizada, não depende de uma entidade que reúna apoios e distribua, nem a candidaturas burocráticas, e não compromete, nem se propõe a comprometer, a qualidade do produto cultural em prol de uma lógica de urgência financeira, e não dá trabalho – não implica a mobilização de pessoas, a criação de infra-estruturas, nem de plataformas de streaming que só servirão enquanto a urgência durar.

Tudo isto me parece mais do que simplesmente criticável, porque não é esse o ponto nem o tom que quero assumir neste artigo, matéria para uma reflexão profunda sobre a forma como lidamos com problemas. Da história conhecemos os tempos em que transformámos marés em mostrengos e por tempos os evitámos, crentes em convicções que hoje soam infantis – é óbvio que não existem gigantes monstros marinhos para qualquer adulto são. Proponho que não os criemos aqui, que continuemos a navegação, que circundemos a tempestade, mas que não mudemos de rota. Se o vírus é perigoso, se o caso é urgente, a norma da história quase sempre, mais tarde ou mais cedo, se adapta e ajusta tendendo para uma vida melhor… para todos.

O que me parece mais importante neste momento é percebermos as falências dos sistemas em caso de ruptura como a que vivemos, socorrer de modo igualitário todas as pessoas que precisem de ajuda para manter uma vida digna, porque são várias, de várias áreas; no meio disto pensar em formas inovadoras de apoio que estimulem, claro, a entre-ajuda entre os vários sectores da sociedade, que eliminem o peso da burocracia e protejam as excepções inadmissíveis, como aquelas de que André Gago nos fala neste seu post de Facebook.

Todos sabemos que ninguém estava preparado para este momento e que não é fácil para ninguém saber o que fazer quando todas as condições se alteram. Contudo é nestas alturas que a criatividade na gestão é mais importante, sob pena de como solução propormos ideias que replicam modelos desiguais e discriminatórios; que se propõe, e bem, a ajudar aqueles que nesta situação sensível mais precisam mas podem falhar redondamente nos critérios de deteção dessas necessidades.

Autor:
8 Abril, 2020

O João Gabriel Ribeiro é Co-Fundador e Director do Shifter. Assume-se como auto-didacta obsessivo e procura as raízes de outros temas de interesse como design, tecnologia e novos media.

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